quinta-feira, 10 de outubro de 2024

O Sol é para todos: 1ª Parte (11a)

Harper Lee

O Sol é para todos


Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto


Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB



PRIMEIRA PARTE

11



   Quando éramos pequenos, Jem e eu restringíamos nossas atividades ao sul da nossa vizinhança, mas quando eu já estava em meados do segundo ano e atazanar Boo Radley já tinha perdido a graça, o centro comercial de Maycomb nos atraía com frequência rua acima, passando pela propriedade da sra. Henry Lafayette Dubose. Era impossível não passar diante da casa dela, a não ser que estivéssemos dispostos a dar uma volta de mais de um quilômetro. Meus breves encontros anteriores com ela não me deixaram com a menor vontade de encontrá-la novamente, mas Jem disse que um dia eu teria que crescer.
      A sra. Dubose morava sozinha com uma ajudante negra, numa casa que ficava a duas portas da nossa, com uma escada íngreme e um corredor. Era muito velha e passava quase o dia inteiro deitada na cama ou na cadeira de rodas. Diziam que ela guardava uma pistola do exército confederado escondida no meio dos seus muitos xales e mantas.
     Jem e eu a detestávamos. Se estava na varanda quando passávamos, ela nos lançava um olhar irado, fazia um interrogatório sobre o nosso comportamento e previa que, infelizmente, não seríamos nada na vida. Havia muito tempo tínhamos desistido da ideia de evitar a casa passando pelo outro lado da rua, porque isso só fazia com que ela falasse ainda mais alto, chamando a atenção de toda a vizinhança.
      Não havia jeito de agradá-la. Se eu dava um alegre “Olá, sra. Dubose!”, a reação era: “Não me venha com olá, menina mal-educada! Diga ‘boa tarde, sra. Dubose’!”
      Ela era horrível. Uma vez, ouviu Jem se referir a nosso pai como “Atticus” e ficou furiosa. Disse que, além de sermos os moleques mais desbocados e desrespeitosos que ela já tinha visto, lastimava que nosso pai não tivesse se casado de novo depois de enviuvar. Jamais existiu mulher mais adorável do que nossa mãe e era de cortar o coração que Atticus Finch criasse os filhos dela como dois selvagens. Eu não me lembrava da nossa mãe, mas Jem lembrava (às vezes, me contava sobre ela) e ficou lívido quando a sra. Dubose disse isso.
      Jem, que tinha sobrevivido a Boo Radley, a um cachorro louco e a outros horrores, concluiu que era covardia parar na frente da escada da srta. Rachel e esperar. Achava melhor corrermos até a esquina dos correios todos os dias para encontrar Atticus vindo do trabalho. Várias vezes, Atticus encontrava Jem furioso por causa de alguma coisa que a sra. Dubose tinha dito quando passamos.

 — Não ligue, filho — dizia Atticus. — Ela está velha e doente. Erga a cabeça e seja um cavalheiro. Ela pode dizer o que quiser, é só você não se deixar atingir.

      Jem argumentava que ela não devia estar tão doente se berrava tanto. Quando nós três passávamos pela casa dela, Atticus tirava o chapéu, acenava todo galante e dizia: “Boa tarde, sra. Dubose. Hoje a senhora está parecendo uma pintura.”
      Só que Atticus não dizia que tipo de pintura. Ele dava notícias do tribunal e desejava de todo o coração que ela tivesse um bom dia no dia seguinte. Ele colocava o chapéu na cabeça de novo, me levantava nos ombros bem na cara dela e íamos para casa ao anoitecer. Era em momentos como esse que eu achava que meu pai, que detestava armas e nunca tinha ido a nenhuma guerra, era o homem mais corajoso que já existiu.
     No dia seguinte ao décimo segundo aniversário de Jem, ele estava doido para gastar o dinheiro que tinha ganhado de presente, então fomos para o centro da cidade no começo da tarde. Jem achava que o dinheiro daria para comprar uma locomotiva de brinquedo para ele e um bastão de baliza para mim.
     Fazia tempo que eu queria o bastão: estava na vitrine da V. J. Elmore’s, era coberto de lantejoulas e purpurina dourada e custava dezessete centavos. Na época, minha maior ambição era crescer e ser baliza, rodando o bastão na frente da banda da escola secundária do condado de Maycomb. Como eu tinha desenvolvido meu talento e já conseguia jogar uma vara para o alto e quase pegá-la no ar, Calpúrnia me proibiu de entrar em casa com uma. Pensei que ela mudaria de ideia se eu tivesse um bastão de verdade e achei generoso da parte de Jem comprar um para mim.

 — Aonde vocês dois estão indo a essa hora? — berrou ela. — Matando aula, não é? Vou ligar para o diretor! — Colocou as mãos nas rodas da cadeira e fez uma volta perfeita.

 — Ah, hoje é sábado, sra. Dubose — explicou Jem.

 — Não interessa se é sábado. Aposto que o pai de vocês não sabe onde estão.

 — Sra. Dubose, vamos à cidade sozinhos desde que éramos desse tamanho — Jem colocou a mão a meio metro do chão.

 — Não minta para mim! — ela gritou. — Jeremy Finch, Maudie Atkinson me disse que hoje de manhã você quebrou um galho da parreira dela. Ela vai contar ao seu pai e então você vai desejar não ter nascido! Não me chamo Dubose se você não for para o reformatório na semana que vem.

      Jem, que não chegava perto da parreira da srta. Maudie desde o verão anterior, sabia que, mesmo se tivesse feito aquilo, a srta. Maudie não contaria nada para Atticus.

 — Não me contradiga! — a sra. Dubose vociferou. — Quanto a você… — apontou um dedo cheio de artrite para mim. — Por que está de macacão? Devia usar vestido e combinação, mocinha! Se não mudar de modos, vai acabar virando garçonete. Uma Finch servindo mesas no Café OK, rá!

      Fiquei apavorada. O Café OK era um lugar escuro, ao norte da praça. Tentei segurar a mão de Jem, mas ele se desvencilhou.

 — Vamos, Scout — cochichou. — Não ligue para ela. Erga a cabeça e se comporte como um cavalheiro.

      Mas a voz da sra. Dubose nos alcançou:

 — Não basta uma Finch servindo mesas, ainda por cima tem um Finch no tribunal defendendo pretos!

      Jem empertigou-se. A sra. Dubose sabia que tinha colocado o dedo bem na ferida.

— A que ponto chegamos: um Finch indo contra os seus iguais. É demais! — Ela pôs a mão na boca e, quando tirou, fez um comprido fio de cuspe. — Seu pai é igual aos pretos sujos que ele defende!

      Jem ficou roxo. Puxei a manga da camisa dele e fomos acompanhados pela calçada por uma falação sobre a degradação moral da nossa família, motivo pelo qual a metade dos Finch estava no hospício, mas, se nossa mãe fosse viva, não teríamos chegado a esse ponto.
      Eu não sabia o que tinha magoado mais Jem. Quanto a mim, me ofendi com a declaração da sra. Dubose sobre a sanidade mental da família. Eu já estava quase acostumada a ouvir insultos a Atticus, mas era a primeira vez que os ouvia de um adulto. À exceção do ataque a Atticus, as agressões verbais da sra. Dubose tinham virado rotina. Havia algo de verão no ar aquele dia, estava fresco à sombra, mas o sol quente prenunciava duas coisas boas: férias e Dill.
      Jem comprou a locomotiva e fomos até a Elmore’s para comprar o meu bastão. Não sentiu prazer nenhum com essa compra, enfiou a locomotiva no bolso e voltamos para casa em silêncio. No caminho, sem querer, quase dei um encontrão no sr. Link Deas, que zangou:

 — Olha por onde anda, Scout!

      Com isso, o meu bastão caiu e, quando chegamos perto da casa da sra. Dubose, ele estava sujo de tanto ir ao chão.
      A varanda estava vazia.
     Anos depois, eu às vezes pensava no motivo para Jem ter feito o que fez, por que deixou de “ser um cavalheiro, filho” e abandonou a recente fase de retidão autoimposta. Ele devia estar tão cheio quanto eu de ouvir comentários sobre papai defender pretos, mas eu achava que jamais perderia as estribeiras com nada. Tinha um temperamento naturalmente calmo e uma paciência de Jó. Na época, porém, eu achava que a única explicação para o que ele fez era um súbito acesso de loucura.
      O que Jem fez foi algo que eu teria feito se papai não tivesse me proibido de me meter em encrenca, o que eu achava que incluía brigar com velhas horrorosas. Estávamos bem na frente do portão da sra. Dubose quando Jem pegou o meu bastão, subiu a escada do jardim e começou a dar bastonadas para todo lado, esquecendo tudo o que Atticus tinha dito, esquecendo que a sra. Dubose escondia uma pistola no meio dos xales e que, se ela errasse o tiro, a empregada Jessie com certeza acertaria.
      Ele só começou a se acalmar depois de açoitar todos os pés de camélia e deixar o chão coberto de galhos e folhas verdes. Em seguida, apoiou o meu bastão no joelho, quebrou-o ao meio e jogou os dois pedaços na grama.
     A essa altura, eu estava gritando. Jem puxou meu cabelo e disse que não dava a mínima, que, se pudesse, faria tudo de novo, e se eu não calasse a boca ia arrancar todo o meu cabelo, fio a fio. Continuei gritando e ele me deu um chute. Perdi o equilíbrio e caí de cara no chão. Jem me levantou de um jeito rude mas parecia arrependido. Não havia nada a dizer.
      Naquela tarde, não fomos esperar Atticus na volta para casa. Ficamos zanzando pela cozinha até Calpúrnia nos expulsar. Por meio de alguma bruxaria, Calpúrnia parecia saber tudo o que tinha acontecido. Ela não nos consolou, mas deu para Jem um bolinho com manteiga recém-saído do forno, que ele dividiu comigo. Não tinha gosto de nada.
     Fomos para a sala. Peguei uma revista de esportes, achei uma foto do jogador de beisebol Dixie Howell e mostrei para Jem:

 — Ele é parecido com você — elogiei.

      Foi a coisa mais legal que consegui dizer a ele, mas não adiantou. Jem se encolheu numa cadeira de balanço junto à janela e ficou esperando papai chegar, sério. Anoiteceu.
     Duas eras geológicas depois, ouvimos os passos de Atticus na escada. A porta de tela bateu e fez-se silêncio. Atticus estava diante da chapeleira da entrada e chamou:

 — Jem!

     A voz dele soou como o vento do inverno.
     Atticus acendeu a luz da sala e nos viu lá, paralisados. Segurava o meu bastão em uma das mãos e a purpurina deixava uma trilha dourada no tapete. Ele estendeu a outra mão, que estava cheia de botões de camélia arrancados.

 — Jem, você é o responsável por isso? — perguntou.

 — Sim, pai.

 — Por que fez isso?

     Jem disse baixinho:

 — Ela disse que você defende os porcarias dos pretos.

 — Por isso você fez aquilo?

      Jem moveu os lábios, mas o “sim, pai” foi inaudível.

 — Filho, sei que seus colegas implicam com você porque defendo os pretos, como você diz, mas fazer isso com uma senhora doente é imperdoável. Recomendo que você vá até lá e converse com a sra. Dubose — disse Atticus. — E volte direto para casa depois.

      Jem não se mexeu.

— Mandei você ir lá.

     Saí da sala junto com Jem.

— Volte aqui — Atticus disse para mim. Voltei.

      Atticus pegou o Mobile Press e sentou-se na cadeira de balanço onde Jem estava antes. Juro por Deus que não conseguia entender como ele podia ter tanto sangue-frio e ficar ali lendo o jornal enquanto seu único filho podia ser morto com um tiro de uma relíquia do Exército Confederado. Claro que às vezes Jem me irritava tanto que eu tinha vontade de matá-lo mas, no fim das contas, ele era a única pessoa que eu tinha. Atticus parecia não se dar conta disso ou, se se dava conta, não ligava. 
      Fiquei com raiva dele, mas quando a gente se mete em encrenca, fica logo cansado. Dali a pouco, eu estava no colo dele, aninhada em seus braços.

 — Você está muito grande para ficar no colo — ele disse.

 — Você não se importa com o que pode acontecer com ele — eu disse. — Mandou Jem até lá para levar um tiro e ele só estava defendendo você.

      Atticus colocou minha cabeça sob o queixo dele.

 — Ainda não é hora de se preocupar — ele disse. — Nunca pensei que Jem fosse perder a cabeça com isso… Achava que você daria mais trabalho.

     Ponderei que eu não entendia por que tínhamos de nos controlar, se ninguém na escola parecia se controlar.

 — Scout, quando chegar o verão, você vai precisar ter calma diante de coisas piores… Sei que não é justo com você e com Jem, mas às vezes temos que encarar as coisas da melhor maneira possível e saber como nos comportar quando as coisas vão mal… bom, só posso dizer que, quando vocês crescerem, talvez se lembrem disso com alguma compaixão e percebam que não os decepcionei. O caso de Tom Robinson é algo que concerne ao âmago da consciência humana. Scout, eu não poderia ir à igreja e louvar a Deus se não tentasse ajudar esse homem.

 — Atticus, você deve estar enganado…

 — Por quê?

 — Quase todo mundo acha que está certo e que você é que está errado.

 — Essas pessoas certamente têm o direito de pensar assim, e têm todo o direito de ter sua opinião respeitada — considerou Atticus. — Mas antes de ser obrigado a viver com os outros, tenho de conviver comigo mesmo. A única coisa que não deve se curvar ao julgamento da maioria é a consciência de uma pessoa.

      Quando Jem voltou, eu ainda estava no colo de Atticus.

 — E então, filho? — perguntou Atticus.

      Ele me colocou no chão e eu examinei Jem disfarçadamente. Parecia ileso, mas com uma expressão estranha. Vai ver que a velha tinha dado uma dose de purgante a ele.

 — Limpei o jardim e disse que estava arrependido, mas não estou, e prometi que vou lá todo sábado cuidar das plantas até crescerem de novo.

 — Não precisava dizer que estava arrependido se não está — considerou Atticus. — Jem, ela está velha e doente. Você não pode culpá-la pelo que diz ou faz. Claro, eu preferia que ela tivesse dito aquilo para mim e não para vocês, mas as coisas não podem ser sempre como queremos.

      Jem olhava fixamente para uma rosa na estampa do tapete.

 — Atticus, ela me pediu para ler para ela.

 — Ler?

 — É. Quer que eu vá até lá todos os dias depois da escola e aos sábados e leia para ela por duas horas. Atticus, tenho de fazer isso?

— Claro.

— Mas ela quer que eu faça isso por um mês.

— Então, vai ler por um mês.

     Jem colocou delicadamente o dedão do pé em cima da rosa no tapete e esmagou-a com força. Por fim, disse:

— Atticus, do lado de fora, tudo bem, mas por dentro é… tudo escuro e assustador. Tem sombras e coisas no teto…

     Atticus deu um sorriso estranho.

— Isso deve estimular a sua imaginação. Faça de conta que está dentro da casa dos Radley. 

continua página 079...
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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988 
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês 
TO KILL A MOCKINGBIRD 
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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930. 

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