segunda-feira, 21 de abril de 2025

Marcel Proust - A Fugitiva (Mágoa e Esquecimento - n)

em busca do tempo perdido

volume VI
A Fugitiva

Capítulo I
Mágoa e Esquecimento


continuando...

     Certa manhã, julguei ver a forma oblonga de uma colina no nevoeiro, sentir o calor de uma taça de chocolate, enquanto me apertava no coração a lembrança da tarde em que Albertine viera me visitar e a beijara pela primeira vez: é que eu acabava de ouvir o soluço do calorífero à águas tinham acendido. E joguei fora, com raiva, um convite da Sra. Verdurin que Françoise trouxera. A impressão que eu tivera, indo jantar pela primeira vez na Raspeliere; e que a morte não fere todas as pessoas na mesma idade, como se impunha com mais força agora que Albertine estava morta, tão jovem, e que Brichot continuava a jantar na casa da Sra. Verdurin, que recebia sempre e receberia talvez durante muitos anos ainda! E logo esse nome de Brichot recordou-me o fim daquele mesmo sarau, em que ele me levara em casa; em que eu vira, de baixo, a luz lâmpada de Albertine. Já pensara nisso outras vezes, porém nunca abordara a lembrança sob o mesmo ângulo. Pois, se nossas lembranças são bem nossas, à maneira dessas propriedades que possuem pequenas portas ocultas que mesmos com frequência desconhecemos, e que alguém da vizinhança nos abre de modo que, ao menos por um lado, em que isso ainda não nos ocorrera, sucede que nos achamos de volta em casa. Então, pensando no vazio que agora haveria de encontrar voltando para casa, de onde a luz se extinguira para sempre; deixando Brichot, julgara sentir tédio; supunha fazer amor por aí afora. Compreendi o que julgara totalmente segura a posse daquela; até mesmo eu que havia negligenciado o calor obrigatoriamente inferior ao supor o que eu avaliava. Compreendi o quanto continha para mim de plenitude de vida; e do que me inebriara por um momento, na noite em que Albertine dormira sob o manto. Compreendi que essa vida que eu levara em Paris, nunca trouxera a realização daquela paz profunda. A conversa que havia tido no último sarau em casa da Sra. Verdurin. Tinha acontecido, aquela conversação que para minha inteligência e, em certas parcelas, fizera à sua inteligência e sua amabilidade – um enternecimento, não é que fossem demais o que acontecera; pois a Sra. de Cambremer não demonstrou sorriso que poderia passar os dias com Elstir, que é sua prima?! - A inteligência de Albertine ficava em mim o que eu denominava a sua experiência, fruto de uma certa sensação que só existe com o tempo; pensava na inteligência de Albertine, saboreava uma lembrança cuja realidade consistia na superioridade objetiva de uma mulher; superior às pessoas de maior inteligência. Porém que as criaturas a quem amamos sejam pra nós superior e se torne para nós ao menos objetivamente, o sabor dos nossos desejos e dos nossos sentidos; apenas um lugar imenso e vago onde conhece o nosso próprio corpo; aonde afluem prazeres, uma silhueta assim tão nítida como de um transeunte. E meu erro talvez fora não ser sempre eu mesmo. Assim como, do ponto de vista só havia considerado as posições diversas do meu rival. Ao longo dos anos ficara surpreso de ver as modificações causadas somente pela convivência; bom seria ter procurado compreender o ser e, talvez, explicando-me então por que ela se obstinava em me ocultar o segredo, teria evitado prolongar, entre nós, com aquele encarniçamento estranho conflito que provocara a morte de Albertine. E eu tinha então, como uma piedade por ela, a vergonha de lhe sobreviver. E, de fato, parecia-me, nas horas em que menos sofria, que de alguma forma me beneficiava pela sua morte, porque uma mulher é de maior utilidade em nossa vida se constitui, em vez de um elemento de felicidade, um elemento de desgosto, e não existe uma só cuja posse mostra-se preciosa como das verdades que ela nos descobre ao nos fazer sofrer nos momentos, em que aproximando a morte de minha avó à de Albertine, tinha a impressão de que minha vida estava manchada por um duplo assassinato que só a covardia da sociedade poderia me perdoar. Sonhara eu ser compreendido Albertine, não ser mal conhecido por ela, acreditando que era uma grandeza ser compreendido, não ser mal conhecido, quando tantos outros poderiam ser melhor. Desejamos ser compreendidos porque desejamos ser amados, e só podemos ser amados porque amamos. A compreensão dos outros é indiferente ao amor importuno. Minha alegria de ter possuído um pouco da inteligência. O coração de Albertine não provinha de seu valor intrínseco, mas de que essa era um grau a mais na posse total de Albertine, posse que fora o meu objetivo; minha quimera desde o primeiro dia em que a tinha visto. Quando falamos da "amabilidade" de uma mulher, talvez não façamos mais do que projetar para fora de nós o prazer que sentimos ao vê-la, como as crianças quando dizem: "minha querida caminha, meu querido travesseirinho, meus queridos espinheirinhos." - aliás, explica por que os homens nunca dizem a propósito de uma mulher que os engana: "Ela é tão amável", dizendo-o com frequência de uma mulher por quem são enganados. A Sra. de Cambremer achava, com razão, que o encanto de Elstir era maior. Mas não podemos julgar do mesmo modo o de uma pessoa que é, como todas as outras, exterior a nós, pintada no horizonte de nosso pensamento; e o de uma outra que, devido a um erro de localização consecutiva à certos defeitos, porém tenaz, alojou-se em nosso próprio corpo, a ponto de que nos perguntamos retrospectivamente se ela não olhou para uma mulher, em certo dia no passeio de um trenzinho à beira-mar, faz-nos sentir os mesmos sofrimentos que um cirurgião que procurasse uma bala em nosso peito. Um simples croissant, que comemos, faz-nos sentir mais prazer que todos os verdelhões, coelhos e perdizes que foram servidos à Luís XV, e a extremidade da grama fremindo a centímetros do nosso olho, enquanto estamos deitados na montanha, ocultar a vertiginosa agulha de um cimo, caso este fique à várias léguas de distância. Além disso, o nosso erro não está em valorizar a inteligência e a amabilidade de uma mulher a quem amamos, por ínfimas que sejam. Nosso erro é o de sermos indiferentes à amabilidade e à inteligência alheia. A mentira só pode nos causar indignação, e a bondade o reconhecimento, que ambos deveríamos precisar excitar em nós, quando vêm da mulher amada, e o desejo físico tem esse poder maravilhoso de atribuir valor à inteligência e bases sólidas à vida moral.
     Jamais voltaria eu a encontrar essa coisa divina: uma criatura com quem eu pudesse conversar sobre tudo, a quem pudesse confiar-me. Confiar-me? E outras pessoas não me haviam mostrado mais confiança que Albertine? Não tivera eu com outras pessoas conversas mais extensas? É que a confiança e a conversa, são coisas medíocres, que importa sejam mais ou menos imperfeitas, se a elas se mistura o amor, o único sentimento divino? 
     Eu revia Albertine sentando-se à pianola, rósea sob os cabelos pretos; sentia em meus lábios, que ela tentava abrir, sua língua, sua língua materna, incomestível, nutritiva e santa, cuja chama e orvalho secretos faziam com que, mesmo que Albertine a fizesse deslizar apenas pela superfície de meu pescoço, de meu ventre, essas carícias superficiais, mas de qualquer modo feitas pelo interior de sua carne, exteriorizado como um tecido que mostrasse o avesso, assumissem, mesmo nos contatos mais externos, como que a misteriosa doçura de uma penetração. Todos esses momentos tão doces, que coisa alguma me devolveria nunca mais, não posso nem sequer dizer que fosse desespero o que sentia ao perdê-los. Para que alguém esteja desesperado, é preciso ter apego ainda a esta vida, que só poderá ser desgraçada. Sentia-me desesperado em Balbec quando vira erguer-se o dia e compreendera que nem mais um só poderia ser feliz para mim. Permanecera tão egoísta desde então, porém o "eu" a que me ligava agora; o "eu" que constituía essas vivas reservas que põem em jogo o instinto de conservação, esse "eu" já não estava entre os vivos; quando pensava em minhas forças, em minha potência vital, no que tinha de melhor, pensava em certo tesouro que possuíra (e que fora o único a possuir, visto que os outros não podiam conhecer com exatidão o sentimento, oculto em mim, que ele me havia inspirado) e que já ninguém poderia me subtrair, pois que não o possuía mais. E, para falar a verdade, eu jamais o possuíra senão porque quisera convencer-me de sua posse. Não apenas cometera a imprudência, ao olhar Albertine com os lábios e ao alojá-la em meu coração, de fazê-la viver dentro de mim, nem essa outra imprudência de misturar um amor familiar com o prazer dos sentidos. Quisera também convencer-me de que nossas relações eram o amor, porque ela me devolvia tão docilmente os beijos que eu lhe dava. E, por ter adquirido o hábito de acreditá-lo, não perdera somente uma mulher que eu amava, mas a mulher que me amava, minha irmã, minha menina, minha terna amante. 
     Em suma, tivera uma felicidade e uma desgraça que Swann não havia conhecido, pois justamente, o tempo todo em que ele amara Odette e fora tão ciumento dela, mal conseguira vê-la, e só dificilmente, em certos dias em que ela se desmarcava à última hora, podia ir à sua casa. Mas depois tivera-a para si, como sua esposa, até morrer. Eu, pelo contrário, enquanto sentia tanto ciúme por Albertine, mais feliz que ainda tivera-a em casa. Na verdade, havia realizado aquilo com que Swann sonhara tantas vezes e que só realizara quando já se lhe tornara indiferente. Mas, não guardara Albertine como ele havia guardado Odette. Ela fugira e esta ocasião não se repete; pois nada, jamais se repete exatamente, e as mais análogas existências, que ao parentesco dos caracteres é à similitude das circunstâncias, podemos ter para apresenta-las como simétricas uma à outra, permanecem opostas nesses pontos. Se perdesse a vida, eu não teria perdido grande coisa; não perderia mais que uma forma oca, o quadro vazio de uma obra-prima. Indiferente ao que, dali em diante, pudesse introduzir aí, porém feliz e orgulhoso em pensar no quadro que contivera, apoiava-me na lembrança daquelas horas tão doces; o tentáculo moral me transmitia um bem-estar que até a aproximação da morte a teria desfeito.
     Como ela corria depressa, em Balbec, para me ver, quando eu mandava buscá-la, demorando-se apenas para perfumar os cabelos a fim de agradar. Estas imagens de Balbec e de Paris, que desse modo eu gostava de rever, eram páginas ainda tão recentes e tão rapidamente viradas de sua curta da vida. Tudo que para mim era apenas lembrança, fora para ela ação; ação precipitada, como de uma tragédia, para uma morte rápida. As pessoas têm um desenvolvimento em nós, mas outro fora de nós (eu bem o sentira naquelas noites em que notava em Albertine um enriquecimento de qualidades, que se devia somente à minha companhia), e os dois não deixam de produzir reações um sobre o outro. Por mais, que procurasse conhecer Albertine, para depois possuí-la inteiramente, não deixava de obedecer à necessidade de reduzir, pela experiência, aos elementos mesquinhos, parecidos com os do nosso eu, o mistério de toda criatura e não pudera sê-lo sem, por minha vez, influir na vida de Albertine.  

continua na página 39...
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A Prisioneira (Prefácio)
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A Fugitiva (Mágoa e Esquecimento - n)
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