terça-feira, 8 de abril de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Terceira Parte (6b) - Na escola, durante anos

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Terceira Parte
6.

continuando...
.

     Na escola, durante anos, eu estivera em más relações com Bákhmutov. Era considerado entre nós como aristocrata, ou pelo menos eu o considerava um deles. Vestia-se muito bem, dirigia os seus cavalos, mas não mostrava soberbia. Sempre fora bom camarada, de constante bom-humor, sendo algumas vezes até satírico. Sempre fora o primeiro da classe, apesar de inteligência média. Eu nunca fui o primeiro em coisa alguma. Todos os colegas gostavam dele, exceto eu. Durante todo aquele tempo muitas vezes Ne ensaiara para o meu lado, mas sempre eu me desviava com teimosa birra. Agora, não o via há mais de ano. Estava matriculado na Universidade.
     Quando, pelas nove horas, cheguei à sua casa, fui anunciado com grande cerimônia. Vindo a mim, primeiro mostrou admiração, não demonstrando sequer afabilidade; depois, porém, se desmanchou todo, desandando a rir.

- Que te deu na cabeça de me vir ver, Tieriéntíev? - gritou com a sua invariável bonomia que, não sendo ofensiva, muitas vezes era impudente e que eu, por admirar, tanto odiava nele - Mas que foi isso? - exclamou espantado - Pareces-me bem doente!

     É que a minha tosse me torturava outra vez. Procurei uma cadeira, fiquei quase sem poder tomar fôlego, respirando com dificuldade.

- Não te incomodes. Estou tuberculoso - avisei-o - E vim à tua casa para um pedido. 

     Sentou-se cada vez mais espantado, e eu lhe pespeguei a história do doutor, fazendo-lhe ver que, dada a sua influência sobre o tio, estava em condições de poder fazer alguma coisa.

- Farei. É lógico que farei - afirmou - Atacarei meu tio amanhã. E olha, tenho satisfação, deveras, em te fazer isso. Aliás, como me contaste essa embrulhada direitinho!... Mas como foi que te passou pela cabeça vir até a minha casa?
- É que tudo, neste caso, depende só de teu tio. Nós dois, Bákhmutov, fomos inimigos; mas como és um homem de bem, pensei que mesmo a um inimigo nada recusarias - acrescentei com sarcasmo. E ele exclamou rindo:
- A mesma política de Napoleão com os ingleses! - comparou, rindo. - Farei isso! Ora, se farei! E se puder irei até mesmo agora - ajuntou, reparando que eu me levantava da cadeira com um modo grave e compenetrado.

     E a verdade é que o caso foi arranjado por nós dois, e da maneira mais triunfante possível. Em menos de seis semanas já o doutor estava indicado para outro posto, em uma outra província, e recebia uma ajuda de custo para a viagem, além de uma indenizaçãozinha. Creio até que Bákhmutov chegou a visitar bastantes vezes o médico (eu, intencionalmente, não o fiz e até uma certa vez o recebi friamente quando me veio agradecer), obrigando-o a receber dinheiro emprestado.
     No decorrer dessas seis semanas vi Bákhmutov duas vezes. A última vez que ele se encontrou com o médico foi a terceira em que o vi. Bákhmutov ofereceu-lhe, bem como à mulher, um jantar com champanha, antes da partida. A verdade é que a pobre senhora saiu antes de nós, preocupada por causa do garotinho. Estávamos no começo de maio. Nessa tarde tão linda a enorme bola de sol mergulhava nas águas. Bákhmutov, depois, saiu comigo. Estávamos ambos um pouco embriagados e seguimos pela Ponte Nikoláievskii.
     Bákhmutov me referiu o seu prazer pela afortunada solução do caso, agradeceu-me por tudo, disse quanto se sentia feliz depois de uma boa ação, acentuou que o mérito era todo meu, e que o povo incidia em erro ao declarar e pregar que a benevolência individual estava fora de uso e prática. Pude conversar com ele durante muito tempo.

- Quem quer que ataque a caridade - comecei -, ataca a natureza humana e lança seu desprezo sobre a dignidade pessoal. Tenho para mim, todavia, que ‘a organização pública de caridade’ e o problema propriamente dito da liberdade individual são duas questões distintas e não mutuamente exclusivas. A bondade individual permanecerá sempre, porque é um impulso da pessoa, a inclinação viva de uma personalidade querendo exercer uma influência direta sobre outra. Havia, por exemplo, em Moscou, um general, ou melhor, um conselheiro de Estado, cujo nome era alemão. Passou toda a sua vida visitando prisões e prisioneiros. Cada leva de exilados para a Sibéria sabia de antemão que o ‘velho General’ os visitaria na ‘Colina dos Pardais’. Ele se desincumbia desse bom trabalho com a maior devoção. Ia e vinha por entre as fileiras dos prisioneiros, parava diante de cada um, perguntava-lhe por suas necessidades, chamando cada um de ‘meu caro’ e ainda por cima dava conselhos paternais. Costumava dar-lhes dinheiro, trazia-lhes artigos de primeira necessidade, faixas para as pernas, roupas de baixo, e até livros de devoção que distribuía entre os que sabiam ler, firmemente persuadido de que os leriam pelo caminho para si e para os que não soubessem ler. Era incapaz de interrogar um prisioneiro sobre o seu crime. E se o criminoso começava a falar nisso, apenas escutava. Todos os criminosos estavam em pé de igualdade, perante ele. Não fazia distinção. Falava-lhes como a irmãos e eles o consideravam como a um pai. Se entre os prisioneiros descobria uma mulher com uma criancinha, ia acariciá-la e estalava os dedos para a fazer rir. E desta maneira, durante anos e anos, visitou prisioneiros enquanto viveu. E tanto fez que acabou conhecido em toda a Rússia e na Sibéria inteira. Não havia sentenciado que não soubesse da sua existência. Um homem que esteve na Sibéria me disse que muitas vezes vira os mais empedernidos criminosos sentirem saudade do ‘General’. Já no fim da vida ele só podia dar vinte copeques a cada um dos prisioneiros das levas que ia visitar com dificuldade, sua fama decrescendo um pouco do antigo calor de lenda e respeito. Sei de um homem, entre essas ‘infelizes’ criaturas, que assassinara doze pessoas, das quais seis crianças, estrangulando-as ferozmente só para dar vazão à sua gana (homens há, capazes disso). Pois bem, esse mesmo homem, vinte anos depois, um dia, a propósito de nada, deu um suspiro e exclamou ‘Que fim terá levado o nosso ‘velhinho General’? Viverá ainda? Tomara que sim!...’ Quem sabe se esse monstro até não teve um sorriso ao dizer isso. Ora aí está. Mas, pergunto eu, que espécie de germe teria o velho ‘General’ deixado cair na alma desse criminoso para, vinte anos depois, tal monstro sentir saudades de um homem de bem? Como explicarias tu, Bákhmutov, o sentido da associação de uma personalidade com uma outra a ponto de influir no destino dela? Sabes muito bem que levamos uma vida inteira sem dar conta da infinita multidão de divertículos fechados na nossa alma. Não sabemos nada de nós mesmos. O mais hábil jogador de xadrez, o mais profundo, somente é capaz de saber de antemão no máximo alguns lances. Julgou-se um prodígio certo campeão francês capaz de deduzir a mecânica de dez lances imediatos. Quantos lances, pergunto eu, restam e que somos incapazes de perceber? Ao espalhar o germe, ao espalhar a tua caridade, a tua bondade, estás dando, de uma forma ou de outra, parte da tua personalidade e tomando para teu uso parte da alheia. Ficas em mútua comunhão com alguém e, à medida que crescer o teu desvelo, irás sendo recompensado com a verificação das mais estupendas descobertas. Acabarás te dedicando a esse teu trabalho como se fosse uma ciência; ele tomará posse da tua vida toda e a encherá por inteiro. Por outro lado, todos os teus pensamentos, todo o germe que espalhaste, e do qual talvez já nem te lembres, crescerá e tomará forma. Quem o receber de ti o passará adiante. E como hás tu de no fim de tudo poder dizer que parte virás a ter na futura determinação dos destinos da humanidade? Se esse conhecimento e a duração desse trabalho te tornarem, por fim, apto a propagar algum poderoso germe, a legar ao mundo algum veemente pensamento, então... Falei muito; até demais!
- E dizer-se que tu, que estás falando tais coisas, és uma vida condenada pela doença! – exclamou Bákhmutov, com tom inflamado, como a admoestar alguma coisa invisível. 

     Nesse momento estávamos parados na ponte, com os cotovelos na balaustrada de ferro, vendo correr as águas do Neva.

- Queres tu saber em tudo isso o que é que mais me conturba? - perguntei- lhe, inclinando-me sobre a guarda de metal.
- Não te atirares ao rio... - redarguiu Bákhmutov, com certo pânico, como se lesse tal pensamento na minha fisionomia.
- Não é isso, não. Em face do tempo, só me atormenta a seguinte reflexão: disponho de dois a três meses ainda para viver; talvez quatro. Mas quando me restarem somente dois, por exemplo, e me vier uma ânsia insopitada de fazer alguma boa ação, dessas que requerem afinco, atividade e pertinácia, uma coisa no gênero, digamos, da desenvoltura que tive de desdobrar por causa do tal médico da carteira, terei de desistir por falta de tempo suficiente e me contentar com uma boa ação em escala menor, dentro do meu prazo temporal (caso ainda aspire a cometer boas ações...). Hás de concordar que é uma ideia divertida. 

     O bom do Bákhmutov ficou aflito por minha causa. Acompanhou-me até à minha porta, de carro, mantendo-se calado durante todo o percurso, tendo tido bastante tato para não tentar me consolar. Ao nos despedirmos apertou calorosamente a minha mão e pediu licença para me vir ver de vez em quando. Respondi-lhe que se era para me consolar (pois eu me dizia que mesmo que ele ao vir ficasse calado, ainda assim teria vindo consolar-me!) acabaria mais era, cada vez que viesse, fazendo com que eu me lembrasse da morte mais do que nunca.
     Encolheu os ombros e concordou comigo. Deixamo-nos muito cordialmente, o que era o máximo que podíamos esperar um do outro. Mas aquela tarde e aquela noite me foi arremessado o primeiro germe da minha ‘convicção final’. Agarrei-me avidamente a esta ideia nova e a analisei em todos os seus ramos e aspectos. Apesar de haver entrado com sono, não dormi a noite toda. E quanto mais profundamente eu analisava, cada vez mais absorto, mais aterrorizado me sentia.
     Um terror formidando me assaltou e obcecou continuamente nos dias seguintes.
     Não raro, de tanto pensar nesse terror que me crispava, sucedia chegar à fímbria de um outro. De roda essa série de apreensões só pude concluir uma coisa: que a minha ‘convicção final’ tomara posse integral de mim e me conduziria a uma conclusão lógica. Assim foi, mas me faltou ânimo para agir. Somente três semanas depois que tal torpor passou é que a dita resolução veio ao meu encontro. E de que modo? Através de uma circunstância estranhíssima.
     Tenho aqui na minha ‘Explicação’ todas essas datas e números anotados.
     É mais que evidente que pouco se me dá sigam ou não este meu concatenar de ideias; ainda assim, agora (e decerto somente agora, isto é, neste momento) eu gostaria que todos quantos terão de ajuizar da minha ação se capacitassem de quão longa é a cadeia de raciocínios lógicos que leva a esta derradeira convicção!
     Escrevi, poucas linhas acima, que a determinação final de que eu carecia para atingir e pôr em prática a minha ‘convicção final’ não me veio absolutamente através de nenhum raciocínio lógico feito até então, e sim mediante um estranho choque, e uma estranha circunstância talvez até não muito adequada.
     Cerca de dez dias antes, Rogójin viera ver-me a propósito de um negócio que lhe concernia, e que não vem ao caso relatar. Nunca tinha visto Rogójin antes, mas ouvira falar muito sobre ele. Dei-lhe a informação que me solicitou. Não se demorou, despediu-se logo, e como o único motivo de sua visita fora tal informação, claro que nossas relações não poderiam passar dessa visita ocasional. Mas ele me impressionou sobremodo, de forma que passei o dia entregue a pensamentos esquisitos; tanto que decidi ir vê-lo no dia seguinte, a título de retribuição de visita. Percebi logo não haver ele gostado de me rever, tendo até insinuado de maneira indireta e cortês que não era conveniente entabularmos conhecimento; ainda assim permaneci por toda uma hora, que achei interessante, a mesma impressão decerto tendo tido ele. Éramos criaturas tão diferentes que o contraste surgia de modo categórico.
     Sabíamos disso; principalmente eu.
     Eu era um homem cujos dias estavam contados, ao passo que ele estava vivendo quantitativamente a vida mais completa e real possível, tendo muito mais em que se absorver do que em ‘deduções finais’, números, dados etc., que não lhe diziam respeito, mesmo porque... mesmo porque estava entregue lá à sua mania, essa é que é a verdade!... O Sr. Rogójín que me desculpe esta expressão, quando mais não seja porque sou literato de meia-tigela e não sei como exprimir minhas impressões pessoais. A despeito da sua casmurrice, pareceu-me um homem de espírito vivaz, apto a pegar as coisas no ar, muito embora mostrando pouco interesse pelo que não lhe concerne diretamente. Não fiz a menor insinuação sequer quanto à minha ‘convicção final’, mas suponho que teve alguma desconfiança decorrente da conversa. Ou melhor, da minha conversa; ele não falava; manteve-se fechado em copas.
     Quando me despedi, lhe afiancei que não obstante toda a diferença e contraste existentes entre nós dois - les extremités se touchent - (traduzi-lhe tal provérbio para o russo) talvez não estivesse ele assim tão distante de compreender a minha ‘última explicação’ como pareceria. Respondeu-me a isso com um esgar ácido e amarelo, levantando-se e indo buscar pessoalmente o meu gorro, de modo ostensivo (apesar de eu já me estar despedindo por livre vontade minha), e sem a menor cerimônia me conduziu para fora da sua soturna residência, com a pretensão talvez de apenas me estar acompanhando polidamente.
     Sua casa impressionou-me. Não passa de um mausoléu rústico, lembra um recanto de cemitério, e creio que se compraz em tal ambiente, o que é muito natural pois condiz com a sua vida que é tão sobrecarregada de vigor e intensidade que não necessita de divagação.
     Tal visita me cansou demais e não me senti nada bem aquela manhã. De tardinha me senti tão fraco que me estirei na cama, acometendo-me acessos de febre com rajadas de delírio. Kólia permaneceu ao meu lado até às onze horas. Lembro-me porém de tudo que ele conversou, e do que falamos ambos. Mas sempre que uma espécie de névoa me envolvia, eu dava para ver Iván Fomítch que estava a receber milhões, já não tendo onde os colocar e com um medo pavoroso de que lhe roubassem, a ponto de decidir enterrá-los no chão. Por fim o aconselhei a, em vez de meter uma tamanha montanha de ouro em um buraco que teria de ser enorme, derreter aquilo tudo em uma forma e fazer com todo o bloco um esquife de ouro para o filhinho que morrera enregelado, para isso necessário sendo desenterrá-lo de lá onde jazia, coitadinho.
     Este meu sarcasmo imediatamente foi aceito por Súrikov com lágrimas de gratidão, e ele saiu logo para realizar tal intento, por minha vez lhe atirando eu com uma blasfêmia quando ele saía.

O Idiota: Terceira Parte (6b) - Na escola, durante anos
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