sábado, 5 de abril de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Quarto - O Casebre de Gorbeau / V - Barulho que faz uma moeda de cinco francos caindo no chão

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Quarto — O Casebre de Gorbeau

V - Barulho que faz uma moeda de cinco francos caindo no chão
     
      Próximo de S. Médard, sentado, à beira de um poço público abandonado, estava um pobre a quem Jean Valjean gostava de dar esmola. Vez nenhuma passava por junto dele sem lhe dar algum soldo. As vezes punha-se a falar com ele. Diziam os seus invejosos que aquele mendigo pertencia à polícia. Era um velho bedel de setenta e cinco anos, que não fazia senão rosnar orações.
     Uma noite, Jean Valjean, que não tinha levado Cosette consigo, ia a passar por aquele sítio e avistou o mendigo no seu costumado pouso, ao reflexo de um lampião que acabavam de acender. O homem, segundo o seu costume, parecia rezar e estava curvado. Jean Valjean foi direito a ele e deitou-lhe na mão a costumada esmola. O mendigo ergueu repentinamente os olhos, olhou para Jean Valjean com fixidez e baixou rapidamente a cabeça. Este movimento, que foi um como relâmpago, produziu um estremecimento em Jean Valjean. Pareceu-lhe que acabava de entrever ao clarão do lampião, não o plácido e devotado rosto do velho, mas uma figura assustadora e conhecida, e sentiu a impressão que experimentaria quem se achasse de repente frente a frente com um tigre na escuridão das sombras. Recuou, pois, terrificado e petrificado, sem ousar respirar nem falar, sem se atrever a ficar nem a fugir, contemplando o mendigo, que baixara a cabeça coberta com um farrapo e que parecia não saber que ele ainda ali estava. Naquela estranha ocasião, um instinto, talvez o instinto misterioso da conservação, fez com que Jean Valjean não pronunciasse uma palavra. O mendigo tinha o mesmo talhe, os mesmos andrajos, a mesma aparência de todos os dias.

— Ora!... — disse Jean Valjean. — Estou doido ou a sonhar! É impossível!

     E recolheu a casa profundamente perturbado.
     Quase que nem a si mesmo ousava confessar que era o rosto de Javert o que ele julgara ver.
     De noite, ao refletir nisto, sentia não ter interrogado o homem para o obrigar a levantar a cabeça outra vez.
     No dia seguinte, ao cair da noite, voltou ao mesmo sítio. Lá estava o mendigo no seu lugar.

— Boas tardes, bom homem — disse-lhe resolutamente Jean Valjean, dando-lhe um soldo.

     O mendigo levantou a cabeça e respondeu com voz lastimosa:

— Muito obrigado, meu bom senhor.

     Era efectivamente o velho bedel. 
     Jean Valjean sentiu-se plenamente tranquilizado e pôs-se a rir. «Como diabo imaginei eu que este homem era Javert?» disse ele consigo. «Querem ver que eu me tornei visionário?»
     Alguns dias depois, seriam oito horas da noite, estando ele no seu quarto, a fazer Cosette soletrar em voz alta, ouviu abrir e depois fechar a porta do casebre. Pareceu-lhe singular isto. A velha, que era a única pessoa que habitava a casa, além dele, deitava-se sempre apenas anoitecia, para não gastar vela. Fez sinal a Cosette para que se calasse e ouviu alguém subir pela escada acima. Podia muito bem ser a velha, que, havendo-se achado incomodada, tivesse ido à botica. Jean Valjean pôs-se à escuta. Eram pesados os passos e soavam como os de um homem, mas a velha andava de sapatos grossos e não há nada mais parecido com o passo de um homem do que o passo de uma velha. 
    Todavia, Jean Valjean apagou a luz.
    Mandou deitar Cosette, dizendo-lhe em voz baixa:

— Deita-te devagarinho.

     Quando, porém, estava a beijá-la na testa, os passos pararam, Jean Valjean ficou em silêncio, imóvel, com as costas voltadas para a porta, sentado numa cadeira, no meio da escuridão, sem ousar mexer-se, nem dar livre saída à respiração. Ao cabo de bastante tempo, como não ouvisse mais nada, voltou-se sem fazer barulho, e, ao lançar o olhar para a porta do quarto, viu uma luz pelo buraco da fechadura, a qual desenhava uma espécie de estrela sinistra no escuro da porta e da parede. Evidentemente estava ali alguém escutando e com uma luz na mão.
     Decorridos alguns minutos, a luz desapareceu. Jean Valjean, porém, não ouviu barulho de passos, o que parecia indicar que quem tinha vindo escutar à porta havia tirado os sapatos.
      Jean Valjean deitou-se completamente vestido para cima da cama, mas não pôde pregar olho em toda a noite.
     Ao romper do dia, quando ia a adormecer de cansaço, foi acordado pelo ranger de uma porta, que se abria em alguma mansarda do fundo do corredor, e ouviu os mesmos passos de homem que no dia antecedente haviam subido a escada. Os passos aproximavam-se. Levantou-se rapidamente e aplicou o olho pelo buraco da fechadura, que era bastante grande, esperando ver, ao passar, a pessoa que de noite entrara no casebre e lhe fora escutar à porta. Efetivamente era um homem, que desta vez passou sem parar pelo quarto de Jean Valjean. O corredor, porém, estava demasiado escuro para se lhe poder distinguir o rosto; porém, ao chegar ao corredor, um raio de luz exterior tornou-o saliente como um perfil e Jean Valjean viu-o completamente pelas costas. O homem era de estatura elevada e trazia um casacão comprido e uma grossa bengala debaixo do braço. Era o mesmo talho formidável de Javert.
     Jean Valjean podia vê-lo mais à vontade pela janela do seu quarto, que deitava para o boulevard; porém era preciso abri-la, e Jean Valjean não se atreveu.
     Era evidente que aquele homem tinha entrado com uma chave e como que em sua casa. Quem lhe havia dado a chave? Que queria aquilo dizer?
     Às sete horas da manhã, quando a velha veio arrumar o quarto, Jean Valjean deitou lhe um olhar penetrante, mas não a interrogou. A mulher apresentou-se como de costume.

— A noite passada o senhor não ouviu entrar ninguém? — disse ela por fim continuando a varrer.

    Naquele tempo e naquele boulevard, às oito horas é noite fechada.

— É verdade, agora me lembro — respondeu ele com o acento mais natural — quem era? 
— É um novo inquilino que há cá em casa — disse a velha. 
— E como se chama? 
— Nem por isso o sei já muito bem. É Dumont ou Daumont, uma coisa assim. 
— E o que faz esse senhor Dumont?

    A velha encarou-o com os seus olhinhos de fuinha e respondeu:

— Um rendeiro, como o senhor.

    A velha não teria talvez nenhuma intenção; porém, Jean Valjean, julgou entrever-lhe uma.
    Apenas a velha saiu, Jean Valjean embrulhou num papel cem francos que tinha num armário e meteu-os no bolso. Por mais precauções, porém, que tomasse nesta operação, para que não o ouvissem mexer em dinheiro, escapou-lhe das mãos uma moeda de cem soldos que rolou pelo soalho.
    Ao escurecer, desceu à porta da rua e olhou com atenção para todos os lados do boulevard, porém não viu ninguém. O boulevard parecia absolutamente deserto.
    Verdade é que podia estar alguém escondido atrás das árvores. 
    Depois tornou a subir e disse para Cosette:

— Anda daí.

    Pegou-lhe na mão e ato contínuo saíram de casa.

continua na página 343...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Quarto - V - Barulho que faz uma moeda de cinco francos caindo no chão
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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