quinta-feira, 3 de abril de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Quarto - O Casebre de Gorbeau / IV - No que repara a principal inquilina

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Quarto — O Casebre de Gorbeau

IV - No que repara a principal inquilina
     
     Jean Valjean tinha a prudência de nunca sair de dia. Todos os dias, porém, ao descer do crepúsculo, passeava uma ou duas horas, às vezes só, muitas vezes com Cosette, procurando as áreas laterais dos boulevards mais solitários e entrando nas igrejas ao cair da noite. Jean Valjean gostava de ir a S. Médard, que é a igreja mais próxima. Quando não levava Cosette consigo, esta ficava com a velha, mas o maior prazer da criança era sair com o velho, preferindo até uma hora com ele aos deliciosos diálogos com Catarina, a preciosa boneca. Quando Jean Valjean saía com ela conduzia-a pela mão, dizendo-lhe coisas agradáveis. 
     Era então que Cosette estava no auge da alegria.
     A velha tratava do arranjo doméstico, cozinhava e ia às compras.
     Viviam sobriamente, tendo sempre o fogão aceso, mas como pessoas pouco abastadas. Jean Valjean em nada alterara a mobília do primeiro dia; só mandara substituir por uma porta a vidraça do quarto em que Cosette dormia.
     O seu trajo consistia ainda no mesmo casacão amarelo, nos mesmos calções pretos e no mesmo chapéu velho. Na rua tomavam-no por um pobre, acontecendo às vezes voltarem-se algumas boas mulheres e darem-lhe um soldo. Jean Valjean recebia o soldo e saudava profundamente. Sucedia também outras vezes ele encontrar algum miserável implorando a caridade, e então olhava para trás a ver se alguém o via, acercava-se furtivamente do infeliz e metia-lhe na mão uma moeda de cobre, e às vezes de prata, e afastava-se rapidamente. Isto, porém, tinha os seus inconvenientes. Jean Valjean principiava a ser conhecido no bairro pelo nome do pobre que dá esmolas.
     A velha, principal locatária, criatura rabugenta e invejosamente curiosa das vidas alheias, examinava muito Jean Valjean, sem ele dar fé. Era um tanto surda, e isto tornava-a tagarela. Restavam-lhe do seu passado dois dentes, um de baixo outro de cima, que de contínuo batia um contra o outro. A velha fizera minuciosas perguntas a Cosette, porém como esta não sabia nada, nada lhe pôde dizer, senão que vinha de Montfermeil. Um dia, pela manhã, vendo a curiosa velha entrar Jean Valjean para um dos compartimentos desabitados do casebre, com um ar que lhe pareceu particular, seguiu-o com o passo de uma gata matreira e pôde observá-lo, sem ser vista, pela fenda da porta, em frente da qual ele se achava de costas voltadas, sem dúvida para maior precaução. Viu-o meter a mão no bolso e tirar um agulheiro, umas tesouras e linhas, pôr se depois a descoser a costura de uma das abas do casacão e tirar da abertura um bocado de papel amarelado, que desdobrou, A velha reconheceu espantada que era uma nota de mil francos, a segunda ou terceira que via em dias de sua vida e deitou a fugir aterrada.
     Um momento depois, Jean Valjean chegou ao pé dela e pediu-lhe que lhe fosse trocar a nota de mil francos, acrescentando que era o semestre da sua renda, o qual tinha recebido na véspera.

«Onde», disse consigo a velha, «se ele não saiu senão às seis horas da tarde? A essa hora já a pagadoria não está de certo aberta».

     A velha foi trocar a nota, fazendo pelo caminho as suas conjecturas. Esta nota de mil francos, comentada e multiplicada, produziu muitas e animadas conversas entre as senhoras vizinhas da rua das Vinhas de S. Marçal.
     Num dos seguintes dias, Jean Valjean pôs-se a serrar um pau no corredor, em mangas de camisa. A velha andava a arrumar o quarto e achava-se só, porque Cosette estava entre da a vê-lo serrar. Como avistasse o casacão dependurado de um prego, aproveitou o ensejo e revistou-o. A costura tornara a ser cosida. A boa mulher apalpou-a com atenção e julgou sentir nas abas e nas cavas grossura de papel. Mais notas de mil francos decerto!
      Notou mais a velha que os bolsos coti nham uma variedade de objetos. Não só as agulhas, as tesouras e as linhas, que ela vira, mas uma grande carteira, uma enorme navalha, e circunstância suspeita, grande número de cabeleiras de variadas cores. Cada bolso daquele casacão parecia um como depósito de recursos para acontecimentos imprevistos.
      Assim chegaram aos últimos dias de Inverno os moradores do casebre.

continua na página 340...
______________

Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
_________________________


Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Quarto - IV - No que repara a principal inquilina
_______________________
 
Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

Nenhum comentário:

Postar um comentário