terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

O Sol é para todos: 2ª Parte (12a)

Harper Lee

O Sol é para todos


Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto


Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB


SEGUNDA PARTE

12

     Jem tinha doze anos. Era uma pessoa difícil de conviver, instável, mal-humorado. Tinha um apetite voraz e disse tantas vezes para eu não encher, que fui consultar Atticus:

— Será que ele está com lombriga? — perguntei.

     Atticus disse que não, que Jem estava crescendo. Eu tinha de ter paciência com ele e incomodá-lo o mínimo possível. 
     Essa mudança em Jem aconteceu em uma questão de semanas. A sra. Dubose ainda não tinha nem esfriado na sepultura e ele já tinha esquecido da gratidão por eu tê-lo acompanhado nas sessões de leitura. De um dia para outro, Jem tinha adquirido novos valores e tentava impô-los: algumas vezes ele chegava mesmo a me dizer o que fazer. Depois de uma discussão, berrou:

— Já está na hora de você começar a se comportar como uma menina!

     Comecei a chorar e fui procurar Calpúrnia.



— Não se aflija por causa do sr. Jem — ela começou. 
— Sr. Jem? 
— Sim, ele já é praticamente o sr. Jem. 
— Ele não é tão velho assim. O que ele precisa mesmo é que alguém lhe dê uma bela surra, mas eu sou muito pequena para isso — sugeri. 
— Querida, não posso fazer nada se o sr. Jem está crescendo — disse Calpúrnia. — Ele agora vai querer passar mais tempo sozinho, fazendo coisas de rapaz. Então, quando se sentir só, venha para a cozinha. Aqui tem montes de coisas para fazermos.

     Aquele início de verão prometia: Jem podia fazer o que bem entendesse; eu passaria os dias com Calpúrnia até Dill chegar. Ela parecia gostar de me ver na cozinha e, observando-a, comecei a achar que ser mulher exigia um certo talento. 
     Mas o verão chegou e nada de Dill aparecer. Recebi uma carta e uma foto dele. A carta dizia que ele tinha um novo pai, cuja foto estava anexa, e teria de ficar em Meridian, porque os dois planejavam construir um barco de pesca. O novo pai dele era advogado como Atticus, só que muito mais jovem. Gostei de ver na foto que o pai de Dill era simpático, mas fiquei arrasada. Dill terminava a carta dizendo que me amava para sempre e que eu não me preocupasse, nos casaríamos assim que ele conseguisse juntar o dinheiro; e era para eu escrever, por favor. 
     O fato de eu ter um noivo fixo não compensava muito a ausência dele. Eu não tinha me dado conta, mas o verão era Dill ao lado do tanque de peixes, os olhos brilhando com planos mirabolantes para fazer Boo Radley aparecer, a rapidez com que me dava um beijo quando Jem não estava olhando, a falta que às vezes sentíamos um do outro. Com ele, a vida era sempre igual; sem ele, a vida era insuportável. Fiquei infeliz durante dois dias.
     Como se isso não bastasse, a Câmara estadual fez uma convocação extraordinária e Atticus nos deixou por duas semanas. O governador estava ávido por resolver alguns problemas: havia greves em Birmingham; as filas para comprar pão nas cidades estavam aumentando; os camponeses estavam empobrecendo. Mas esses acontecimentos estavam muito distantes do mundo em que Jem e eu vivíamos. 
     Uma manhã, ficamos surpresos ao ver uma charge no Montgomery Advertiser com a legenda “O Finch de Maycomb”. O desenho mostrava Atticus, descalço e de cuecas, acorrentado a uma mesa: estava absorto escrevendo enquanto algumas garotas de aspecto frívolo assoviavam para ele.

— Isso é um elogio — explicou Jem. — Ele passa o tempo todo fazendo coisas que se alguém não fizesse ficariam por fazer. 
— Hein? 

     Entre as novas peculiaridades de Jem, ele agora tinha um enervante ar de sabe-tudo.

— Ora, Scout, coisas como organizar o sistema de arrecadação de impostos dos condados e tal. Para a maioria das pessoas são coisas bastante aborrecidas. 
— Como você sabe? 
— Ah, me deixa em paz. Estou lendo o jornal. 

     Atendi o pedido de Jem e fui para a cozinha. 
     Enquanto debulhava ervilhas, Calpúrnia perguntou de repente:

— O que vai acontecer com vocês sozinhos na igreja domingo? 
— Nada, acho. Papai deixou dinheiro para a coleta. 

     Calpúrnia apertou os olhos, e eu sabia o que ela estava pensando. 

— Cal — eu disse —, você sabe que vamos nos comportar. Faz anos que Jem e eu não fazemos nada de errado na igreja.

     Calpúrnia certamente se lembrava de um domingo chuvoso, quando estávamos sem pai e sem professora. Deixados por conta própria, nossa classe da escola dominical amarrou Eunice Ann Simpson numa cadeira e colocou-a no quarto da caldeira da calefação da igreja. Nós a deixamos lá, subimos a escada e ficamos assistindo, contritos, o sermão até ouvirmos um barulho horrível vindo dos canos do aquecimento. O barulho só parou quando alguém foi ver o que era e trouxe Eunice Ann reclamando que não queria mais brincar de Ananias. Jem tinha dito a ela que, se tivesse fé, não se queimaria, mas lá embaixo fazia um calor dos infernos.

— Além disso, Cal, não é a primeira vez que Atticus se ausenta — reclamei. 
— Sim, mas ele sempre verificava se a professora de vocês ia estar lá. Dessa vez, não ouvi ele dizer nada sobre isso, acho que esqueceu. 

     Calpúrnia coçou a cabeça. De repente, sorriu e perguntou: 

— O que você e o sr. Jem acham de ir à igreja comigo amanhã? 
— Sério? 
— O que acham? — sorriu Calpúrnia.

     Se os banhos que Calpúrnia me dava eram sempre caprichados, nada se comparava à rotina que ela supervisionou naquele sábado à noite. Fez eu me ensaboar inteira duas vezes, jogou água limpa na banheira para cada enxágue, enfiou minha cabeça na bacia e lavou meus cabelos com sabão de glicerina e óleo de oliva. Há anos ela confiava em Jem, mas naquela noite invadiu a privacidade dele, o que resultou em um escarcéu:

— Não se pode tomar banho nessa casa sem que toda a família venha olhar?

     Na manhã seguinte, ela levantou mais cedo do que o habitual para cuidar das nossas roupas. Quando passava a noite na nossa casa, ela dormia em uma cama de campanha na cozinha, que, naquela manhã, estava coberta com nossos trajes domingueiros. Cal engomou tanto o meu vestido que, quando me sentava, a saia levantava como uma tenda. Fui obrigada a usar anágua e Cal amarrou uma fita cor de rosa na minha cintura. Poliu meu sapato de verniz até ver o próprio rosto refletido nele.

— Até parece que vamos a uma grande festa. Para que tudo isso, Cal? — perguntou Jem. 
— Não quero que ninguém diga que não cuido bem das minhas crianças — ela resmungou. — Sr. Jem, não pode usar essa gravata com esse terno. É verde. 
— E qual é o problema? 
— O terno é azul. Não vê? 
— Rá-rá, Jem é daltônico — zombei. 

     Ele enrubesceu de raiva, mas Calpúrnia disse:

— Parem com isso agora. Vão entrar na Primeira Aquisição com um sorriso no rosto.

     A igreja metodista africana Primeira Aquisição ficava ao sul da cidade, depois dos trilhos da velha serraria. Era uma construção antiga, com pintura descascada, a única igreja em Maycomb que tinha um campanário com sino. Chamava-se Primeira Aquisição porque foi comprada com os primeiros salários dos escravos libertos. Era frequentada pelos negros aos domingos, e durante a semana os brancos a usavam como local de jogatina. 
     O pátio da igreja era de terra batida, assim como o cemitério que ficava ao lado. Se alguém morria num período de seca, o corpo era coberto com pedaços de gelo até a chuva amolecer a terra. Algumas sepulturas tinham lápides quebradas e as mais recentes eram demarcadas com vidro colorido e garrafas de Coca-Cola quebradas. Os para-raios que guardavam algumas sepulturas indicavam os mortos que tinham um descanso inquieto; nas sepulturas das crianças havia tocos de vela. Era um cemitério alegre.
     Ao chegarmos à igreja, fomos recebidos pelo cheiro denso e agridoce de negros limpos — loção de cabelo Hearts of Love misturada ao perfume de assa-fétida, rapé, água de colônia Hoyt, tabaco de mascar, menta e talco perfumado. 
     Quando viram Jem e eu com Calpúrnia, os homens abriram caminho e tiraram os chapéus, as mulheres cruzaram os braços na altura da cintura, gestos cotidianos de respeitosa atenção. Abriram caminho para entrarmos na igreja. Calpúrnia caminhava entre Jem e eu, retribuindo os cumprimentos dos vizinhos, todos com roupas de cores chamativas.

— O que quer com isso, srta. Cal? — perguntou alguém atrás de nós.

     Calpúrnia segurou nossos ombros com força e olhamos: uma negra alta estava parada na nossa frente. Apoiava o peso do corpo em uma das pernas e estava com o cotovelo esquerdo apoiado na curva da cintura, apontando para nós com a palma para cima. Tinha a cabeça redonda, olhos de uma estranha forma amendoada, nariz reto e a boca como um arco. Devia ter uns dois metros de altura. 
     Calpúrnia apertou meu ombro. 

— O que quer, Lula? — perguntou, de um jeito que eu nunca a tinha ouvido falar. Falava baixo, com desdém. 
— Quero saber por que está trazendo filho de branco em igreja de negro. 
— Tão me acompanhando — respondeu Calpúrnia. Sua voz voltou a me soar estranha: estava falando como os outros negros. 
— Sei, e acho que durante a semana você que é a acompanhante na casa do Finch. 

     Um murmúrio percorreu a multidão.

— Não liga não — Calpúrnia disse para mim, mas as rosas do chapéu dela tremiam de indignação. 

     Quando Lula veio na nossa direção, Calpúrnia disse: 

— Pode parando onde tá, nega.

     Lula parou, mas disse:

— Não tem nada que trazer filho de branco aqui, eles têm a igreja deles, nós temos a nossa. Essa é a nossa igreja, está lembrada, srta. Cal? 

     Calpúrnia respondeu:

— O Deus é o mesmo, não é? 

     Jem disse: 

— Vamos para casa, Cal, eles não querem a gente aqui… 

     Concordei: não queriam mesmo. Dava para sentir, mais do que ver, que estavam vindo para cima de nós. Pareciam se aproximar, mas, quando olhei para Calpúrnia vi uma expressão divertida em seus olhos. Olhei para o caminho e Lula tinha sumido. No lugar dela, havia um grupo sólido de negros. 
     Um deles deu um passo à frente. Era Zeebo, o lixeiro.

— Sr. Jem, estamos muito contentes por estarem aqui. Não liguem para a Lula, ela está irritada porque o reverendo Sykes ameaçou ela com a purificação. Ela é encrenqueira, orgulhosa e cheia das ideias… Estamos muito contentes que vocês vieram.

     Depois disso, Calpúrnia nos levou para a porta da igreja e fomos cumprimentados pelo reverendo Sykes, que nos levou para o banco da frente. 
     O interior da igreja não tinha forro nem pintura. Nas paredes havia lampiões de querosene em arandelas de latão e os bancos eram de pinho. Atrás do púlpito de carvalho rústico, um estandarte rosa desbotado proclamava que Deus é Amor; era a única decoração da igreja, além de uma gravura de A luz do mundo, de Hunt. Não havia piano, órgão, de hinos, folhetos com programas da igreja — a habitual parafernália eclesiástica que víamos todos os domingos. Lá dentro era escuro e fazia um frio úmido, aos poucos dissipado pela congregação reunida. Em cada assento havia um leque barato, de papelão, com a imagem de um luxuriante Jardim do Getsêmani, cortesia da loja de ferragens Tyndal’s (“Temos tudo que você precisa”). 
     Calpúrnia fez com que Jem e eu fôssemos para o final do banco e se sentou entre nós dois. Tirou da bolsa a trouxinha de pano onde guardava as moedas e deu uma moeda de dez centavos para mim e outra para Jem.

— Nós temos dinheiro para a coleta — disse Jem. 
— Fica com ele, vocês são meus convidados. 

     Jem ficou meio indeciso em relação à ética de ficar com o dinheiro da esmola, mas sua cortesia natural foi mais forte e ele guardou a moeda no bolso. Fiz o mesmo, sem nenhum problema de consciência.

— Cal, cadê os livros de hinos? — perguntei baixinho. 
— Não temos — ela respondeu. 
— Ué, como…? 
— Shhh — ordenou ela.

     O reverendo Sykes estava no púlpito esperando a congregação fazer silêncio. Era um homem baixo, atarracado, usava terno preto, gravata preta, camisa branca e uma corrente dourada que brilhava com a luz que entrava pelas janelas embaçadas. Ele disse: 

— Irmãos e irmãs, estamos muito contentes com as visitas que temos hoje, o sr. e a srta. Finch. Vocês conhecem o pai deles. Antes de começar, vou dar alguns avisos. — O reverendo mexeu em alguns papéis, pegou um e o segurou com o braço esticado. — Na próxima terça-feira, haverá reunião da Sociedade Missionária na casa da irmã Annette Reeves. Levem suas costuras.

     Em outro papel, leu:

— Todos sabem do problema do irmão Tom Robinson, que desde menino é um membro fiel da Primeira Aquisição. A arrecadação de hoje e dos próximos três domingos será entregue a Helen, mulher dele, para ajudar nas despesas da casa. 

     Cutuquei Jem. 

— É o Tom que Atticus vai… 
— Shhh!

     Virei-me para Calpúrnia, mas ela mandou eu ficar quieta antes mesmo que eu pudesse abrir a boca. Voltei minha atenção para o reverendo, que parecia aguardar que eu sossegasse. 

— Encarregado da música, cante conosco o primeiro hino — disse ele.

continua página 089...
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O Sol é para todos: 2ª Parte (12a)
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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988 
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês 
TO KILL A MOCKINGBIRD 
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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930. 

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