sexta-feira, 4 de abril de 2025

A Montanha Mágica - Temor nascente. Dos dois avôs e do passeio de barca ao crepúsculo (c)

Thomas Mann


A Montanha Mágica 


Capítulo IV

Temor nascente. Dos dois avôs e do passeio de barca ao crepúsculo

continuando...

     Fosse como fosse – continuou ele na marcha dos seus pensamentos –, era impossível que o advogado Settembrini, ao levar uma vida dessas e em face de tão vastas atividades, houvesse chegado a ser um grande jurisconsulto. Mas, segundo as afirmações plausíveis de seu neto, fora o princípio geral da justiça o que o animara desde a infância até o fim da vida. Hans Castorp, embora não tivesse, nesse momento particular, a cabeça sobremodo lúcida e sentisse o seu organismo ocupado com a digestão dos seis pratos de uma refeição do Berghof, procurou compreender o que Settembrini queria dizer ao chamar esse princípio de “fonte da liberdade e do progresso”. Essa última palavra significara para Hans Castorp, até então, qualquer coisa parecida com o desenvolvimento dos guindastes no decorrer do século XIX. Agora verificava que o Sr. Settembrini não desprezava essas coisas, seguindo nesse ponto, evidentemente, o exemplo do avô. O italiano rendia à pátria dos seus dois ouvintes uma grande homenagem em vista do fato de terem sido inventados ali a pólvora, que fizera ferro-velho das armaduras do feudalismo, e o prelo, que possibilitara a difusão democrática das ideias, quer dizer, a difusão das ideias democráticas. Quanto a isso, elogiava a Alemanha, e também pelo que se referia ao passado dela, se bem que lhe parecesse de justiça conceder a palma ao seu próprio país, uma vez que este fora o primeiro a desfraldar a bandeira do esclarecimento, da cultura e da liberdade, enquanto os demais povos ainda vegetavam presos na superstição e na servidão. Porém, se Settembrini tratava a técnica e o tráfego – o campo de trabalho propriamente dito de Hans Castorp – com tanta reverência como já demonstrara por ocasião do primeiro encontro com os primos, junto ao banco na encosta da montanha, aparentemente não o fazia por amor a essas forças, senão por causa da importância que elas tinham para o aperfeiçoamento moral dos homens, e que ele constatava com satisfação. A técnica – expôs Settembrini – subjugava cada vez mais a natureza, pelas comunicações que criava, pelas redes de estradas e telégrafos que construía, e pelas vitórias que conquistava sobre as diferenças de clima; dessa forma apresentava-se como o meio mais seguro para aproximar os povos, para favorecer o contato entre eles, para levá-los a acordos humanos, para destruir os preconceitos existentes, e, finalmente, para estabelecer a união universal. A raça humana tinha a sua origem na escuridão, no medo e no ódio, mas avançava e subia por um caminho brilhante, rumo a um estado terminal de simpatia, luminosidade íntima, bondade e felicidade. O veículo mais apropriado para transpor esse caminho era a técnica, declarou Settembrini. Mas, ao falar assim, associava, num abrir e fechar de olhos, categorias que Hans Castorp até então imaginara separadas por um largo abismo. “Técnica e moral”, disse o italiano, e a seguir entrou mesmo a falar do Salvador cristão, que fora o primeiro a revelar o princípio da igualdade e da união; depois, o prelo viera favorecer poderosamente a divulgação desse princípio, e por fim a grande Revolução Francesa fizera dele uma lei. Por razões pouco definíveis, mas muito reais, parecia isso sumamente confuso ao jovem Hans Castorp, se bem que o Sr. Settembrini o formulasse em palavras tão claras e tão belas. Uma vez – contou o italiano – uma única vez na vida, ao começo da sua maturidade, o avô sentira-se plenamente feliz: foi ao receber a notícia da Revolução de Julho em Paris. Em altos brados e publicamente proclamara então que todos os homens, um dia, equiparariam aqueles três dias de Paris aos seis dias da Criação. Nesse instante, Hans Castorp não pôde evitar bater com o punho na mesa e experimentar uma surpresa extraordinária. Achava um pouco forte colocar os três dias de verão do ano de 1830, durante os quais os parisienses haviam dado a si próprios uma nova Constituição, ao lado dos seis dias no decorrer dos quais Deus, Nosso Senhor, separara a terra firme da água e criara as luzes eternas do firmamento, bem como as flores, as árvores, as aves, os peixes e tudo quanto vive; e ainda mais tarde, ao conversar a sós com seu primo Joachim, disse expressamente que essa afirmação lhe parecia muito forte e até mesmo chocante.
     Mas estava disposto a deixar-se influenciar, no sentido do provérbio segundo o qual era agradável experimentar. Assim refreou o protesto que sua piedade e seu bom gosto faziam contra a concepção settembriniana das coisas, ponderando que aquilo que se lhe afigurava blasfêmia podia ser qualificado de audácia, e que as aparentes banalidades talvez tivessem sido manifestações de generosidade e nobre entusiasmo, pelo menos naquele país e naquela época, como, por exemplo, quando o avô de Settembrini chamara as barricadas “o trono do povo” e declarara que cumpria “consagrar a lança do cidadão sobre o altar da humanidade”.
     Hans Castorp sabia por que escutava os discursos do Sr. Settembrini; não que fosse capaz de explicar os motivos com clareza, mas sabia-os. Havia entre eles uma espécie de senso do dever, além daquela ausência de responsabilidade, peculiar às férias de um viageiro e visitante, que não se fecha a nenhuma impressão e deixa as coisas se aproximarem, na certeza de que amanhã ou depois abrirá as asas e voltará à ordem habitual. Era, por conseguinte, como que uma voz da consciência, e para ser exato, o preceito e a exortação da sua consciência pesada, o que o induzia a prestar atenção ao italiano -sentado de pernas cruzadas, a fumar o Maria Mancini, ou subindo com ele e o primo pela estrada que conduzia do bairro inglês ao Berghof.
     Segundo as digressões de Settembrini, havia dois princípios que disputavam a posse do mundo: a força e o direito, a tirania e a liberdade, a superstição e a ciência, o princípio da estagnação e o do movimento efervescente, do progresso. Podia-se chamar a um o princípio asiático e ao outro o europeu, visto ser a Europa a terra da rebelião, da crítica e da atividade transformadora, ao passo que o continente oriental encarnava a imobilidade, o repouso inerte. Não existia a menor dúvida quanto à questão de saber qual das duas forças terminaria por triunfar; só poderia ser a da luz, a do aperfeiçoamento guiado pela razão. Pois a humanidade arrastava mais e mais povos pelo seu caminho brilhante; ganhava cada vez mais terreno na própria Europa e estava a ponto de penetrar na Ásia. No entanto, faltava ainda muito para que a sua vitória fosse completa, e grandes, magnânimos esforços eram exigidos dos homens de boa vontade, dos que haviam recebido a luz, até que raiasse o dia em que desmoronassem as monarquias e as religiões também naqueles países que na verdade nunca tinham gozado o seu século XVIII nem seu ano de 1789.
     Mas esse dia haveria de chegar, disse Settembrini, esboçando um fino sorriso sob a curva do bigode. Se não chegasse pelos pés das pombas, chegaria sobre as asas das águias. Nasceria como a aurora da confraternização geral dos povos sob o signo da razão, da ciência e do direito. Acarretaria a santa aliança da democracia dos cidadãos, em esplêndido contraste com aquela três vezes infame aliança dos príncipes e dos gabinetes, cujo inimigo mortal foi o avô Giuseppe; numa palavra, a República Universal. Mas, para alcançar esse objetivo final era, antes de mais nada, necessário ferir o princípio asiático, o princípio servil da inércia, no centro e no nervo vital da sua resistência, que era Viena. Tratava-se de vencer, de aniquilar a Áustria, primeiro para tirar desforra das suas façanhas do passado, e depois para encaminhar o reino da justiça e da felicidade sobre a terra.
     Esse último rumo e essa conclusão das altissonantes expansões de Settembrini já não interessavam a Hans Castorp. Causavam-lhe desagrado e até o chocavam porque via neles a expressão de um rancor pessoal ou nacional, cada vez que se repetiam. No que tocava a Joachim Ziemssen – quando ele ouvia o italiano discorrer dessa forma, voltava mesmo a cabeça, de cenho carregado, e cessava de escutar; às vezes também dizia que estava na hora do repouso ou tentava mudar de assunto. Hans Castorp tampouco se sentia obrigado a prestar atenção a ideias tão extravagantes, que, evidentemente, ultrapassavam os limites das influências que a voz da sua consciência lhe aconselhava admitir, a título de experiência; e essa voz era todavia tão forte que ele próprio se punha a pedir ao Sr. Settembrini lhe explanasse as suas ideias, sempre que o italiano ia sentar-se à mesa dos primos ou os acompanhava durante um passeio.
     Essas ideias, esses ideais e essas aspirações, observou Settembrini, faziam parte das tradições da sua família. Pois os três lhe haviam consagrado a vida e as forças do espírito: o avô, o pai e o neto, cada qual à sua maneira, o pai não menos que o avô, se bem que não tivesse sido, como este, um agitador político e um paladino da liberdade, senão um sábio quieto e delicado, um humanista que vivia amarrado à sua escrivaninha. Mas, que era afinal o humanismo? Era o amor aos homens, nada mais, nada menos, e por isso mesmo implicava também a política, a insurreição contra tudo quanto mancha e desonra a dignidade humana. .Haviam censurado ao humanismo o apreço exagerado da forma; mas ele cultivara a bela forma unicamente por amor à dignidade humana, em esplêndida oposição à Idade Média, que vivia não só entregue à misantropia e à superstição, como também enfeada por uma ignominiosa falta de forma. Desde os seus inícios, defendera a causa do homem, os interesses terrenos, a liberdade do pensamento e o prazer de viver, opinando que o céu, por motivos de equidade, pertencia aos pardais. Ah, Prometeu! Fora ele o primeiro humanista e idêntico àquele Satã, ao qual Carducci dedicara o seu hino... Oh, meu Deus, se os primos pudessem ouvir como o velho inimigo da Igreja, em Bolonha, maldizia e zombava da sensibilidade cristã do Romantismo! Dos hinos sacros de Manzoni! Da poesia de sombras e luares dos românticos, que ele comparava à “Lua, a pálida monja celeste!” Per Bacco, que prazer sublime, escutar esse homem! E também deveriam ter ouvido Carducci interpretando Dante: celebrara-o como cidadão de uma metrópole, que defendia, contra a ascese e a negação do mundo, a força ativa que revolucionava e melhorava o mundo. Ora vejam, não era a sombra enfermiça e mística de Beatriz a quem o poeta honrava sob o nome de “donna gentile e pietosa”; pelo contrário, assim designava a esposa que no poema representava o princípio do conhecimento das coisas deste mundo e da atividade prática na vida.
     Dessa maneira, Hans Castorp aprendia isto e aquilo sobre Dante, e da melhor das fontes. Não se fiava irrestritamente nesses seus novos conhecimentos, dado o espírito estouvado de quem lhe servia de intermediário. Mesmo assim, valia a pena saber que Dante fora um cidadão de uma metrópole e tivera um espírito vivaz. E a seguir, Hans Castorp prestava atenção ao que Settembrini contava de si próprio. Declarava o italiano que no neto Lodovico, isto é, em sua pessoa, se haviam combinado as tendências dos seus ascendentes imediatos, a cívica do avô e a humanística do pai. Assim ele se tornara um literato, um escritor livre. Pois a literatura não era outra coisa senão isto: a associação de humanismo e política, associação que se realizava com a maior naturalidade, visto o próprio humanismo ser política e a política significar humanismo... A essa altura das explanações, Hans Castorp escutava com grande atenção, esforçando-se por compreender tudo direitinho; pois esperava aprender finalmente em que consistia a crassa ignorância do cervejeiro Magnus e ficar sabendo por que a literatura era outra coisa que não “belos caracteres”. Settembrini perguntou se os primos já tinham ouvido falar de Brunetto, Brunetto Latini, escrivão municipal de Florença, por volta de 1250, e autor de um livro sobre as virtudes e os vícios. Esse mestre fora o primeiro a esmerilar a cultura dos florentinos e a ensinar lhes a oratória bem como a arte de dirigir a sua república conforme as regras da política. – Aí está, meus senhores! – exclamou Settembrini. – Aí está! – E passou a falar do “verbo”, do culto do verbo, da eloquência, que qualificou de humanidade. Pois o verbo era a honra dos homens, e só ele tornava a vida digna de seres humanos. Não somente o humanismo, mas também a humanidade em geral, toda dignidade humana, todo respeito pelos homens e toda estima que eles sentiam de si próprios, eram inseparáveis do verbo, e por conseguinte, da literatura... (– Está vendo? – disse Hans Castorp mais tarde ao primo. – Está vendo que na literatura o que importa são as belas palavras? Eu percebi logo...) – E dessa forma, prosseguiu o italiano, achava-se também a política ligada à literatura, ou melhor, tinha a sua origem na aliança, na fusão de humanidade e literatura, já que a bela palavra gerava a bela ação. Faz dois séculos, disse Settembrini, vivia no país dos senhores um velho poeta, um excelente conservador, que atribuía suma importância à beleza da caligrafia, porque, segundo a sua opinião, esta conduzia à beleza do estilo. Devia ter ido um pouco mais longe e dizer que um belo estilo conduz a belas ações. Pois escrever bem já era quase pensar bem, e daí a agir bem não havia muita distância. Toda moralidade e todo aperfeiçoamento moral derivava do espírito da literatura, desse pundonor humano que era ao mesmo tempo o espírito da humanidade e da política. Sim, tudo isso era uno e indivisível, era uma e a mesma força e ideia, e podia ser resumido num único termo. Qual era esse termo? Ora, ele se compunha de sílabas familiares cujo significado e cuja majestade os primos, sem dúvida, nunca haviam compreendido. Seu nome era: civilização! E ao pronunciar essa palavra, Settembrini ergueu a amarelada mãozinha direita como quem faz um brinde.
     O jovem Hans Castorp achava tudo isso digno de ser escutado -sem compromisso e a título de experiência apenas, mas em todo caso digno de atenção. Foi nesse sentido que falou com Joachim Ziemssen, o qual, porém, por andar com o termômetro na boca, não podia responder senão indistintamente, e que a seguir se mostrou por demais ocupado em decifrar os graus e inscrevê-los na papeleta, para que pudesse formular uma opinião acerca dos pontos de vista de Settembrini. Hans Castorp, porém, inteirava-se, cheio de boa vontade, dessas opiniões e abria-lhes o seu íntimo, a fim de estudá-las; o que deixa ver quanta vantagem leva o homem acordado sobre o homem que dorme estupidamente – pois, nos seus sonhos, já acontecera diversas vezes a Hans Castorp tratar o Sr. Settembrini, à queima-roupa, de tocador de realejo, e procurar empurrá-lo com toda a força, porque “era demais ali”. Mas, como homem acordado, ouvia-o atenta e cortesmente e esforçava-se com muita imparcialidade por suavizar e diminuir a oposição que nele desejava levantar-se contra as ideias e as exposições do seu mentor. Não se pode negar que tal oposição existia na sua alma; baseava-se em resistências antigas que sempre haviam operado ali e também em outras, resultantes da situação presente, das experiências ora indiretas ora secretas que Hans Castorp fazia ali em cima.
     Que é o homem, e com quanta facilidade pode ser ludibriada a sua consciência! Como é perito na arte de perceber na própria voz do dever a licença para se entregar à paixão! Era por um senso de dever, por equidade, pela necessidade de um contrapeso, que Hans Castorp escutava os discursos do Sr. Settembrini, examinando, com muita complacência, as suas considerações quanto à razão, à república e à beleza do estilo, e dispondo-se a deixar-se influenciar por elas. Tanto mais lícito lhe parecia depois dar livre curso aos seus pensamentos e aos seus sonhos, a fim de que rumassem numa direção diferente e até oposta – e para formularmos desde já o resultado total do que suspeitamos ou adivinhamos, seja dito que escutava o Sr. Settembrini com a finalidade exclusiva de obter da sua consciência plenos poderes que esta primitivamente não lhe quisera outorgar. Mas, o que ou quem é que se encontrava do lado oposto ao patriotismo, à dignidade humana e às belas-letras, desse lado onde Hans Castorp pensava ter reconquistado o direito de dirigir seus pensamentos e seus atos? Ali se achava Clávdia Chauchat, indolente, carcomida, com seus olhos de quirguiz, e enquanto Hans refletia sobre ela – a palavra “refletir” é, aliás, muito mansa para expressar o modo como, no seu íntimo, se ocupava com ela –, era novamente como se andasse de barca por aquele lago de Holstein e dirigisse os olhos deslumbrados e confundidos pela luminosidade vítrea da margem ocidental, para a noite de luar, entremeada de brumas, dos céus do Oriente.

continua pág 104...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Temor nascente. Dos dois avôs e do passeio de barca ao crepúsculo (c)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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