terça-feira, 22 de abril de 2025

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - t)

em busca do tempo perdido


volume II
À Sombra das Moças em Flor

Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar


(t)

continuando...

     Tínhamos chegado diante de sua porta.
     Sentia-me decepcionado por não ter conhecido as moças. Mas enfim, agora haveria uma possibilidade de reencontrá-las na vida; deixavam de somente passar por um horizonte onde eu julgara que não as veria jamais reaparecer. A seu redor já não se agitava essa espécie de redemoinho que nos separava, e que não passava da tradução do desejo em permanente atividade, móvel, urgente, alimentado de inquietudes despertadas em mim pela inacessibilidade delas, ou pelo seu possível desaparecimento para sempre.
     Já podia agora pôr em sossego o meu desejo por elas, guardá-lo em reserva, junto com tantos outros cuja realização ia adiando, uma vez que o sabia possível. Deixei Elstir; encontrei-me a sós. Então, de súbito, apesar da minha decepção, vi no meu espírito toda essa série de acasos que não havia suspeitado pudessem realizar-se: que Elstir fosse precisamente ligado a essas moças; estas que de manhã ainda eram, para mim, figuras em um quadro que tinha como fundo o mar, me tivessem visto em companhia de um grande pintor, o qual sabia agora do meu desejo de conhecê-las e sem dúvida o apoiaria. Tudo aquilo me dera satisfação, mas uma satisfação que me ficara oculta; era como essas visitas que esperam, para nos fazer saber que estão presentes, que os demais convivas tenham se retirado, e que estejamos sozinhos.
     Então nós as vemos, podemos dizer-lhes: estamos a seu dispor, e escutá-las. Às vezes, entre o momento em que estas satisfações entraram em nós e o momento em que nós entramos nelas, passaram-se tantas horas e vimos tanta gente no intervalo que tememos não nos tenham esperado. Mas elas são pacientes, não se cansam e, logo que todos foram embora, vemo-las face a face. Outras vezes, somos nós que estamos tão cansados que nos parece não termos força bastante, em nosso pensamento desfalecente, para reter essas lembranças e impressões para as quais o nosso eu frágil é o único lugar habitável, o único modo de realização. E o lamentaríamos, pois a existência quase só tem interesse nesses dias em que a poeira das realidades vem misturada com areia mágica, e um vulgar incidente da vida se transforma em motivo romanesco. Todo um promontório do mundo inacessível surge então da iluminação do sonho e entra em nossa vida; em nossa vida onde, como quem despertou de um sonho, vemos as pessoas com quem tínhamos sonhado tão intensamente que julgáramos que só haveríamos de revê-las em sonho; o sossego trazido pela possibilidade de conhecer aquelas moças quando quisesse era-me tanto mais precioso, porque agora não podia continuar em seu encalço devido aos preparativos de viagem de Saint-Loup. Minha avó desejava testemunhar a meu amigo seu agradecimento por tantas gentilezas que tivera para conosco. Disse-lhe que Saint-Loup era um grande admirador de Proudhon e sugeri que mandasse vir a Balbec numerosas cartas autografadas desse filósofo que ela havia comprado; Saint-Loup veio vê-las no hotel no dia em que chegaram, que era o da véspera de sua partida. Leu-as avidamente, manuseando cada folha com respeito, procurando reter as frases; ergueu-se depois, e já se desculpava com minha avó de ter ficado por tanto tempo, quando a ouviu dizer:

- Nada disso; leve-as. São suas, foi para você que mandei trazê-las. 

     Aquilo lhe deu uma alegria tamanha que não a pôde dominar, como não se pode dominar um estado físico que ocorre sem intervenção da vontade. Ficou vermelho como uma criança que está sendo castigada, e minha avó se sentiu muito mais emocionada ao ver todos os esforços que ele fizera (sem o conseguir) para conter a alegria que o agitava, do que com todos os protestos de gratidão que ele pudesse ter externado. Mas ele, temendo ter mal demonstrado o seu reconhecimento, ainda pedia que o desculpasse, no dia seguinte, debruçado à janela do trenzinho de ramal secundário que tomara para alcançar o seu quartel. Este, de fato, ficava bem perto. Saint-Loup havia pensado em ir de carro, como fazia muitas vezes quando devia voltar à tarde e não se tratava de uma partida definitiva. Mas desta vez era necessário mandar de trem sua numerosa bagagem. E ele achou mais simples subir igualmente ao vagão, de acordo com a opinião do gerente do hotel que, consultado, havia respondido que trem ou carro "seriam mais ou menos equívocos". Com isso queria dizer que seriam equivalentes (em suma, mais ou menos o que Françoise teria expressado ao dizer que "isto iria do semelhante ao mesmo").Ou seja concluiu Saint-Loup-, irei pelo "tortinho".
     Também o teria tomado se não estivesse tão cansado, para acompanhar meu amigo a Doncieres; prometi-lhe, ao menos, durante o tempo que ficamos na estação de Balbec, isto é, o tempo que o maquinista dedicou a esperar alguns retardatários, sem os quais não queria partir, e também para tomar algum refresco, ir vê-lo várias vezes por semana. Como Bloch também tinha vindo à estação, para grande contrariedade de Saint-Loup, este, ao ver que meu colega o ouvia me pedir que fosse almoçar, jantar e morar em Doncieres, acabou por lhe dizer, num tom bastante frio, cujo objetivo era o de corrigir a amabilidade forçada do convite e impedir que Bloch o levasse a sério:

- Se alguma vez passar por Doncieres à tarde, poderá perguntar por mim no quartel; mas quase nunca estou livre.

     Talvez Robert igualmente receasse que, sozinho, eu não fosse e, pensando que eu estivesse mais ligado a Bloch do que dizia, dava-me, assim, oportunidade de ter um companheiro de viagem que me animasse a ir.
     Eu receava que esse tom, essa maneira de convidar alguém, aconselhando-o a que não fosse, fosse deixar Bloch melindrado, e achava que Saint-Loup teria feito melhor em não falar coisa alguma. Mas estava enganado, pois, logo após a partida do trem, enquanto voltávamos juntos até o cruzamento das duas avenidas onde iríamos nos separar, visto que uma levava ao hotel e a outra à vivenda dos Bloch, este não parou de indagar em que dia iríamos a Doncieres, porque, depois de "todas as amabilidades que Saint-Loup lhe fizera", seria "muito grosseiro de sua parte" não atender a seu convite. Gostei de que ele não tivesse notado o tom pouco insistente, meramente polido, com que o convite fora feito, ou, caso o houvesse notado, que fingisse e não se desse por achado. Contudo, desejaria que Bloch não caísse no ridículo de ir de imediato a Doncieres. Mas não ousava lhe dar um conselho que só poderia incomodá-lo, mostrando-lhe que Saint-Loup fora menos insistente no convite do que ele em aceitá-lo. Bloch era extremamente inoportuno, porque, embora todos os defeitos que tivesse no gênero fossem compensados por notáveis qualidades que outras pessoas, mais reservadas, não possuíam, levava a indiscrição a um nível exasperador. Na sua opinião, a semana não poderia terminar sem que fôssemos a Doncieres. (Dizia "fôssemos", pois julgo que contava com minha presença para desculpar a sua.) Em todo o caminho de volta, diante do ginásio, debaixo das árvores, diante do campo de tênis, diante da Prefeitura, diante do mercado de conchas, parava, suplicando que eu fixasse um dia determinado; e, como eu recusasse, retirou-se aborrecido, dizendo:

- Como quiser, cavalheiro. Em todo caso, sou obrigado a ir, pois ele me convidou.

     Saint-Loup temia tanto não ter agradecido à minha avó como devia, que, dois dias depois, ainda me encarregava de lhe testemunhar sua gratidão numa carta sua que recebi da cidade onde se achava aquartelado e que parecia, pelo envelope em que o correio havia carimbado o nome dela, ter corrido bem depressa ao meu encontro para me dizer que, entre suas muralhas, no quartel de cavalaria Luís XVI, ele pensava em mim. O papel trazia as armas de Marsantes, nas quais distingui um leão que superava uma coroa encimada por um barrete de par da França.

"Depois de uma viagem sem novidades (dizia-me), dedicada a ler um livro que comprei na estação, escrito por Arvede Barine (penso que seja um autor russo; pareceu-me extremamente bem escrito para um estrangeiro; mas diga o que acha, pois você, poço de ciência que leu tudo, deve conhecê-lo), eis-me de volta ao ambiente desta vida grosseira, onde infelizmente me sinto bem exilado e nada tenho do que deixei em Balbec; esta vida onde não encontro nenhuma sombra de afeto, nenhum vestígio de intelectualidade; vida cujo ambiente você sem dúvida desprezaria e que, todavia, possui algum encanto. Tudo me parece ter mudado desde que estive aqui pela última vez, pois no intervalo começou uma das épocas mais importantes da minha vida, aquela da qual data a nossa amizade. Espero que esta não, acabe jamais. Só falei dela e de você a uma única pessoa, a minha amiga, que me fez a surpresa de vir passar uma hora comigo. Ela gostaria muito de conhecê-lo e creio que você concordaria com isto, pois também é muito literária. Em compensação para repensar em nossas conversas, para reviver essas horas que jamais esquecerei, isolei-me de meus camaradas, excelentes moços mas que teriam sido incapazes de compreender essas coisas. Essas lembranças dos momentos passados com você, gostaria de evocá-las, no primeiro dia, só para mim e sem lhe escrever. Mas receio que você, espírito sutil e coração ultrassensível, fique preocupado se não receber nenhuma carta minha, se é que se dignou a abaixar seu pensamento logo para este rude soldado que tanto trabalho lhe há de dar para desbastar e tornar um pouco mais sutil e digno de você." 

     No fundo, esta carta se parecia muito, por sua ternura, àquelas que, quando ainda não conhecia Saint-Loup, imaginara que ele me escreveria, naquelas fantasias de imaginação de que me arrancou a frieza do nosso primeiro encontro, pondo-me diante de uma realidade glacial que não deveria ser definitiva. Depois de tê-la recebido, cada vez que, à hora do almoço, traziam a correspondência, eu reconhecia logo quando chegava uma carta dele, pois elas ostentavam sempre aquela fisionomia que uma criatura ausente mostra e de cujas feições (o tipo de letra) não há razão alguma para que não acreditemos extrair uma alma individual tão bem como a distinguimos na forma do nariz ou nas inflexões da voz.
     Agora, eu ficava de boa vontade à mesa enquanto retiravam o serviço, e não me limitava mais a olhar o mar, a não ser no momento em que as moças do grupinho poderiam passar. Desde que vira essas coisas nas aquarelas de Elstir, procurava reencontrá-las na realidade, apreciava como elemento poético o gesto interrompido das facas ainda atravessadas, a redondeza abaulada de um guardanapo desfeito onde o sol intercala um pedaço de veludo amarelo, a taça meio vazia que assim revela a nobre amplitude de suas formas e, no fundo de seu cristal translúcido, semelhante a uma condensação do dia, um resto de vinho escuro, mas cintilante de brilhos, o deslocamento dos volumes, a transmutação dos líquidos por efeitos de luz, a alteração das ameixas, que passam do verde ao azul e do azul ao dourado na compoteira já meio vazia, o passeio das cadeiras velhinhas que, duas vezes ao dia, vêm se instalar ao redor da toalha estendida na mesa, como sobre um altar onde são celebrados os ritos da gula, e na qual há ostras em cujo interior jazem algumas gotas de água lustral como em pequenas pias de água benta; eu tentava encontrar a beleza onde jamais imaginara que estivesse, nas coisas mais comuns, na vida profunda das "naturezas mortas".
     Dias depois da partida de Saint-Loup, consegui que Elstir promovesse uma pequena matinê onde me encontraria com Albertine; houve quem me achasse elegante e charmoso, aliás qualidades ambas momentâneas, quando saía do Grande Hotel (o que se devia a um repouso prolongado e a cuidados especiais de indumentária), e lamentei não poder reservar a simpatia e a elegância (bem como o prestígio de Elstir) para a conquista de uma outra pessoa mais interessante, lamentei gastar tudo isto pelo simples prazer de conhecer Albertine. Minha inteligência julgava bem pouco valioso esse prazer, desde que estava assegurado. Mas dentro de mim a vontade não concordava um instante sequer com essa ilusão, a vontade, que é servidora perseverante e imutável de nossas personalidades sucessivas; oculta na sombra, desdenhada, de uma fidelidade infatigável, trabalha sem cessar e sem se preocupar com as variações do nosso eu para que nunca lhe falte nada do que necessita.
     Ao passo que, no momento em que vai se efetuar uma viagem desejada, a inteligência e a sensibilidade começam a perguntar-se se de fato vale a pena viajar, a vontade, que sabe que esses mestres ociosos recomeçariam imediatamente a achar maravilhosa essa viagem caso ela não pudesse realizar-se, a vontade os deixa dissertar diante da estação, multiplicar as hesitações; porém ocupa-se em pegar as passagens e vai nos colocando no vagão para quando chegue a hora da partida. Ela é tão invariável quanto a inteligência e a sensibilidade se mostram mutáveis; mas, como é silenciosa, não dá suas razões, parece quase inexistente. É à sua firme determinação que obedecem as outras partes do nosso eu, mas sem o perceber, ao passo que elas distinguem nitidamente suas próprias incertezas. Minha sensibilidade e minha inteligência instituíram então um debate sobre o valor do prazer que haveria em conhecer Albertine, enquanto eu olhava ao espelho os vãos e frágeis adornos de minha pessoa, que ambas prefeririam conservar intactos para outra ocasião; mas minha vontade não deixou passar a hora em que era necessário partir, e foi o endereço de Elstir que ela deu ao cocheiro. Minha inteligência e minha sensibilidade ainda pensaram que era uma pena, pois a sorte estava lançada. Se minha vontade tivesse dado outro endereço, elas ficariam desapontadas.
     Quando cheguei em casa de Elstir, pouco depois, a princípio julguei que a Srta. Simonet não se achava presente. No ateliê estava uma jovem sentada, de vestido de seda, cabeça descoberta; eram-me desconhecidos a cabeleira magnífica, o nariz e a cor da pele, onde nada encontrei da entidade que extraíra de uma jovem ciclista que passeava coberta por uma boina, ao longo da praia. No entanto era Albertine. Porém, mesmo quando o soube, não me ocupei dela. Quando se é jovem, ao entrar em qualquer reunião social, a gente morre para si mesmo, torna-se homem diferente, visto que todo salão é um novo universo onde, obedecendo à lei de uma outra perspectiva moral, fixamos a atenção, como se fossem nos importar para sempre, em pessoas, danças, jogos de cartas, que no dia seguinte estarão esquecidos. Obrigado a seguir, para chegar a uma conversa com Albertine, um caminho que de modo algum traçara e que parava primeiro diante de Elstir, passava por outros grupos de convidados, a quem ia sendo apresentado, depois ao longo do bufê, onde me eram oferecidas, e onde comia, tortas de cerejas, enquanto escutava imóvel a música que principiavam a tocar, acabei dando a estes episódios diversos a mesma importância que à minha apresentação à Srta. Simonet, apresentação que não era senão uma a mais dentre aqueles episódios, e que eu inteiramente esquecera ter sido, alguns minutos antes, o objetivo único da minha vinda. Aliás, não ocorre o mesmo na vida ativa, com nossas verdadeiras felicidades, nossas grandes desgraças? No meio de outras pessoas, recebemos, daquela a quem amamos, a resposta favorável ou mortal que esperávamos há um ano. Mas é preciso continuar a conversar, as ideias se ajuntam umas às outras, desenvolvendo uma superfície à qual só vem aflorar surdamente, de quando em vez, a lembrança, aliás bem profunda porém tênue, de que nos chegou a desgraça. Se, no lugar desta, vem a felicidade, pode ocorrer que somente muitos anos depois nos lembremos que o maior acontecimento da nossa vida sentimental se cumpriu sem que tivéssemos tido tempo de lhe prestar uma atenção prolongada, e quase que de tomar consciência dele, numa reunião social, por exemplo, e à qual havíamos comparecido apenas na expectativa desse acontecimento.
     No momento em que Elstir me chamou para me apresentar a Albertine, sentada um pouco mais adiante, primeiro acabei de comer uma bomba de chocolate com café e pedi com interesse a um velho senhor, a quem acabara de conhecer, e ao qual julguei poder oferecer a rosa que ele admirava em minha botoeira, que me desse pormenores acerca de algumas feiras normandas. Não preciso dizer que a apresentação que se seguiu não me causou prazer nenhum, nem pareceu ter a meus olhos qualquer gravidade. Quanto ao prazer, só o conheci naturalmente um pouco mais tarde, quando, de volta ao hotel, e estando sozinho, me tornei de novo eu mesmo. Com os prazeres, ocorre o mesmo que com as fotografias. O que colhemos na presença da pessoa amada não passa de um clichê negativo que revelamos depois, logo que estivermos em casa, quando temos à nossa disposição essa câmara escura interior cuja entrada é "proibida" enquanto há gente à vista.
     Se o conhecimento do prazer me foi assim retardado de algumas horas, em troca percebi logo a gravidade dessa apresentação. No momento dela, podemos sentir-nos de súbito gratificados e portadores de um "vale" para futuros prazeres, atrás do qual corríamos há várias semanas; mas bem percebemos que sua obtenção põe fim, para nós, não apenas a exaustivas buscas o que apenas poderia nos encher de júbilo-, mas também à existência de uma certa criatura, aquela que nossa imaginação tinha desfigurado, e que o nosso temor ansioso de jamais poder conhecê-la havia engrandecido. No instante em que o nosso nome ressoa na boca do apresentador, sobretudo se é cercado, como o fez Elstir, de palavras elogiosas nesse instante sacramental, análogo àquele em que, numa féerie, o gênio ordena a uma pessoa que seja uma outra de repente-, desaparece aquela criatura de quem nos desejávamos aproximar; antes de mais nada, como permaneceria ela igual a si mesma, já que devido à atenção que a desconhecida é obrigada a prestar ao nosso nome e à nossa pessoa nos olhos ontem situados no infinito (e que julgávamos que os nossos, errantes, mal regulados, aflitos, divergentes, jamais lograriam atingir), o olhar consciente, o pensamento incognoscível que procurávamos acaba de ser milagrosa e simplesmente substituído por nossa própria imagem pintada como no fundo de um espelho que estivesse sorrindo. Se a encarnação de nós mesmos que nos parecia bem diverso de nós, é o que mais modifica a pessoa a quem acabam de nos apresentar, a forma dessa pessoa permanece ainda bastante imprecisa; e podemos nos indagar se ela será deus, mesa ou bacia. Porém, tão ágeis como os ceroplastas que modelam um busto à nossa frente em cinco minutos, as poucas palavras que a desconhecida vai nos dizer precisarão essa forma e lhe dar algo de definitivo que há de excluir todas as hipóteses às quais, na véspera, se entregavam o nosso desejo e a nossa imaginação. Sem dúvida, mesmo antes de comparecer àquela reunião, Albertine já não era de todo para mim esse único fantasma digno de assombrar nossa vida, que permanece para nós uma passante de quem nada sabemos, e que mal vislumbramos. Seu parentesco com a Sra. Bontemps já restringira essas hipóteses maravilhosas, tapando uma das vias por onde podiam se espalhar. À medida que me aproximava da moça, e a conhecia mais, tal conhecimento se fazia por subtração, sendo cada pedaço de imaginação e de desejo substituído por uma noção que valia infinitamente menos, noção à qual, é verdade, vinha acrescentar-se uma espécie de equivalente, no terreno da vida, ao que as sociedades financeiras dão após o reembolso da ação primitiva, e que denominam ação de usufruto. Seu nome e seus parentes haviam sido uma primeira limitação trazida às minhas hipóteses. Sua gentileza foi um outro limite, enquanto, bem junto dela, eu voltava a encontrar seu sinalzinho no rosto, abaixo do olho; enfim, admirei-me de ouvi-la empregar o advérbio "perfeitamente" em vez de "completamente", ao se referir a duas pessoas, dizendo que era "perfeitamente louca, mas afinal muito gentil" e, da outra, que "é um senhor perfeitamente vulgar e perfeitamente aborrecido". Por pouco agradável que fosse aquele emprego de "perfeitamente", indica um grau de civilização e de cultura ao qual não poderia imaginar que a bacante de bicicleta, a musa orgiástica do golfe, alcançaria. O que aliás não impediu que, após esta primeira metamorfose, Albertine devesse ainda mudar várias vezes para mim. As qualidades e os defeitos que uma criatura apresenta dispostos no primeiro plano de seu rosto ordenam-se de acordo com uma formação completamente diferente se a abordamos de um lado diverso como em uma cidade os monumentos espalhados em ordem dispersa sobre uma só linha, sob outro ponto de vista escalonam-se em profundeza e trocam suas grandezas relativas. Para começar, achei Albertine com aspecto bastante intimidado, em vez de implacável; pareceu-me mais distinta do que mal-educada, a julgar pelos epítetos de "ela terá mau gênio, ela tem um gênio esquisito" que aplicou a todas as moças de quem falei; enfim, como ponto marcante do rosto, tinha Albertine têmpora bastante afogueada e pouco agradável de ver; não mais o olhar estranho em que eu havia pensado até então. Mas aquilo não passava de uma segunda vista, e sem dúvida haveria outras pelas quais eu devia passar sucessivamente. Assim, só depois de ter reconhecido, não sem hesitações, os erros de ótica do começo, é que podemos alcançar o conhecimento exato de uma criatura, se é que tal conhecimento é possível. Mas não o é pois, ao passo que se retifica a visão que temos dela, ela mesma, que não é um objetivo inerte, muda por conta própria; julgamos apanhá-la, ela se desloca, e, acreditando vê-la enfim mais claramente, conseguimos aclarar apenas as imagens antigas que havíamos tomado, mas essas imagens não a representam mais.
      Entretanto, apesar das inevitáveis decepções que possa acarretar, essa marcha na direção do que apenas se entreviu, para o que se teve tempo de imaginar essa marcha é a única saída para os sentidos, que nela entretêm seu apetite. De que morno aborrecimento está impregnada a vida das pessoas que, por preguiça ou timidez, vão diretamente de carro à casa dos amigos, a quem conheceram sem primeiro ter sonhado com eles, sem jamais ousar, durante o caminho, parar junto de quem desejam!
     Voltei para o hotel pensando naquela reunião matutina, revendo a bomba com café que acabara de comer antes de deixar que Elstir me levasse para junto de Albertine, a rosa que havia dado ao velho senhor, todos esses detalhes escolhidos à nossa revelia pelas circunstâncias e que compõem para nós, num arranjo especial e fortuito, o quadro de um primeiro encontro. Mas esse quadro, tive a impressão de vê-lo sob outro ponto de vista, de muito longe de mim mesmo, compreendendo que não havia existido só para mim quando, alguns meses depois, para meu grande espanto, como falasse a Albertine sobre o dia em que nos conhecêramos pessoalmente, ela me recordou a bomba, a flor que eu havia dado, tudo o que eu julgava, não digo importante apenas para mim, mas apenas de mim conhecido, e que encontrava assim transcrito, em uma versão de cuja existência nem suspeitava, no pensamento de Albertine.
     Desde esse primeiro dia, quando ao regressar pude ver a lembrança que trazia comigo, compreendi que passe de mágica fora perfeitamente executado, e como havia conversado por um instante com a pessoa que, graças à habilidade do prestidigitador, sem ter coisa alguma daquela que eu seguira por tanto tempo à beira da praia, fora-lhe substituída. Aliás, deveria tê-lo adivinhado previamente, visto que a moça da praia fora fabricada por mim. Apesar disso, como eu a houvesse, em minhas conversas com Elstir, assimilado a Albertine, sentia-me, em relação a esta, na obrigação moral de manter as promessas de amor feitas à Albertine imaginária. A gente fica noivo por procuração e, a seguir, julga-se obrigado a desposar a pessoa interposta. Além disso, se havia desaparecido provisoriamente, ao menos da minha vida, uma angústia, à qual bastaria, para serenar, a recordação das maneiras corretas, da expressão "perfeitamente vulgar" e da têmpora afogueada, essa recordação despertava em mim um outro gênero de desejo, que, embora suave e nada doloroso, semelhante a um sentimento fraternal, podia com o tempo se tornar bem perigoso, fazendo-me sentir a todo instante a necessidade de beijar essa nova pessoa, cujas boas maneiras e timidez, além da disponibilidade inesperada, detinham a corrida inútil da minha imaginação, mas davam origem a uma gratidão enternecida. E depois, como a memória começa de imediato a tirar fotografias independentes umas das outras, suprimindo todo elo, todo progresso entre as cenas nelas figuradas, a derradeira, na coleção das que ela expõe, não destrói forçosamente as anteriores. Em face da medíocre e palpável Albertine a quem havia falado, eu via a misteriosa Albertine diante do mar. Agora, eram lembranças, ou seja, quadros dos quais nenhum me parecia mais verdadeiro que o outro. Enfim, para terminar com esse dia de apresentação, tentando rever o sinalzinho no rosto abaixo do olho, lembrei-me que, quando Albertine fora embora, vira-lhe eu o mesmo sinalzinho no queixo. Em suma, quando a via, reparava que tinha um sinalzinho; porém, a seguir, minha memória radiante passeava pelo rosto de Albertine, pondo-o ora aqui, ora ali.

continua na página 195...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - t)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

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