domingo, 13 de abril de 2025

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - o)

em busca do tempo perdido


volume II
À Sombra das Moças em Flor

Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar


(o)

continuando...

      Não foi sem um leve choque no coração que, na primeira página da lista de hóspedes, percebi as palavras: "Simonet e família." Conservava em mim velhas fantasias, datadas da infância, e nelas toda a ternura que havia em meu coração, mas que, sentida por ele e dele não se distinguindo, me fora trazida por uma criatura tão diversa de mim quanto possível. Este ser, agora uma vez mais eu o fabricava, para tanto utilizando o nome de Simonet e a lembrança da harmonia que reinava entre os corpos jovens que tinha visto a desfilar pela praia numa procissão esportiva digna da antiguidade e de Giotto. Não sabia qual daquelas jovens era a Srta. Simonet, se alguma delas assim se chamava, mas sabia que era amado pela Srta. Simonet e que, graças a Saint-Loup, ia tentar conhecê-la. Infelizmente, Saint-Loup obtivera prorrogação da licença, mas sob a condição de comparecer todos os dias a Doncieres; e, para fazê-lo faltar às suas obrigações militares, julgara eu poder contar, não somente com sua amizade por mim, mas também com aquela mesma curiosidade de naturalista humano que tantas vezes fizera despertar em mim o desejo de conhecer uma nova espécie de beleza feminina, mesmo sem ter visto a pessoa de que falavam, e apenas por ouvir dizer que numa certa casa de frutas havia uma caixeira muito bonita. Ora, foi em vão que procurei excitar em Saint-Loup essa curiosidade, falando-lhe nas minhas moças. Nele, a curiosidade estava há muito paralisada pelo amor que dedicava àquela atriz da qual se fizera amante. E, mesmo que houvesse sentido de leve essa curiosidade, tê-la-ia reprimido em virtude de uma crença supersticiosa de que de sua própria fidelidade poderia depender a fidelidade da amante. Assim, fomos jantar em Rivebelle sem que me prometesse ocupar-se seriamente de minhas jovens.
      Nos primeiros tempos, ao chegarmos, o sol acabava de se pôr, mas o céu ainda estava claro; no jardim do restaurante, cujas luzes ainda não se achavam acesas, o calor do dia tombava, depositava-se, como no fundo de um vaso ao longo de cujas paredes a geleia transparente e sombria do ar parecia tão consistente quanto uma grande roseira, colada à parede obscura que ela estriava de rosa, e que se assemelhava à arborização que se enxerga no fundo de uma pedra de ônix. Em breve era somente à noite que descíamos do carro, e muitas vezes até já noite cerrada quando deixávamos Balbec, caso o tempo estivesse feio e tivéssemos demorado em mandar atrelar os cavalos, na esperança de uma melhora. Mas, nesses dias, era sem tristeza que ouvia o vento soprar, pois sabia que não significava o abandono dos meus projetos, a reclusão em um quarto; sabia que, na grande sala de jantar do restaurante, aonde entraríamos ao som da música dos ciganos, as inumeráveis lâmpadas triunfariam com facilidade da escuridão e do frio, aplicando-lhes seus amplos cautérios de ouro, e eu subia alegremente e me sentava ao lado de Saint-Loup no cupê que nos esperava debaixo do aguaceiro. Depois de algum tempo, as palavras de Bergotte, dizendo-se convencido de que eu, malgrado o que pretendia, tinha inclinações para desfrutar os prazeres da inteligência, que haviam dado, quanto ao que poderia fazer mais tarde, uma esperança desmentida todos os dias pelo aborrecimento que sentia em sentar à mesa para principiar um estudo crítico ou um romance. "Afinal", dizia para mim mesmo, "talvez o prazer que se tenha de escrever uma bela página não seja o critério infalível do seu valor; talvez não passe de um estado acessório que muitas vezes vem se acrescentar a ela, mas cuja falta não faz diferença. Talvez certas obras-primas tenham sido feitas entre bocejos." Minha avó desfazia minhas dúvidas dizendo que eu trabalharia bem, com alegria, se estivesse bem de saúde. E, tendo o nosso médico julgado mais prudente advertir-me dos graves riscos a que poderia me expor o meu estado; prescrevendo-me todas as precauções de higiene que deveria seguir para evitar um acidente, eu subordinava todos os prazeres ao objetivo, que achava infinitamente mais importante que eles, de me tornar bastante forte para poder realizar a obra que talvez carregasse dentro de mim, e exercia sobre mim mesmo, desde que chegará a Balbec, um controle constante e minucioso. Ninguém poderia me fazer tocar na taça de café, que me privaria do sono noturno, necessário para não me mostrar cansado no dia seguinte. Mas quando chegávamos a Rivebelle-devido à excitação, de um prazer novo, e encontrando-me nessa região diferente em que o excepcional nos faz penetrar depois de ter cortado o fio, tecido com paciência há tantos dias que nos levava à sensatez-, como se nunca devesse haver amanhã, nem objetivos elevados a realizar, logo desaparecia aquele exato mecanismo de prudente higiene que funcionava para salvaguardá-los. Enquanto um criado pedia abrigo Saint-Loup me dizia:

-  Não vai ficar com frio? Talvez fizesse melhor em conservá-lo, não é muito quente.

     Respondia:

-  Não, não. E talvez não sentisse o frio, mas, em todo caso, não conhecia o medo de cair doente, a necessidade de não morrer, a importância de trabalhar.

     Dava minha capa; entrávamos na sala do restaurante ao som de uma marcha guerreira tocada pelos ciganos, avançávamos por entre as filas de mesas postas como num fácil caminho de glória e, sentindo o alegre ardor impressor de nossos corpos pelos ritmos da orquestra que nos concedia suas honras militar - aquele triunfo imerecido, nós o dissimulávamos por trás de um rosto grave e gelado, sob um andar cheio de lassidão, para não imitar essas cantoras de café concerto que, a fim de cantar num tom belicoso uma canção indecente, entram em cena com entonação marcial de um general vitorioso. 
     A partir daquele momento, eu era um homem novo, que já não seria o neto de minha avó e só lembraria dela ao sair, e sim o irmão momentâneo dos moços que iriam nos servir.
     A dose de cerveja, e com maior razão a de champanha, que em Balbec eu não consentiria em atingir numa semana, embora então à minha consciência calma e lúcida o sabor dessas bebidas apresentasse um prazer visivelmente apreciável mas facilmente sacrificado, eu a consumia numa hora, acrescentando-lhe algumas gotas de vinho do Porto, distraído demais para poder apreciá-lo, e dava ao violinista, que acabava de tocar, os dois luíses que economizava há um mês para comprar algo de que já não me lembrava. Alguns dos garçons que serviam, soltos por entre as mesas, corriam a toda pressa com um prato nas palmas estendidas, parecendo até que não deixá-lo cair fosse o objetivo dessas corridas. E, de fato, os suflês de chocolate chegavam ao destino sem terem sido revirados, as maçãs à inglesa, apesar do galope que as deveria ter sacudido, arrumadas, como na partida, em torno do carneiro de Pauillac. Reparei num desses criados, bem grande, ornado de soberbos cabelos pretos, o rosto pintado de uma cor que mais lembrava certas espécies de pássaros raros que a espécie humana, e que, correndo sem parar e, ao que parecia, sem objetivo, de uma extremidade a outra da sala, lembrava uma dessas araras que enchem os grandes aviários dos jardins zoológicos com suas cores ardentes e sua incompreensível agitação. Em breve o espetáculo se organizou, pelo menos a meus olhos, de um modo mais nobre e mais calmo.
     Toda aquela atividade vertiginosa se fixou numa tranquila harmonia. Eu olhava as mesas redondas cuja inumerável assembleia enchia o restaurante, como outros tantos planetas, assim como eram figurados nos quadros alegóricos de antigamente. Ademais, exercia-se uma irresistível força de atração entre esses diversos astros e, em cada mesa, os ocupantes só tinham olhos para as mesas vizinhas, exceção feita a um rico anfitrião, o qual, tendo conseguido trazer um escritor famoso, empenhava-se em extrair dele, graças às virtudes da mesa giratória, frases insignificantes que deslumbravam as senhoras. A harmonia dessas mesas astrais não impedia a incessante revolução dos criados inumeráveis, que, por não estarem sentados como os que jantavam, e sim de pé, evoluíam numa zona superior. É claro que um corria para levar as entradas, trocar o vinho, juntar os copos. Porém, apesar dessas razões particulares, sua corrida permanente por entre as mesas redondas acabava por esclarecer a lei de sua circulação regulada e vertiginosa. Sentadas por detrás de um maciço de flores, duas horríveis caixas, ocupadas em cálculos sem fim, pareciam duas mágicas empenhadas em prever, por meio de cálculos astrológicos, as perturbações que às vezes poderiam ocorrer nessa abóbada celeste concebida conforme a ciência da Idade Média.
     Eu lastimava um pouco todos os que jantavam porque sentia que, para eles, as mesas redondas não eram planetas e que não tinham praticado nas coisas o seccionamento que nos desembaraça de sua aparência habitual, permitindo-nos perceber analogias. Pensavam estar jantando com tal ou qual pessoa, que a refeição custaria mais ou menos tanto, e que recomeçariam no dia seguinte. Pareciam absolutamente insensíveis ao desfilar de um cortejo de jovens empregados que não tendo provavelmente nada de urgente a fazer no momento, levavam processionalmente alguns pães em grandes cestos. Alguns, muito moços, estonteados pelos cachações que os mordomos lhes davam ao passar, fixavam os olhos, melancolicamente num sonho remoto e só se consolavam se um hóspede do hotel de Balbec, onde outrora tinham sido empregados, reconhecia-os, dirigia-lhes a palavra e lhes pedia pessoalmente que levassem a champanha, impossível de beber, o que os enchia de orgulho.
     Eu ouvia o vibrar de meus nervos, nos quais havia bem-estar, independente dos objetos exteriores que o pudessem proporcionar, e que o menor deslocamento que eu desse ao meu corpo, à minha atenção, bastava para me fazer experimentar, como num olho fechado uma leve compressão produz a sensação da cor. Já bebera muito vinho do Porto e, se ainda pedia mais, era menos em função do bem-estar que os novos copos me trariam do que por efeito do bem estar produzido pelos copos anteriores. Deixei a própria música transportar meu prazer sobre cada nota, onde, docilmente, ele então vinha pousar. Se, como no caso das indústrias químicas, graças às quais são lançados para consumo, em grande quantidades, corpos que só de modo acidental se encontram na natureza, e raramente, este restaurante de Rivebelle reunia, num mesmo momento, mais mulheres de cujo íntimo me solicitavam perspectivas de felicidade que o acaso dos passeios ou das viagens me teria feito encontrar em um ano; por um lado, aquela música que ouvíamos arranjos de valsas, de operetas alemãs, de canções de café-concerto, todas novas para mim era ela própria como um lugar de prazer aéreo, superposto ao outro e mais excitante que ele. Pois cada motivo, particular como uma mulher, não reservava, como ela o teria feito, para algum privilegiado, o segredo de volúpia que encobria: ele o oferecia a mim, me ambicionava, vinha à mim com passo caprichoso ou canalha, me abordava, me acariciava como se, de repente, eu me tornasse mais sedutor, mais rico ou poderoso; bem que eu achava nessas músicas, algo de cruel; é que todo sentimento desinteressado de beleza, todo reflexo da inteligência, lhes era desconhecido; para elas, só o prazer físico existe. E elas são o inferno mais implacável, o mais destituído de saídas para o desgraçado ciumento a quem apresentam esse prazer; prazer que a mulher desfruta com outro como sendo a única coisa que existe no mundo para aquele o enche por inteiro. Mas, enquanto eu repetia a meia voz as notas dessa música, e lhe devolvia o seu beijo, a volúpia toda sua, que me dava, se me tornou tão preciosa que eu teria deixado meus pais para seguir esse motivo pelo mundo singular que ele construía no invisível, em linhas alternadamente cheias de langor de vivacidade. Conquanto um tal prazer não seja do tipo dos que dão mais valor pessoal a que se ajuntam, pois só é sentido por ela, e conquanto, a cada vez que nossa vida, desagradamos a uma mulher que nos viu, ela ignore se, naquele momento, possuíamos ou não essa felicidade interior e subjetiva que, por conseguinte, em nada lhe teria mudado o juízo que formou a nosso respeito, eu me sentia mais poderoso, quase irresistível. Parecia-me que meu amor já não era algo desagradável e de que pudessem sorrir, mas continha precisamente a beleza tocante, a sedução dessa música, ela mesma semelhante a um ambiente simpático onde a minha amada e eu nos encontraríamos e, de súbito, ficaríamos íntimos.
     O restaurante não era frequentado apenas por mulheres levianas, mas também por pessoas da mais alta roda elegante, que ali vinham merendar às cinco da tarde ou davam grandes jantares. Os lanches ocorriam numa longa e estreita galeria envidraçada, em forma de corredor, o qual, indo do vestíbulo ao refeitório, costeava de um lado o jardim, do qual estava separada apenas por algumas colunas de pedras e pelas vidraças que se abriam aqui ou ali. Isso causava, além de numerosas correntes de ar, súbitos e intermitentes reflexos de sol, uma iluminação ofuscante e instável que quase impedia de distinguir as mulheres que, quando ali se encontravam, empilhadas de duas em duas mesas em todo o comprimento do estreito gargalo, como cintilassem a cada movimento que faziam para beber chá ou cumprimentar umas às outras, dir-se-ia um reservatório, uma armadilha em que o pescador acumulasse os fulgurantes peixes escolhidos, os quais, metade fora d'água e banhados de raios, resplandeciam aos nossos olhos em seu brilho cambiante.
     Algumas horas depois, durante o jantar, o qual era naturalmente servido no refeitório, acendiam-se as luzes, se bem que ainda estivesse claro lá fora, de modo que a gente via à nossa frente, no jardim, ao lado dos pavilhões iluminados pelo crepúsculo, e que pareciam os pálidos espectros da tardinha, alamedas arborizadas cuja glauca verdura era atravessada pelos últimos raios de sol, e que, do refeitório iluminado pelas lâmpadas, onde se jantava, surgiam, além das vidraças não mais, como se teria dito das damas que merendavam no fim da tarde, ao longo do corredor azulado e de ouro, numa faixa cintilante e úmida; mas como as vegetações de um pálido e verde aquário gigante banhado em luz sobrenatural. Erguiam-se da mesa; e, se os convivas, durante a refeição, passando o tempo todo a olhar, reconhecer, a perguntar sobre os convivas da mesa próxima, tinham sido retidos numa coesão perfeita em torno da própria mesa, a força atrativa, que os fazia orbitar ao redor de seu anfitrião de uma noite, perdia um tanto de seu poder no momento em que, para tomar café, dirigiam-se para aquele mesmo corredor em que os outros haviam tomado chá; muitas vezes acontecia que, na ocasião da passagem, algum jantar em andamento perdia um ou vários de seus corpúsculos que, tendo sofrido muito fortemente a atração do jantar rival, destacavam-se um instante do seu, onde eram substituídos por senhores ou senhoras que tinham vindo cumprimentar amigos, antes de regressar, dizendo:

- Tenho de sair para me encontrar com o Sr. X, que hoje me convidou. E, por um instante, dir-se-ia que eram dois buquês separados que houvessem trocado algumas de suas flores.

      Depois o próprio corredor se esvaziava. Com frequência, como mesmo depois de jantar ainda houvesse um pouco de claridade, esse longo corredor não era iluminado e, acotovelado pelas árvores que se inclinavam lá fora, do outro lado da vidraça, dava a impressão de uma alameda num parque espesso e tenebroso. Às vezes, a meia escuridão, uma conviva ali se demorava. Atravessando-o para sair, distinguia no corredor, uma noite, sentada no meio de um grupo desconhecido, a bela princesa de Luxemburgo. Sem parar, tirei o chapéu. Ela me reconheceu, inclinou a cabeça e sorriu; bem acima desse cumprimento, emanando daquele próprio gesto elevaram-se melodiosamente algumas palavras a mim dirigidas, e que deviam ser um "boa noite" um tanto prolongado, não para que ficasse, mas apenas para completar a saudação, transformá-la num cumprimento falado. Mas eram tão indistintas as palavras, e o único som que ouvi se prolongou tão suavemente e me parecera tão musical, que foi como se, na ramaria ensombrecida das árvores, um rouxinol se pusesse a cantar. Se, por acaso, para terminar a noitada com um grupo de amigos seus que havíamos encontrado, Saint-Loup decidia nos levar ao cassino de alguma praia vizinha, e se, partindo com eles, punha-me sozinho num carro, eu recomendava ao cocheiro que fosse a toda a velocidade, para que se tornassem menos longos os momentos que passaria sem ter ajuda de ninguém que me dispensasse; - fornecer eu próprio à minha sensibilidade - dando marcha a ré e saindo da passividade em que me havia prendido como numa engrenagem essas modificações que recebia dos outros desde que chegara a Rivebelle. O choque possível corria se o carro que viesse em sentido contrário nesses caminhos onde só há espaço para passagem de um e onde a noite era negra, a instabilidade do solo, com frequência desmoronado, da falésia, a proximidade de sua vertente a pique sobre o mar, disso encontrava em mim o pequeno esforço necessário para levar a imagem de temor do perigo até a minha razão. É que, do mesmo modo que, não o desejo de tornar célebre, mas o hábito de trabalhar é que nos permite produzir uma obra, não é a alegria do momento presente, mas as sábias reflexões do passado, que nos auxiliam a preservar o futuro. Ora, se já, ao chegar a Rivebelle, lançara para longe de mim essas muletas da razão, do autocontrole, que ajudam nossa fraqueza a prosseguir no caminho certo; estava exposto a uma espécie de ataxia moral, o álcool distendendo excepcionalmente meus nervos, havia dado aos minutos de uma qualidade, um encanto que não tinham por efeito me tornar mais apto sequer mais resoluto para defendê-los; pois, fazendo-me preferi-los mil vezes resto da minha vida, minha exaltação os isolava; eu era como os heróis, estava encerrado no presente; momentaneamente eclipsado, meu passado não projetava à minha frente aquela sombra de si mesmo a que chamamos futuro; colocando o objetivo da minha vida não mais na realização dos sonhos desse passado, mas na felicidade do minuto presente, nada enxergava além. De modo que, por uma contradição apenas aparente, no momento em que eu experimentava um prazer excepcional, quando sentia que minha vida podia ser feliz, em que poderia ter mais valor a meus olhos, nesse momento é que, liberto das preocupações que até então ela poderia ter me inspirado, eu a entregava sem hesitar ao acaso de um acidente. Aliás, não fazia, em suma, senão concentrar numa noite a incúria que para os outros homens está diluída em sua existência inteira, onde diariamente afrontam sem necessidade o risco de uma viagem marítima, de um passeio de aeroplano ou de automóvel, quando os espera em casa a criatura que sua morte destruiria ou quando ainda está ligado à fragilidade de seus cérebros o livro cujo próximo lançamento é a única razão de suas vidas. Da mesma forma, no restaurante de Rivebelle, nas noites em que ali ficávamos, se alguém aparecesse com o intuito de me matar, como eu só via numa distância longínqua e irreal a minha avó, o meu por vir, os livros por escrever, como aderia por inteiro ao aroma da mulher que estava na mesa vizinha, à polidez dos mordomos, aos contornos da valsa que tocavam, como estava colado à sensação do momento, não tendo mais extensão que ela nem outra finalidade senão a de não ser separado dela, seria morto contra ela, me deixaria massacrar em resistência, sem me mexer, abelha entorpecida pelo fumo do tabaco, que já não se preocupa em conservar a provisão de seus esforços acumulados e a esperança de sua colmeia.
     De resto, devo dizer que esta insignificância em que recaíam as coisas mais graves, em contraste com a violência de minha exaltação, acabava por abranger até a Srta. Simonet e suas amigas. A empreitada de conhecê-las parecia-me agora fácil, porém indiferente, pois só a minha sensação atual, graças a seu extraordinário poder, à alegria que provocavam suas menores alterações e até a sua simples continuidade, tinha importância para mim; tudo o mais, parentes, trabalho, prazeres, moças de Balbec, pesava menos que um floco de espuma numa ventania que não o deixa repousar, existia apenas em relação a esse poder interior; a embriaguez realiza, por algumas horas, o idealismo subjetivo, o fenomenismo puro; tudo não passa de aparências e só existe em função do nosso sublime eu. Aliás, não quer dizer que um amor de verdade, se o tivermos, não possa subsistirem semelhante estado. Porém, sentimos tão perfeitamente, como num meio novo, que pressões desconhecidas mudaram as dimensões desse sentimento, que não podemos considerá-lo do mesmo modo que antes. Este mesmo amor, é certo que o reencontramos, porém deslocado, já sem pesar sobre nós, satisfeito com a sensação que lhe concede o presente e que nos basta, pois não nos importamos com o que não é atual. Infelizmente, o coeficiente que muda assim os valores só os muda nessa hora de embriaguez. As pessoas que não tinham mais importância e sobre as quais soprávamos como se fossem bolhas de sabão, amanhã retomarão sua densidade; será preciso tentar entregar-se novamente a trabalhos que já não significam nada. Coisa ainda mais grave, essa matemática do amanhã, a mesma de ontem, e com cujos problemas nos encontraremos inexoravelmente enleados, é ela que nos rege mesmo durante aquelas horas, salvo para nós próprios. Se está perto de nós uma mulher virtuosa ou hostil, essa coisa tão difícil na véspera a saber, que chegávamos a lhe agradar nos parece agora um milhão de vezes mais fácil sem que tenha ficado em nada, pois apenas a nossos próprios olhos, nossos próprios olhos interiores, é que mudamos. E ela fica tão descontente, no momento mesmo que nos tenhamos permitido uma familiaridade, como o estaremos no dia seguinte por ter dado cem francos ao groom, e pelo mesmo motivo que para nós foi apenas retardado: a ausência de embriaguez.
     Não conhecia nenhuma das mulheres que estavam em Rivebelle e quer por fazerem parte de minha embriaguez como os reflexos fazem parte do espelho, me pareciam mil vezes mais desejáveis do que a cada vez menos existente Srta. Simonet. Uma jovem loura, sozinha, de ar triste, sob um chapéu de palha recheado de flores do campo, olhou-me por um instante com ar sonhador e me pareceu, agradável.
     Depois, foi a vez de uma outra; depois, de uma terceira; por fim, de uma morena de pele deslumbrante. Ao contrário do que ocorria comigo, quase todas eram conhecidas de Saint-Loup.
     Antes de conhecer a sua amante atual, ele de fato vivera de tal modo no mundo restrito da boêmia que, de todas as mulheres que jantavam naquelas noites em Rivebelle, muitas das quais ali se achavam por acaso, tendo vindo à praia, algumas para encontrar o amante, outras para tentar conseguir um, não havia quase nenhuma que ele não conhecesse por ter passado ele mesmo ou um de seus amigos - ao menos uma noite com ela. Não as saudava se estavam acompanhadas de um homem, e elas, mesmo olhando-o mais que a qualquer outro, pois indiferença que sabiam ter ele por toda mulher que não fosse a sua atriz lhe dava aos olhos delas um prestígio singular, fingiam não conhecê-lo. E uma sussurrava:

 ''É o pequeno Saint-Loup. Parece que está sempre amando a sua putinha. É um grande amor. Que rapaz lindo! Acho-o extraordinário! E como é chique! Mesmo assim, há mulheres que têm uma sorte! É um senhor tipo em tudo. Conheci-o muito bem quando eu estava com o d'Órleans. Os dois eram inseparáveis. Estavam na maior farra naquela época! Mas agora, nada disso; não lhe faz nenhuma infidelidade. Ah, ela pode dizer que tem mesmo sorte. E eu só me pergunto o que será que ele viu nela. É preciso que ele seja mesmo um grande idiota. Ela tem pés do tamanho de barcos, bigodes à americana, e a roupa de baixo é suja! Acho que uma operariazinha não ia querer ficar com suas calças. Repare bem nos olhos dele; faz gente se matar por um homem desses. Cale-se, ele me reconheceu, está rindo; eu sabia que ele se lembrava bem de mim.

     Entre ele e elas surpreendi um olhar de inteligência. Gostaria que me apresentasse a essas mulheres, gostaria de lhes pedir um encontro e que elas com isto concordassem, mesmo que eu não pudesse aceitá-lo. Pois sem isso o rosto delas permaneceria eternamente destituído, minha memória, dessa parte de si mesmo e como se estivesse oculto por um véu; que varia em todas as mulheres, que não podemos imaginar numa delas quando não a vimos, e que só aparece no olhar que nos é dirigido e que aquiesce ao nosso desejo e nos promete que ele será satisfeito. E, no entanto, mesmo assim restrito, a fisionomia delas valia muito mais para mim que a das mulheres que eu soubesse serem virtuosas, e não me parecia, como a destas, lisa, sem interior, composta de uma única peça sem espessura. Sem dúvida, não era para mim o que deveria ser para Saint-Loup que, pela memória, sob a indiferença, para ele transparente, dos traços imóveis que fingiam não conhecê-lo ou por trás da banalidade do cumprimento que lhe teriam dirigido tanto quanto a qualquer outro, lembrava, via, entre cabelos desfeitos, uma boca arquejante e olhos semicerrados, todo um quadro silencioso como aqueles que os pintores, para iludir a maioria dos visitantes, recobrem com um pano decente. Certamente, para mim, ao contrário, que sentia que nada do meu ser havia penetrado numa ou noutra dessas mulheres, e ali não seria transportado pelos caminhos desconhecidos que ela seguiria durante a vida, tais rostos permaneciam fechados. Mas já era muito saber que se abriam, para que me parecessem de um valor que não lhes teria atribuído se não fossem mais que belas medalhas, em vez de medalhões sob os quais se ocultavam lembranças de amor. Quanto a Robert, mal parando num lugar quando estava sentado, dissimulando com um sorriso de homem da sociedade a avidez de agir como homem de batalha, eu, encarando-o bem, percebia o quanto a ossatura enérgica de seu rosto triangular devia ser a mesma da de seus antepassados, mais apropriada para um ardente arqueiro do que para um letrado suave. Sob a pele fina, aparecia a construção ousada, a arquitetura feudal. A cabeça fazia pensar nessas torres de antigos torreões, cujas ameias inutilizadas permanecem visíveis, mas que foram preparadas internamente para serem bibliotecas.

continua na página 170...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - o)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

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