sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (15.1) - a promessa de morrer

Cem Anos de SOLIDÃO


Gabriel Garcia Márquez


(15.1)
para jomí garcía ascot
e maría luisa elío


     ÚRSULA TEVE DE fazer um grande esforço para cumprir a promessa de morrer quando estiasse. Os clarões de lucidez, tão escassos durante a chuva, fizeram-se mais frequentes a partir de agosto, quando começou a soprar o vento árido que sufocava as roseiras e petrificava as lagoas e acabou por espalhar sobre Macondo a poeira abrasadora que cobriu para sempre os enferrujados tetos de zinco e as amendoeiras centenárias. Úrsula chorou de tristeza ao descobrir que por mais de três anos tinha servido de brinquedo para as crianças. Lavou a cara borrada de tintas, tirou de cima de si os trapos coloridos, as lagartixas e os sapos ressecados, e as camândulas e antigos colares árabes que lhe haviam pendurado por todo o corpo, e pela primeira vez desde a morte de Amaranta abandonou a cama sem o auxílio de ninguém, para se incorporar de novo à vida familiar. O ânimo do coração invencível orientava-a nas trevas. Os que repararam nos seus tropeções e depararam com o seu braço arcangélico sempre levantado à altura da cabeça pensaram que a muito custo aguentava com o corpo, mas ainda não acreditaram que estava cega. Ela não precisava ver para notar que os canteiros de flores, cultivados com tanto esmero desde a primeira reconstrução, tinham sido destruídos pela chuva e arrasados pelas escavações de Aureliano Segundo, e que as paredes e o cimento do chão estavam rachados, os móveis bambos e desbotados, as portas desniveladas e a família ameaçada por um espírito de resignação e desgraça que não teria sido concebível em seu tempo. Movendo-se às apalpadelas pelos quartos vazios, percebia o ronco contínuo do cupim furando as madeiras e o tesourar da traça no guarda-roupas e o estrépito devastador das enormes formiga ruivas que tinham prosperado no dilúvio e estavam escavando o cimento da casa. Um dia abriu o baú dos santos e teve que pedir auxílio a Santa Sofía de la Piedad para se livrar das baratas que pularam de dentro e que já haviam pulverizado a roupa. “Não é possível viver neste desleixo”, dizia. “Neste caminho vamos acabar sendo devorados pelos bichos.” A partir daí não teve um minuto de descanso. De pé antes do amanhecer, recorria a quem estivesse disponível, inclusive às crianças. Pôs ao sol as escassas roupas que ainda estavam em condições de serem usadas, afugentou as baratas com inesperados ataques de inseticida, raspou as veias do cupim nas portas e janelas e asfixiou as formigas com cal virgem nas suas galerias. A febre da restauração acabou por levá-la aos quartos esquecidos. Fez desembaraçar de escombros e teias de aranha o quarto onde José Arcadio Buendía tinha queimado os miolos procurando a pedra filosofal, colocou em ordem a oficina de ourivesaria, que fora revirada pelos soldados, e por fim pediu as chaves do quarto de Melquíades para ver em que estado se encontrava. Fiel à vontade de José Arcadio Segundo, que havia proibido qualquer intromissão enquanto não houvesse um indício real de que tivesse morrido, Santa Sofía de la Piedad recorreu a toda espécie de subterfúgios para desorientar Úrsula. Mas era tão inflexível a sua determinação de não abandonar aos insetos nem o mais escondido e inútil canto da casa que derrubou quantos obstáculos lhe puseram pela frente e ao fim de três dias de insistência conseguiu fazer com que lhe abrissem o quarto. Teve que se agarrar no marco da porta para que o mau cheiro não a derrubasse, mas foram necessários apenas dois segundos para que ela se lembrasse de que ali estavam guardados os setenta e dois penicos das colegiais e que numa das primeiras noites de chuva uma patrulha de soldados tinha revistado a casa procurando José Arcadio Segundo e não pudera encontrá-lo. 

— Bendito seja Deus! — exclamou, como se o estivesse enxergando perfeitamente. — Tanto trabalho para lhe ensinar boas maneiras e você acaba vivendo como um porco.

     José Arcadio Segundo continuava relendo os pergaminhos. A única coisa visível na intrincada maranha de cabelo eram os dentes listrados de lama verde e os olhos imóveis. Ao reconhecer a voz da bisavó, virou a cabeça para a porta, tratou de sorrir e, sem saber, repetiu uma antiga frase de Úrsula.

— Que se há de fazer — murmurou — o tempo passa. 
— É verdade — disse Úrsula — mas não tanto. 

     Ao dizê-lo, teve consciência de estar dando a mesma resposta que recebera do Coronel Aureliano Buendía na sua cela de sentenciado e mais uma vez estremeceu com a comprovação de que o tempo não passava, como ela acabava de admitir, mas girava em círculo. Nem assim, porém, deu oportunidade à resignação. Ralhou com José Arcadio Segundo como se ele fosse uma criança e se empenhou em fazê-lo tomar banho e se barbear e emprestar a sua força para acabar de restaurar a casa. A simples ideia de abandonar o quarto que lhe havia proporcionado a paz aterrorizou José Arcadio Segundo. Gritou que não havia poder humano capaz de fazê-lo sair, porque não queria ver o trem de duzentos vagões carregados de mortos que toda tarde partia de Macondo para o mar. “São todos os que estavam na estação”, gritava. “Três mil quatrocentos e oito.” Só então Úrsula compreendeu que ele estava num mundo de trevas mais impenetrável que o seu, tão intransponível e solitário como o do bisavô. Deixou-o no quarto, mas conseguiu que não voltassem a botar cadeado na porta, que fizessem a limpeza todos os dias, que jogassem os penicos no lixo e só deixassem um, e que mantivessem José Arcadio Segundo tão limpo e apresentável como estivera o bisavô no seu longo cativeiro debaixo do castanheiro. No começo, Fernanda interpretava aquela faina como um acesso de loucura senil e a muito custo reprimia a exasperação. Mas José Arcadio anunciou-lhe de Roma por essa época que pensava vir a Macondo antes de fazer os votos perpétuos e a boa notícia infundiu-lhe tal entusiasmo que de um momento para outro se viu regando as flores quatro vezes ao dia para que filho não fosse ter má impressão da casa. Foi esse mesmo incentivo que a induziu a apressar a sua correspondência com os médicos invisíveis e a repor na varanda os vasos de fetos e orégão e os de begônias, muito antes de Úrsula perceber que tinham sido destruídos pela fúria exterminadora de Aureliano Segundo. Mais tarde vendeu a baixela de prata e comprou louça de cerâmica, sopeiras e conchas de folha e talheres de alpaca, e empobreceu com eles as cristaleiras acostumadas a louça da Companhia das Índias e com os cristais da Boêmia. Úrsula tentava ir sempre mais longe. “Abram portas janelas”, gritava. “Façam carne e peixe, comprem as tartarugas maiores, que os forasteiros venham estender as esteiras nos cantos e urinar nas roseiras, que se sentem a à para comer quantas vezes quiserem e que arrotem e praguejem e sujem tudo de lama com as suas botas e façam conosco o que tiverem vontade, porque esta é a única maneira de espantar a ruína.” Mas era uma ilusão vã. Já estava velha demais e vivendo de sobra para repetir o milagre dos animaizinhos de caramelo e nenhum dos seus descendentes herdara sua fortaleza. A casa continuou fechada por ordem de Fernanda. Aureliano Segundo, que tornara a levar os seus baús para a casa de Petra Cotes, mal dispunha de meios para que família não morresse de fome. Com a rifa da mula, Petra Cotes e ele tinham comprado outros animais com os quais conseguiram montar um negócio rudimentar de rifas. Aureliano Segundo andava de casa em casa oferecendo os bilhetinhos que ele mesmo pintava com tinta de cor para torná-los mais atraentes e convincentes e talvez não percebesse que muitos compravam por gratidão e a maioria por compaixão. Entretanto, mesmo os mais piedosos compradores adquiriam a oportunidade de ganhar um leitão por vinte centavos ou uma novilha por trinta e dois e se entusiasmavam tanto com a esperança que na noite de terça-feira abarrotavam o quintal de Petra Cotes esperando o momento em que uma criança escolhida ao acaso tirasse da bolsa o número premiado. Aquilo não demorou em se transformar numa feira semanal, pois desde o entardecer se instalavam no quintal mesas de frituras e tendas de bebidas, e muitos dos favorecidos sacrificavam ali mesmo o animal ganho, com a condição de que os outros dessem a música e a aguardente, de modo que sem tê-lo desejado Aureliano Segundo encontrou-se de repente tocando outra vez o acordeão e participando de modestos torneios de voracidade. Estas humildes réplicas das farras de outros tempos serviram para que o próprio Aureliano Segundo descobrisse o quanto tinha decaído o seu ânimo e até que ponto tinha secado o seu gênio de tocador de cumbia. Era um homem mudado. Os cento e vinte quilos que chegara a ter na época em que fora desafiado pela Elefanta tinham-se reduzido a setenta e oito; a cândida e estofada cara de tartaruga se transformara em cara de iguana, e sempre estava próxima do aborrecimento e do cansaço. Para Petra Cotes, entretanto, nunca tinha sido melhor homem do que no momento, talvez porque confundisse com o amor a compaixão que ele lhe inspirava e o sentimento de solidariedade que em ambos a miséria tinha despertado. A cama desmantelada deixou de ser lugar de exaltações e se transformou em refúgio de confidências. Liberados dos espelhos repetidores que tinham vendido para comprar animais de rifa e dos damascos e veludos concupiscentes que a mula comera, ficavam acordados até muito tarde com a inocência de dois avós insones, aproveitando para fazer cálculos e contar centavos o tempo que antes esbanjavam em se esbanjarem a si próprios. As vezes eram surpreendidos pelos primeiros galos fazendo e desfazendo montinhos de moedas, tirando um pouco daqui para botar ali, de modo a que este chegasse para contentar Fernanda, aquele para os sapatos de Amaranta Úrsula, este outro para Santa Sofía de la Piedad, que não estreava um vestido desde seu tempo de mocinha, este para mandar fazer o caixão se Úrsula morresse, este para o café que subia um centavo por libra de três em três meses, este para o açúcar que cada vez adoçava menos, este para a lenha que ainda estava molhada pelo dilúvio, este outro para o papel a tinta de cores dos bilhetes, e aquele que sobrava para ir amortizando o valor da vitela de abril, da qual milagrosamente salvaram a pele, porque teve carbúnculo sintomático quando estavam vendidos quase todos os números da rifa. Eram tão puras aquelas missas de pobreza que sempre destinavam a melhor parte a Fernanda, e nunca o fizeram por remorso ou por caridade, mas porque o bem-estar dela lhes importava mais que o seu próprio. O que na verdade acontecia, embora nenhum dos dois percebesse, era que ambos pensavam em Fernanda como na filha que gostariam de ter e não tiveram a ponto de em certa ocasião se terem resignado a comer angu durante três dias para que ela pudesse comprar uma toalha holandesa. Entretanto, por mais que se matassem de trabalho, por mais dinheiro que surrupiassem e por mais truques que imaginassem, os seus anjos da guarda dormiam de cansaço enquanto eles punham e tiravam moedas tentando apenas que desse para viver. Na insônia que lhes traziam as contas ruins perguntavam-se o que tinha acontecido no mundo para que os animais não parissem com o mesmo desconcerto de antes por que o dinheiro se esvaía das mãos e por que o povo que há pouco tempo queimava maços de notas na cumbia considerava um assalto à mão armada cobrar doze centavos pela rifa de seis galinhas. Aureliano Segundo pensava sem dizer que o mal não estava no mundo, mas em algum lugar oculto do misterioso coração de Petra Cotes, onde acontecera alguma coisa durante o dilúvio que tornara os animais estéreis e o dinheiro fugidio. Intrigado com esse enigma, penetrou tão profundamente os sentimentos dela que procurando o interesse encontrou o amor, pois tentando fazer com que ela o amasse acabou por amá-la. Petra Cotes, por outro lado, amava-o mais à medida que sentia aumentar o seu carinho, e foi assim que na plenitude do outono voltou a acreditar na superstição juvenil de que a pobreza era uma servidão de amor. Ambos evocavam agora como um estorvo as farras desatinadas, a riqueza aparatosa e a fornicação sem freios, e se lamentavam de quanta vida lhes custara encontrar o paraíso da solidão partilhada. Loucamente apaixonados ao fim de tantos anos de cumplicidade estéril, gozavam o milagre de se amarem tanto na mesa como na cama, e chegaram a ser tão felizes que quando já eram dois anciãos esgotados continuavam brincando como coelhinhos e brigando como cachorros.
     As rifas nunca mais deram nada. No começo, Aureliano Segundo se ocupava durante três dias da semana, fechado no seu antigo escritório de criador de gado em desenhar bilhete por bilhete, pintando com um certo primor uma vaquinha vermelha, um porquinho verde ou um grupo de galinhas azuis, conforme fosse o animal rifado, e modelava com uma boa imitação das letras de imprensa o nome que pareceu bom a Petra Cotes para batizar o negócio: Rifas da Divina Providência. Mas, com o tempo, ficou tão cansado de desenhar até dois mil bilhetes por semana que mandou fazer os animais, o nome e os números em carimbos de borracha, e então o trabalho se reduziu a umedecê-los em almofadinhas de cores diferentes. Nos últimos anos ocorreu-lhes substituir os números por adivinhações, de modo a que o prêmio se repartisse entre todos os que acertassem, mas o sistema acabou por ser tão complicado e se prestar a tantas desconfianças que desistiram na segunda tentativa.
      Aureliano Segundo andava tão ocupado tentando consolidar o prestígio das suas rifas que mal lhe sobrava tempo para ver as crianças. Fernanda colocou Amaranta Úrsula numa escolinha particular onde não se recebiam mais de seis alunas, mas se negou a permitir que Aureliano frequentasse a escola pública. Achava que já tinha cedido demais ao aceitar que abandonasse o quarto. Além disso, nas escolas dessa época só se recebiam filhos legítimos de casamentos católicos e, na certidão de nascimento que tinham prendido com um alfinete de fralda na camisolinha de Aureliano quando o mandaram para casa, ele estava registrado como enjeitado. De modo que ficou trancado, à mercê da vigilância caritativa de Santa Sofía de la Piedad e das alternativas mentais de Úrsula, descobrindo o estreito mundo da casa conforme o explicavam as avós. Era fino, orgulhoso, de uma curiosidade que exasperava os adultos, mas ao contrário do olhar inquisitivo e às vezes clarividente que tivera o coronel na sua idade, o seu era piscador e um pouco distraído. Enquanto Amaranta Úrsula estava no jardim de infância, ele caçava minhocas e torturava insetos no jardim. Mas uma vez em que Fernanda o surpreendeu guardando escorpiões numa caixa para pô-los na esteira de Úrsula, prendeu-o no antigo quarto de Meme, onde se distraiu das suas horas solitárias repassando as figurinhas da enciclopédia. Ali o encontrou Úrsula numa tarde em que andava aspergindo a casa com água benta e um ramo de urtigas, e apesar de ter estado com ele muitas vezes, perguntou-lhe quem era.

— Sou Aureliano Buendía — disse ele. 
— É verdade — ela respondeu. — Já é hora de começar a aprender ourivesaria.

     Voltou a confundi-lo com o filho, porque o vento cálido que sucedera ao dilúvio e infundira no cérebro de Úrsula os clarões eventuais de lucidez tinha acabado de passar. Não voltou a recobrar a razão. Quando entrava no quarto, lá encontrava Petronila Iguarán, com as incômodas anquinhas e o casaquinho de miçangas que usava nas visitas de cerimônia, e encontrava Tranquilina Maria Miniata Alacoque Buendía, sua avó, abanando-se com uma pena de pavão na sua cadeira de balanço de entrevada, e seu bisavô Aureliano Arcadio Buendía com o seu falso dólmã da guarda vice-real, e Aureliano Iguarán, seu pai, que tinha inventado uma oração para que secassem e caíssem os carrapatos das vacas, e a tímida da sua mãe, e o primo com o rabo de porco, e José Arcadio Buendía e seus filhos mortos, todos sentados em cadeiras encostadas na parede, como se não estivessem numa visita, mas num velório. Ela alinhavava uma conversa colorida, comentando assuntos de lugares distantes e tempos sem coincidência, de modo que quando Amaranta Úrsula voltava da escola e Aureliano se cansava da enciclopédia, encontravam-na sentada na cama, falando sozinha, e perdida num labirinto de mortos. “Fogo!”, gritou uma vez aterrorizada e, por um instante, semeou o pânico pela casa, mas o que estava anunciando era o incêndio de uma cavalariça que tinha presenciado aos quatro anos de idade. Chegou a misturar de tal modo o passado com a atualidade que nos dois ou três clarões de lucidez que teve antes de morrer ninguém soube ao certo se falava do que sentia ou do que recordava. Pouco a pouco foi-se reduzindo, fetizando-se, mumificando-se em vida, a ponto de nos últimos meses ser uma ameixa seca perdida dentro da camisola, e o braço sempre levantado acabou por parecer com a pata de um macaco. Ficava imóvel vários dias e Santa Sofía de la Piedad tinha que sacudi-la para se convencer de que estava viva e a sentava no colo para alimentá-la com colherinhas de água com açúcar. Parecia uma anciã recém-nascida. Amaranta Úrsula e Aureliano levavam-na e traziam-na pelo quarto, deitavam-na no altar para ver que era pouco maior que o Deus Menino e, numa tarde, esconderam-na num armário da despensa onde as ratazanas poderiam tê-la comido. Num Domingo de Ramos entraram no quarto enquanto Fernanda estava na missa e carregaram Úrsula pela nuca e pelos tornozelos.

— Coitada da tataravozinha — disse Amaranta Úrsula— morreu de velhice. Úrsula se sobressaltou. 
— Estou viva! — disse. 
— Olha só — disse Amaranta Úrsula, escondendo o riso — nem sequer respira. 
— Estou falando! — gritou Úrsula. 
— Nem sequer fala — disse Aureliano. — Morreu como um passarinho. 

     Então Úrsula se rendeu à evidencia. “Meu Deus”, exclamou em voz baixa. “Quer dizer que isto é a morte.” Começou uma oração interminável, atropelada, profunda, que se prolongou por mais de dois dias e que na terça-feira tinha degenerado numa barafunda de súplicas a Deus e de conselhos práticos para que as formigas ruivas não derrubassem a casa, para que nunca deixassem apagar a lâmpada diante do retrato de Remedios e para que cuidassem de que nenhum Buendía viesse a casar com alguém do mesmo sangue, porque filhos nasciam com rabo de porco. Aureliano Segundo tratou de aproveitar o delírio para que ela lhe confessasse onde estava enterrado o ouro, mas outra vez as súplicas foram inúteis “Quando aparecer o dono”, Úrsula disse, “Deus há de iluminá-lo para que o encontre.” Santa Sofía de la Piedad teve a certeza de que a encontraria morta de um momento para o outro, porque observava por esses dias uma certa confusão na natureza: as rosas cheiravam a quenopódio, caíra-lhe uma cuia de grãos-de-bico no chão e os grãos ficaram em ordem geométrica perfeita, em forma de estrela-do-mar, e certa noite vira passar no céu uma fila de discos luminosos alaranjados Amanheceu morta na quinta-feira santa. Na última vez em que a ajudaram a fazer as contas da sua idade, na época da companhia bananeira, calcularam-na entre os cento e quinze e os cento e vinte e dois anos. Enterraram-na num caixãozinho que era pouco maior que a cestinha em que fora trazido Aureliano e muito pouca gente assistiu ao enterro, em parte porque não eram muitos os que se lembravam dela e em parte porque nesse meio-dia fez tanto calor que os pássaros desorientados se arrebentavam como perdigotos contra as paredes e rasgavam as telas metálicas das janelas para morrer nos quartos.

continua página 205...
Cem Anos de Solidão (15.1) - a promessa de morrer
___________________

Nenhum comentário:

Postar um comentário