sexta-feira, 18 de abril de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Terceira Parte (7b) - A “Explicação” terminara

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Terceira Parte
7.

continuando...
.
      A “Explicação” terminara. Ippolít, finalmente, parou de ler.
     Só suceder, em casos extremos, que um homem nervoso, exasperado, fora de si, atinja tal ápice de franqueza cínica que seja capaz de tudo, indiferente a quaisquer efeitos de sua atitude escandalosa, alegrando-se até mesmo com isso. Arremete contra as pessoas com a decisão cega mas firme de daí a um minuto se precipitar em um abismo, pondo termo a todas as dificuldades em jogo. O sintoma precursor desse estado é via de regra o esgotamento físico. A tensão extrema e anormal que se ia apossando de Ippolít atingiu naquele momento o seu auge. Aquele rapaz de dezoito anos de idade, combalido pela doença, parecia tão fraco que nem uma folha trêmula se desprendendo de uma árvore.
     Mas logo que pela primeira vez, no decorrer dessa última hora, ele circunvagou o olhar pelo auditório, uma expressão de asco o mais altivo, desdenhoso e amargo possível, se estampou nos seus olhos e no seu sorriso. Tomou um ar instantâneo de desafio. Mas os ouvintes também não tardaram em demonstrar sua indignação geral. Puseram-se logo de pé, abandonando a mesa com ruído e maus modos. O cansaço, o vinho e a tensão forçada concorreram para tal disposição bem como para a péssima impressão, se é que tais palavras explicam bem o ambiente que logo se criou.
     De repente Ippolít se levantou de um salto como impelido por um maquinismo subjacente, exclamando virado para o príncipe logo que viu os cimos das árvores se iluminarem, e apontando para elas como para um prodígio.

- O sol! O sol!... O sol está nascendo!

     Ao que observou Ferdichtchénko:

- Cuidavas que ele não haveria de nascer?

     E Gánia disse baixo, se espreguiçando e bocejando, farto daquilo tudo, já com o chapéu nas mãos: - E hoje vai fazer outra vez um dia quente e abrasador. Qual, esta estiagem ainda dura um mês!... Você vem, ou não, Ptítsin?
     Ante aquelas palavras Ippolít ficou tão espantado que sua fisionomia tomou um ar de estupefação. Ficou mortalmente lívido e começou a tremer todo. Voltou-se para Gánia e lhe disse: - Sua afetação insultante de indiferença não me atinge, seu patife!

- Afinal, isso é o cúmulo, como forma de despedida a quem se retira! - rosnou Ferdichtchénko.
- Que rebate mais ilógico! 
- Ora, é um maluco... - disse Gánia. 

      Ippolít procurou se refrear, passando a dizer, trêmulo como antes e gaguejando a cada palavra: - Compreendo, senhores, que mereço a atitude que adotaram... e peço desculpas de os haver maçado com estes despautérios (apontou para o manuscrito), ou melhor, lamento não haver conseguido sequer lançar a menor apreensão nos senhores... (sorriu alvarmente). Macei-o muito, Evguénii Pávlovitch? - voltou-se para Radómskii dando um passo: - Macei-o, ou não? Diga!

- Um pouco prolixo, mas de resto... 
- Seja franco! Pelo menos uma vez na vida não esteja a mentir... - insistiu Ippolít, cada vez mais trêmulo. 
- Ora, que tenho eu com isso, palavra de honra!?... Tenha a bondade de me deixar em paz! - disse Evguénii Pávlovitch voltando-se com ar desdenhoso.

     Ptítsin dirigiu-se a Míchkin: - Boa noite, até amanhã, príncipe.

     Nisto Vera gritou, alarmada, correndo para Ippolít. - Mas ele vai se matar mesmo! Pois não estão vendo? Olhem! Ele não disse que quando o sol nascesse se mataria com um tiro? Não fazem nada?

- Mata-se coisa nenhuma! murmuraram maldosamente várias vozes entre as quais a de Gánia.
- Senhores, atenção! - exclamou Kólia correndo por sua vez a segurar o braço de Ippolít. 
- Vejam como ele está! Príncipe, príncipe, o senhor não acha? 

     Vera, Kólia, Keller e Burdóvskii haviam rodeado Ippolít, estando a segurá- lo.  

- É um direito que ele tem... é um direito.., que... ele tem! - gaguejou Burdóvskii conquanto também sobressaltado. 

     A esta altura Liébediev, completamente bêbado e furioso, se acercou do príncipe e perguntou com insolência: - Desculpe, príncipe, mas quer que eu aja? Quais são as suas ordens?

- Agir, como? 
- Ai, ai! Perdão! Sou o dono da casa, muito embora tais palavras não signifiquem uma falta de respeito para com o senhor... Claro está que quem manda nisto tudo deveras é o senhor... mas aqui, na minha casa, não admito! Não admito que na minha casa um...

     Interveio então o General Ívolguin, inesperadamente, com indignação e dignidade:- O moço não vai se matar! O desventurado rapaz está... gracejando!
     Ferdichtchénko aplaudiu: - Bravos, general!
     Liébediev retrucou: - Sei muito bem, prezado general, que ele não se mata coisa nenhuma! Mas isso não impede que eu aja... sim, sou o dono da casa! Então Ptítsin, que já se havia despedido do príncipe, inesperadamente veio estender a mão a Ippolít:

- Escute uma coisa, Sr. Tiérientiev, parece-me que durante a leitura o senhor se referiu ao seu esqueleto e em deixá-lo para a Academia, não foi mesmo? Quis o senhor referir-se ao seu esqueleto mesmo, isto é, aos seus ossos, se bem ouvi?
- Sim, estava me referindo aos meus ossos...
- Então está muito bem. Perguntei apenas para me certificar bem dessa sua vontade expressa, pois sei de um caso em que houve dúvidas e... 
- Oh! Não está direito isso. Não é hora de gracejos... advertiu logo o príncipe.

     Não tardou que Ferdichtchénko também pusesse seu reparo: - Está vendo? Fez o rapaz se pôr a chorar.
     Mas não era verdade. Ippolít fez um movimento para avançar, mas os quatro que o rodeavam lhe seguraram logo os braços. Espalhou-se uma gargalhada. Veio então o parecer de Rogójin: - Era o que ele estava querendo: que o segurassem bem. A tal leitura ou confissão foi com este fim. Adeus, príncipe. Arre! Estivemos sentados muito tempo... Estou com os ossos doendo.

- Se o amigo realmente estava com ideia de se matar, Tiénentiev - disse rindo Evguénii Pávlovitch -, depois de todos estes comentários e despedidas, eu, no seu caso, não me mataria, só para lhes fazer pirraça. 
- Estão tremendamente sequiosos de ver-me disparar uma bala! - exclamou Ippolít em um repelão. Falou como se fosse atacar alguém. - Estão furiosos porque não faço isso aqui defronte deles.
- Ah! Então não vai fazer isso em público? Longe de mim querer instigá-lo a não fazê-lo; muito pelo contrário, acho muito provável que o amigo se matará. O essencial é não se alvoroçar... - disse Evguénii Pávlovítch em um tom protetor.
- Só agora vejo que cometi um formidável erro em lhes ler a minha “Explicação” - disse Ippolít olhando para Evguénii Pávlovitch com ar muito sério, como a pedir um conselho confidencial a um amigo.
- De fato. O amigo ficou em uma situação absurda; mas, francamente, já agora não sei como aconselhá-lo - retorquiu Radómskii, sorrindo.

     Ippolit esquadrinhou-o com um olhar agudo e não lhe deu resposta. Pareceu mesmo ficar completamente zonzo por alguns momentos.

- Não! Vamos e venhamos, que raio de comportamento é esse? - tornou a intervir Liébediev. - Vossemecê declara: “Dou cabo de mim, com um tiro, no parque, de forma a não alvoroçar ninguém!” Acha então que saindo daqui e indo queimar os miolos ali no parque, a três passos daqui, não prega susto em ninguém?!
- Senhores... começou Míchkin.
- Não, permita-me, prezado príncipe - interrompeu-o Liébediev furiosamente - o senhor mesmo viu e escutou perfeitamente, não se trata de pilhéria, e aqui pelo menos a metade dos seus visitantes é da mesma opinião e está convencida que depois do que ele declarou está obrigado, sim, a honra obriga aqui este moço a se matar, e eu, como dono da casa, e como uma das testemunhas disso, peço que o senhor me ajude e me dê mão forte!
- Mas que é que você quer, Liébediev? Estou às suas ordens.
- Já lhe digo. Antes de mais nada ele deve entregar a pistola de que tanto se pavoneou antes, bem como toda a munição. Se entregar, consentirei que permaneça esta madrugada nesta casa, levando em consideração o seu estado de saúde; mas sob a minha vigilância, é claro. Mas amanhã ele tem de se safar daqui. Queira perdoar-me, príncipe! Se ele não entregar a arma, imediatamente o agarro por um braço e o general pelo outro e levamos o caso à polícia. E lá a polícia que se encarregue desta trapalhada. Aqui o Sr. Ferdichtchénko, como amigo que é, se dirigirá à delegacia. 

     Foi uma barafunda dos infernos no terraço. Liébediev estava excitadíssimo e pôs de lado qualquer comedimento. Ferdichtchénko fez menção de ir chamar a polícia. Gánia intrometendo-se disse que era bobagem pois não via ninguém com disposição de queimar os miolos. Evguénii Pávlovitch assistia, calado.

 - Príncipe, já alguma vez se atirou de um campanário abaixo? - sibilou Ippolít, voltando-se para o príncipe e fazendo tal pergunta disparatada e logo obtendo esta resposta cândida do príncipe. -Eu?... N... não!
- Supõe que não previ todo este alvoroço! - sussurrou-lhe ainda Ippolít, olhando com olhos flamejantes, como se tal pergunta merecesse deveras uma resposta. - Está bem! Seja! - exclamou ele, de repente, voltando-se para todo o grupo. - Eu estou errado e os senhores com a razão. Liébediev, aqui estão as chaves. (Tirou do bolso uma carteira e desta uma argola de aço com três ou quatro chaves enfiadas.) - Pegue esta, a penúltima... Kólia lhe mostrará... Kólia, onde está Kólia? - gritou, olhando para ele e não o vendo. - Pois é, ele lhe mostrará. Foi ele que me ajudou a pôr na mala as minhas coisas, ontem. Leve-o, Kólia. No escritório do príncipe, debaixo da mesa.., na minha mala.., com esta chave.., bem no fundo.., dentro de uma caixa pequena... a minha pistola e o chifre com a pólvora. Ele mesmo foi quem arrumou, Sr. Liébediev; ele lhe mostrará. Mas com uma condição: que amanhã cedo, quando eu seguir para Petersburgo, o senhor me devolverá a minha pistola. Está ouvindo? Faço isso por causa do príncipe e não por causa do senhor.
 - Agora a situação melhorou muito! - anuiu Libediev agarrando o molho de chaves; e dando uma risada maldosa, correu para o cômodo contíguo. Kólia quis ficar onde estava, ensaiou dizer qualquer coisa, mas Liébediev o arrastou.

     Ippolít encarou aquele grupo tresnoitado. Míchkin notou que os dentes do rapaz rangiam, como se o acometesse um calafrio. - Que miseráveis que eles são! sussurrou Ippolít, exasperado, para o príncipe. Ao dizer estas palavras a Míchkin o fez como pouco antes, bem inclinado sobre ele e em tom muito baixo. 

- Não se incomode com eles ! Você está muito fraco...
- Um minuto, um minuto... Já vou; apenas um minuto. - e eis que inesperadamente se abraça ao príncipe e lhe diz de modo esquisito: - Pensa, decerto, que enlouqueci? 
- Não, mas você... 
- Um minuto, um minuto, tenha paciência. Não diga nada, não se mexa; quero olhá-lo bem nos olhos... Assim, fique assim. Deixe-me olhá-lo. Despeço- me de um homem.

     Imóvel, diante do príncipe, ficou a fixá-lo durante uns dez segundos, sem dizer uma única palavra. Lívido, os cabelos molhados de suor, segurava de um modo esquisito a mão de Míchkin como não querendo que ele se retirasse.- Ippolít, Ippolít, que é que você tem?! - exclamou o príncipe. 

- Oh! Absolutamente nada. Vou me deitar. Imediatamente... imediatamente. Só queria beber uma taça em saudação ao sol!... Deixe-me beber, príncipe, deixe!

     Com um gesto rápido agarrou uma das taças de cima da mesa e deixando o lugar correu para os degraus da varanda. Míchkin ia correr atrás dele, mas aconteceu, por fatalidade, que bem nesse instante Evguénii Pávlovitch lhe estendeu a mão para se despedir. Daí a um segundo se levantou um verdadeiro clamor na varanda, passando a reinar indescritível balbúrdia. Eis o motivo: assim que atingiu os degraus da varanda, Ippolít estacou com a mão esquerda segurando a taça e com a direita enfiada no bolso do casaco. Segundo a declaração feita posteriormente por Keller, Ippolít já estava com a mão direita metida no bolso antes de sair; e, mesmo antes, enquanto estivera a falar com o príncipe, lhe segurava ora o ombro, ora a gola do paletó mas só com a mão esquerda, a direita já enfiada no bolso, atitude essa que o havia feito desconfiar. Reparando nisso, Keller quis correr atrás do amigo, e o fez, mas chegou atrasado, porque estava um pouco longe. Vira unicamente qualquer coisa brilhar na mão direita de Ippolít e, quase no mesmo instante, o cano de uma pistola encostado à têmpora do enfermo. Keller correu para lhe agarrar a mão, mas Ippolít puxou o gatilho. Pôde ouvir o som do cão, um estalido seco, mas não se produziu detonação nenhuma. Precipitando-se, Keller segurou Ippolít, que caiu em seus braços, como que desmaiado, julgando talvez que se tivesse matado mesmo. Com a pistola na mão, Keller mandou trazer uma cadeira e, sustentando sempre Ippolít, fê-lo sentar nela. Todos rodearam a cadeira, falando alto e fazendo perguntas. Tinham ouvido o estalido e pasmavam agora vendo o homem vivo, sem um arranhão sequer. O próprio Ippolít estava ali, sentado, sem compreender nada do que se estava passando. Olhava em redor, sem nenhuma expressão nos olhos. Liébediev e Kólia voltaram a correr. Perguntas cruzavam-se. - O tiro falhou? 

- Será que a pistola não estava carregada? 
- Estava, sim - asseverou Keller. examinando a pistola -. mas... - Então o tiro engasgou... Esqueceram-se de pôr a cápsula... - explicou Keller.
 
O Idiota: Terceira Parte (7b) - A “Explicação” terminara
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