sábado, 6 de dezembro de 2025

O Sol é para todos: 2ª Parte (18b)

Harper Lee

O Sol é para todos

Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto

Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB

SEGUNDA PARTE

18

      Mayella assentiu. 

— Sabia, ele passava em frente de casa todos os dias. 
— Foi a primeira vez que você pediu para ele entrar?

     Mayella teve um pequeno sobressalto com a pergunta. Atticus fez sua pequena peregrinação às janelas, como sempre: fazia uma pergunta e olhava pela janela, à espera da resposta. Não viu o sobressalto involuntário dela, mas acho que percebeu. Virou-se e ergueu as sobrancelhas. 

— Foi a… — começou a repetir. — Foi. 
— Nunca o tinha convidado a entrar antes?

     Agora ela estava preparada para responder. 

— Não, com certeza não. 
— Um “não” é suficiente. Nunca pediu para ele fazer algum serviço para a senhorita? — perguntou Atticus calmamente. 
— Talvez. Por ali passam muitos pretos — admitiu Mayella. 
— Lembra de alguma outra vez? 
— Não. 
— Muito bem, vamos ao que aconteceu. Você disse que, quando virou para trás, Tom Robinson estava lá, certo? 
— É.

     A memória de Atticus de repente ficou muito precisa. 

— Você disse: “Ele me pegou pelo pescoço, me jogou no chão e se aproveitou de mim”… certo? 
— Foi o que eu disse. 
— Lembra dele batendo no seu rosto?

      A testemunha hesitou. 

— Você garante que ele a asfixiou. E você tentava se libertar, lembra? Você “chutou e berrou bem alto”. Lembra-se dele batendo no seu rosto?

     Mayella ficou calada. Parecia estar tentando esclarecer alguma coisa para ela mesma. Por um instante, achei que ela estava usando a minha tática e a do sr. Tate de imaginar que havia alguém na frente dela. Olhou para o sr. Gilmer. 

— É uma pergunta simples, srta. Mayella, então vou repetir. Lembra-se dele batendo no seu rosto?

     A voz de Atticus tinha perdido a gentileza, tinha ficado dura e impessoal como a de um advogado. 

— Lembra-se dele batendo no seu rosto? 
— Não, não lembro se ele me bateu. Quer dizer, sim, ele me bateu. 
— A última frase é a sua resposta? 
— Hein? Sim, ele bateu, eu... não lembro, não lembro… foi tudo tão rápido.

     O juiz Taylor olhou sério para Mayella. 

— Não comece a chorar, mocinha — ele começou a dizer, mas Atticus o interrompeu: 
— Deixe-a chorar, se quiser, meritíssimo. Temos todo o tempo do mundo.

     Mayella fungou, irritada, e olhou para Atticus. 

— Respondo tudo o que você quiser… mas não venha zombar de mim, entendeu? Respondo tudo… 
— Ótimo — disse Atticus. — Só mais umas perguntas. Srta. Mayella, sem querer ser repetitivo, mas disse que o acusado bateu em você, agarrou-a pelo pescoço, sufocou-a e se aproveitou de você. Quero garantir que estamos falando da mesma pessoa. Pode identificar o homem que a estuprou? 
— Sim, foi ele.

     Atticus virou-se para o acusado e pediu: 

— Tom, levante-se. Deixe a srta. Mayella olhar bem para você. Foi este homem, srta. Mayella?

     Os ombros fortes de Tom Robinson se enrijeceram sob a camisa de tecido fino, ele se levantou e apoiou a mão direita no encosto da cadeira. Parecia mal equilibrado, mas não era por causa da postura. O braço esquerdo dele era bem mais curto que o direito e pendia inerte junto ao corpo. Terminava em uma mão atrofiada. E mesmo de longe, no balcão onde eu estava, dava para ver que o braço era inútil. 

— Scout, olha lá! Reverendo, ele é aleijado! — disse Jem, baixinho.

      O reverendo Sykes se inclinou por cima de mim e cochichou para Jem. 

— Quando ele era menino, prendeu o braço numa máquina de tirar caroço de algodão do sr. Dolphus Raymond… Quase morreu de tanto sangrar… A máquina fez todos os músculos se desprenderem dos ossos...

      Atticus perguntou: 

— Foi este homem que a estuprou? 
— Com certeza.

     A pergunta seguinte de Atticus consistia de uma só palavra. 

— Como?

     Mayella estava furiosa. 

— Não sei como ele fez, mas fez… Eu disse que foi tão rápido que…

      — Vamos analisar com calma... — começou Atticus, mas o sr. Gilmer interrompeu com uma objeção: Atticus não estava fazendo uma pergunta irrelevante ou impertinente, mas intimidava a testemunha.

     O juiz Taylor deu uma risada. 

— Ora, sente-se, Horace, ele não está fazendo nada disso. Pelo contrário, a testemunha é que está tentando intimidar Atticus.

     O juiz Taylor foi a única pessoa no tribunal a rir. Até os bebês estavam quietos e de repente me perguntei se teriam sufocado no peito das mães. 

— Bem, srta. Mayella, declarou que o acusado a sufocou e bateu em você; não disse que ele entrou furtivamente por trás e a nocauteou com um golpe, mas que se virou e deu de cara com ele… — lembrou Atticus. Tinha voltado para a mesa e enfatizava as palavras batendo na mesa com os nós dos dedos. —… gostaria de reconsiderar suas declarações? — perguntou Atticus. 
— Quer que eu diga uma coisa que não aconteceu? — perguntou Mayella. 
— Não, quero que diga o que realmente aconteceu. Por favor, conte-nos mais uma vez como foi. 
— Eu já contei. 
— A senhorita declarou que se virou e deu de cara com ele. Ele então a asfixiou? 
— Sim. 
— Em seguida, soltou o seu pescoço e bateu em você? 
— Foi o que eu disse. 
— Ele acertou a mão direita no seu olho esquerdo? 
— Eu me abaixei e… ele não acertou o soco, foi isso. Eu me abaixei e resvalou.

      Finalmente, Mayella tinha entendido. 

— Agora, a senhorita está começando a ser clara. Um momento atrás, não conseguia lembrar direito, não é? 
— Eu disse que ele me bateu. 
— Certo. Ele a asfixiou, bateu em você e a estuprou, certo? 
— Exatamente. 
— Você é uma moça forte, o que fez nesse tempo todo? Ficou de pé, parada? 
— Eu disse que gritei, chutei e lutei.

     Atticus tirou os óculos, virou o olho direito e bom para a jovem e fez várias perguntas. O juiz Taylor pediu: 

— Uma pergunta de cada vez, Atticus. Deixe a testemunha responder. 
— Está bem. Por que não correu? 
— Tentei… 
— Tentou? Por que não conseguiu? 
— Eu… ele me derrubou. Foi isso, ele me derrubou e ficou em cima de mim. 
— Nesse tempo todo, você gritava? 
— Claro que sim. 
— Então por que as crianças não ouviram? Onde elas estavam? No lixão?

      Sem resposta. 

— Onde estavam? Por que não vieram correndo ao ouvir seus gritos? O lixão é mais perto do que o bosque, não é?

     Sem resposta. 

— Ou só gritou quando viu seu pai na janela? Não pensou em gritar antes, não é?

      Sem resposta. 

— Gritou para seu pai e não para Tom Robinson? Foi isso?

     Sem resposta. 

— Quem bateu em você: Tom Robinson ou o seu pai?

     Sem resposta. 

— O que seu pai viu pela janela: um crime de estupro ou a melhor defesa para ele mesmo? Por que não diz a verdade, filha? Bob Ewell bateu em você, não foi?

     Quando Atticus se virou, parecia estar com dor de estômago, mas o rosto de Mayella era uma mistura de terror e fúria. Atticus se sentou, exausto, e limpou a lente dos óculos com o lenço.
      De repente, Mayella resolveu falar. 

— Tenho uma coisa a dizer.

     Atticus levantou a cabeça. 

— Quer nos contar o que aconteceu?

     Mas ela não percebeu o tom compassivo do convite. 

— Vou falar só uma vez, não mais: o preto se aproveitou de mim e se esses elegantes senhores tão importantes não querem fazer nada, é porque são uns covardes fedorentos, são todos uns fedorentos. Esse ar de importância não adianta nada, esse srta. Mayella não significa nada, sr. Finch...

     Ela então chorou de verdade. Os ombros estremeciam com soluços sentidos. Cumpriu a promessa e não respondeu mais nada, nem mesmo quando o sr. Gilmer tentou colocar as coisas de volta nos eixos. Se ela não fosse tão pobre e ignorante, acho que o juiz Taylor mandaria prendê-la pelo desacato que demonstrou por todos no tribunal. De algum modo, Atticus a atingiu profundamente, não sei bem de que maneira, mas não teve nenhum prazer em fazer isso. Ele ficou sentado de cabeça baixa e nunca vi alguém olhar para outra pessoa com tanto ódio quanto Mayella ao passar por Atticus.
     Quando o sr. Gilmer disse ao juiz Taylor que o Estado tinha terminado o interrogatório, o juiz avisou: 

— Está na hora de um intervalo. Dez minutos.

     Atticus e o sr. Gilmer se reuniram em frente ao banco das testemunhas e conversaram em voz baixa. Depois, saíram por uma porta atrás da tribuna das testemunhas, o que foi sinal para nós esticarmos as pernas. Só então percebi que eu tinha ficado sentada na ponta do comprido banco e estava meio dolorida. Jem levantou-se e bocejou, Dill fez o mesmo e o reverendo passou o chapéu pelo rosto. Ele disse que a temperatura era de, no mínimo, trinta graus.
     O sr. Braxton Underwood, que tinha sentado em silêncio numa cadeira reservada para os jornalistas e cujo cérebro esponjoso estava encharcado de depoimentos, passou os olhos pelo balcão dos negros e me viu. Resmungou algo e desviou o olhar. 

— Jem, o sr. Underwood nos viu — avisei. 
— Tudo bem, ele não vai contar para Atticus. Vai só publicar na coluna social da Tribune.

     Jem se virou para Dill, explicando, acho, os detalhes mais importantes do julgamento para ele e fiquei pensando quais seriam. Não tinha havido nenhum debate acalorado entre Atticus e o sr. Gilmer; o sr. Gilmer parecia estar acusando quase contra a vontade; as testemunhas foram levadas pelo cabresto como se faz com os burros, sem muitas objeções. Mas Atticus tinha nos dito uma vez que nos julgamentos presididos pelo juiz Taylor os advogados que conjecturavam demais sobre as provas acabavam provocando severas orientações do juiz ao júri. Papai disse isso para mostrar que o juiz Taylor podia parecer indolente e sonolento, mas suas decisões raramente eram revogadas, o que era a verdadeira prova dos nove. Atticus dizia que ele era um bom juiz.
     Pouco depois, o juiz voltou à sala do tribunal e sentou-se em sua cadeira giratória. Pegou um charuto no bolso do colete e examinou-o atentamente. Cutuquei Dill. Depois de passar pela inspeção do juiz, o charuto recebeu uma bela mordida. 

— Às vezes, a gente vem aqui só para ver ele fazendo isso. — expliquei. — Vai passar o resto da tarde mastigando o charuto, repara só.

      Sem saber que estava sendo observado do balcão, o juiz cortou com o dente a ponta do charuto e soprou-a longe com um fluct! Acertou numa escarradeira com tal precisão que ouvimos a ponta cair lá dentro. 

— Aposto que ele era campeão no arremesso de bolinhas de papel com canudo — Dill cochichou.

     Em geral, no intervalo há uma debandada, mas naquele dia ninguém saiu da sala. Até os membros do Clube dos Ociosos que não conseguiram constranger os mais jovens para que cedessem os lugares para eles, continuaram de pé encostados nas paredes. Acho que o sr. Heck Tate reservou o banheiro do tribunal para uso dos funcionários.
     Atticus e o sr. Gilmer voltaram e o juiz consultou o relógio de pulso. 

— São quase quatro horas — disse, o que era estranho, pois o relógio do tribunal devia ter batido as horas no mínimo duas vezes. Eu não ouvi nem senti suas vibrações. 
— Atticus, que tal terminarmos esta tarde? — perguntou o juiz. 
— Acho possível — respondeu Atticus. 
— Quantas testemunhas ainda tem? 
— Uma. 
— Chame-a.

continua página 137...
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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988 
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês 
TO KILL A MOCKINGBIRD 
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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930.

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