em busca do tempo perdido
volume II
À Sombra das Moças em Flor
Segunda Parte
Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar
(o)
continuando...
Não foi sem um leve choque no coração que, na primeira página da lista de hóspedes, percebi as palavras: "Simonet e família." Conservava em mim velhas fantasias, datadas da infância, e nelas toda a ternura que havia em meu coração, mas que, sentida por ele e dele não se distinguindo, me fora trazida por uma criatura tão diversa de mim quanto possível. Este ser, agora uma vez mais eu o fabricava, para tanto utilizando o nome de Simonet e a lembrança da harmonia que reinava entre os corpos jovens que tinha visto a desfilar pela praia numa procissão esportiva digna da antiguidade e de Giotto. Não sabia qual daquelas jovens era a Srta. Simonet, se alguma delas assim se chamava, mas sabia que era amado pela Srta. Simonet e que, graças a Saint-Loup, ia tentar conhecê-la. Infelizmente, Saint-Loup obtivera prorrogação da licença, mas sob a condição de comparecer todos os dias a Doncieres; e, para fazê-lo faltar às suas obrigações militares, julgara eu poder contar, não somente com sua amizade por mim, mas também com aquela mesma curiosidade de naturalista humano que tantas vezes fizera despertar em mim o desejo de conhecer uma nova espécie de beleza feminina, mesmo sem ter visto a pessoa de que falavam, e apenas por ouvir dizer que numa certa casa de frutas havia uma caixeira muito bonita. Ora, foi em vão que procurei excitar em Saint-Loup essa curiosidade, falando-lhe nas minhas moças. Nele, a curiosidade estava há muito paralisada pelo amor que dedicava àquela atriz da qual se fizera amante. E, mesmo que houvesse sentido de leve essa curiosidade, tê-la-ia reprimido em virtude de uma crença supersticiosa de que de sua própria fidelidade poderia depender a fidelidade da amante. Assim, fomos jantar em Rivebelle sem que me prometesse ocupar-se seriamente de minhas jovens.
Nos primeiros tempos, ao chegarmos, o sol acabava de se pôr, mas o céu ainda estava
claro; no jardim do restaurante, cujas luzes ainda não se achavam acesas, o calor do dia
tombava, depositava-se, como no fundo de um vaso ao longo de cujas paredes a geleia
transparente e sombria do ar parecia tão consistente quanto uma grande roseira, colada à parede
obscura que ela estriava de rosa, e que se assemelhava à arborização que se enxerga no fundo
de uma pedra de ônix. Em breve era somente à noite que descíamos do carro, e muitas vezes até
já noite cerrada quando deixávamos Balbec, caso o tempo estivesse feio e tivéssemos demorado
em mandar atrelar os cavalos, na esperança de uma melhora. Mas, nesses dias, era sem tristeza
que ouvia o vento soprar, pois sabia que não significava o abandono dos meus projetos, a
reclusão em um quarto; sabia que, na grande sala de jantar do restaurante, aonde entraríamos ao
som da música dos ciganos, as inumeráveis lâmpadas triunfariam com facilidade da escuridão e
do frio, aplicando-lhes seus amplos cautérios de ouro, e eu subia alegremente e me sentava ao
lado de Saint-Loup no cupê que nos esperava debaixo do aguaceiro. Depois de algum tempo, as
palavras de Bergotte, dizendo-se convencido de que eu, malgrado o que pretendia, tinha
inclinações para desfrutar os prazeres da inteligência, que haviam dado, quanto ao que poderia
fazer mais tarde, uma esperança desmentida todos os dias pelo aborrecimento que sentia em
sentar à mesa para principiar um estudo crítico ou um romance. "Afinal", dizia para mim mesmo,
"talvez o prazer que se tenha de escrever uma bela página não seja o critério infalível do seu
valor; talvez não passe de um estado acessório que muitas vezes vem se acrescentar a ela, mas
cuja falta não faz diferença. Talvez certas obras-primas tenham sido feitas entre bocejos." Minha
avó desfazia minhas dúvidas dizendo que eu trabalharia bem, com alegria, se estivesse bem de
saúde. E, tendo o nosso médico julgado mais prudente advertir-me dos graves riscos a que
poderia me expor o meu estado; prescrevendo-me todas as precauções de higiene que deveria
seguir para evitar um acidente, eu subordinava todos os prazeres ao objetivo, que achava
infinitamente mais importante que eles, de me tornar bastante forte para poder realizar a obra que
talvez carregasse dentro de mim, e exercia sobre mim mesmo, desde que chegará a Balbec, um
controle constante e minucioso. Ninguém poderia me fazer tocar na taça de café, que me privaria
do sono noturno, necessário para não me mostrar cansado no dia seguinte. Mas quando
chegávamos a Rivebelle-devido à excitação, de um prazer novo, e encontrando-me nessa região
diferente em que o excepcional nos faz penetrar depois de ter cortado o fio, tecido com paciência
há tantos dias que nos levava à sensatez-, como se nunca devesse haver amanhã, nem objetivos
elevados a realizar, logo desaparecia aquele exato mecanismo de prudente higiene que
funcionava para salvaguardá-los. Enquanto um criado pedia abrigo Saint-Loup me dizia:
- Não vai ficar com frio? Talvez fizesse melhor em conservá-lo, não é muito quente.
Respondia:
- Não, não. E talvez não sentisse o frio, mas, em todo caso, não conhecia o medo de cair
doente, a necessidade de não morrer, a importância de trabalhar.
Dava minha capa; entrávamos na sala do restaurante ao som de uma marcha guerreira
tocada pelos ciganos, avançávamos por entre as filas de mesas postas como num fácil caminho
de glória e, sentindo o alegre ardor impressor de nossos corpos pelos ritmos da orquestra que nos
concedia suas honras militar - aquele triunfo imerecido, nós o dissimulávamos por trás de um
rosto grave e gelado, sob um andar cheio de lassidão, para não imitar essas cantoras de café
concerto que, a fim de cantar num tom belicoso uma canção indecente, entram em cena com
entonação marcial de um general vitorioso.
A partir daquele momento, eu era um homem novo, que já não seria o neto de minha avó e
só lembraria dela ao sair, e sim o irmão momentâneo dos moços que iriam nos servir.
A dose de cerveja, e com maior razão a de champanha, que em Balbec eu não consentiria
em atingir numa semana, embora então à minha consciência calma e lúcida o sabor dessas
bebidas apresentasse um prazer visivelmente apreciável mas facilmente sacrificado, eu a
consumia numa hora, acrescentando-lhe algumas gotas de vinho do Porto, distraído demais para
poder apreciá-lo, e dava ao violinista, que acabava de tocar, os dois luíses que economizava há
um mês para comprar algo de que já não me lembrava. Alguns dos garçons que serviam, soltos
por entre as mesas, corriam a toda pressa com um prato nas palmas estendidas, parecendo até
que não deixá-lo cair fosse o objetivo dessas corridas. E, de fato, os suflês de chocolate
chegavam ao destino sem terem sido revirados, as maçãs à inglesa, apesar do galope que as
deveria ter sacudido, arrumadas, como na partida, em torno do carneiro de Pauillac. Reparei num
desses criados, bem grande, ornado de soberbos cabelos pretos, o rosto pintado de uma cor que
mais lembrava certas espécies de pássaros raros que a espécie humana, e que, correndo sem
parar e, ao que parecia, sem objetivo, de uma extremidade a outra da sala, lembrava uma dessas
araras que enchem os grandes aviários dos jardins zoológicos com suas cores ardentes e sua
incompreensível agitação. Em breve o espetáculo se organizou, pelo menos a meus olhos, de um
modo mais nobre e mais calmo.
Toda aquela atividade vertiginosa se fixou numa tranquila harmonia. Eu olhava as mesas
redondas cuja inumerável assembleia enchia o restaurante, como outros tantos planetas, assim
como eram figurados nos quadros alegóricos de antigamente. Ademais, exercia-se uma irresistível
força de atração entre esses diversos astros e, em cada mesa, os ocupantes só tinham olhos para
as mesas vizinhas, exceção feita a um rico anfitrião, o qual, tendo conseguido trazer um escritor
famoso, empenhava-se em extrair dele, graças às virtudes da mesa giratória, frases
insignificantes que deslumbravam as senhoras. A harmonia dessas mesas astrais não impedia a
incessante revolução dos criados inumeráveis, que, por não estarem sentados como os que
jantavam, e sim de pé, evoluíam numa zona superior. É claro que um corria para levar as
entradas, trocar o vinho, juntar os copos. Porém, apesar dessas razões particulares, sua corrida
permanente por entre as mesas redondas acabava por esclarecer a lei de sua circulação regulada
e vertiginosa. Sentadas por detrás de um maciço de flores, duas horríveis caixas, ocupadas em
cálculos sem fim, pareciam duas mágicas empenhadas em prever, por meio de cálculos
astrológicos, as perturbações que às vezes poderiam ocorrer nessa abóbada celeste concebida
conforme a ciência da Idade Média.
Eu lastimava um pouco todos os que jantavam porque sentia que, para eles, as mesas
redondas não eram planetas e que não tinham praticado nas coisas o seccionamento que nos
desembaraça de sua aparência habitual, permitindo-nos perceber analogias. Pensavam estar
jantando com tal ou qual pessoa, que a refeição custaria mais ou menos tanto, e que
recomeçariam no dia seguinte. Pareciam absolutamente insensíveis ao desfilar de um cortejo de
jovens empregados que não tendo provavelmente nada de urgente a fazer no momento, levavam
processionalmente alguns pães em grandes cestos. Alguns, muito moços, estonteados pelos
cachações que os mordomos lhes davam ao passar, fixavam os olhos, melancolicamente num
sonho remoto e só se consolavam se um hóspede do hotel de Balbec, onde outrora tinham sido
empregados, reconhecia-os, dirigia-lhes a palavra e lhes pedia pessoalmente que levassem a
champanha, impossível de beber, o que os enchia de orgulho.
Eu ouvia o vibrar de meus nervos, nos quais havia bem-estar, independente dos objetos
exteriores que o pudessem proporcionar, e que o menor deslocamento que eu desse ao meu
corpo, à minha atenção, bastava para me fazer experimentar, como num olho fechado uma leve
compressão produz a sensação da cor. Já bebera muito vinho do Porto e, se ainda pedia mais,
era menos em função do bem-estar que os novos copos me trariam do que por efeito do bem
estar produzido pelos copos anteriores. Deixei a própria música transportar meu prazer sobre
cada nota, onde, docilmente, ele então vinha pousar. Se, como no caso das indústrias químicas,
graças às quais são lançados para consumo, em grande quantidades, corpos que só de modo
acidental se encontram na natureza, e raramente, este restaurante de Rivebelle reunia, num
mesmo momento, mais mulheres de cujo íntimo me solicitavam perspectivas de felicidade que o
acaso dos passeios ou das viagens me teria feito encontrar em um ano; por um lado, aquela
música que ouvíamos arranjos de valsas, de operetas alemãs, de canções de café-concerto,
todas novas para mim era ela própria como um lugar de prazer aéreo, superposto ao outro e mais
excitante que ele. Pois cada motivo, particular como uma mulher, não reservava, como ela o teria
feito, para algum privilegiado, o segredo de volúpia que encobria: ele o oferecia a mim, me
ambicionava, vinha à mim com passo caprichoso ou canalha, me abordava, me acariciava como
se, de repente, eu me tornasse mais sedutor, mais rico ou poderoso; bem que eu achava nessas
músicas, algo de cruel; é que todo sentimento desinteressado de beleza, todo reflexo da
inteligência, lhes era desconhecido; para elas, só o prazer físico existe. E elas são o inferno mais
implacável, o mais destituído de saídas para o desgraçado ciumento a quem apresentam esse
prazer; prazer que a mulher desfruta com outro como sendo a única coisa que existe no mundo
para aquele o enche por inteiro. Mas, enquanto eu repetia a meia voz as notas dessa música, e
lhe devolvia o seu beijo, a volúpia toda sua, que me dava, se me tornou tão preciosa que eu teria
deixado meus pais para seguir esse motivo pelo mundo singular que ele construía no invisível, em
linhas alternadamente cheias de langor de vivacidade. Conquanto um tal prazer não seja do tipo
dos que dão mais valor pessoal a que se ajuntam, pois só é sentido por ela, e conquanto, a cada
vez que nossa vida, desagradamos a uma mulher que nos viu, ela ignore se, naquele momento,
possuíamos ou não essa felicidade interior e subjetiva que, por conseguinte, em nada lhe teria
mudado o juízo que formou a nosso respeito, eu me sentia mais poderoso, quase irresistível.
Parecia-me que meu amor já não era algo desagradável e de que pudessem sorrir, mas continha
precisamente a beleza tocante, a sedução dessa música, ela mesma semelhante a um ambiente
simpático onde a minha amada e eu nos encontraríamos e, de súbito, ficaríamos íntimos.
O restaurante não era frequentado apenas por mulheres levianas, mas também por
pessoas da mais alta roda elegante, que ali vinham merendar às cinco da tarde ou davam
grandes jantares. Os lanches ocorriam numa longa e estreita galeria envidraçada, em forma de
corredor, o qual, indo do vestíbulo ao refeitório, costeava de um lado o jardim, do qual estava
separada apenas por algumas colunas de pedras e pelas vidraças que se abriam aqui ou ali. Isso
causava, além de numerosas correntes de ar, súbitos e intermitentes reflexos de sol, uma
iluminação ofuscante e instável que quase impedia de distinguir as mulheres que, quando ali se
encontravam, empilhadas de duas em duas mesas em todo o comprimento do estreito gargalo,
como cintilassem a cada movimento que faziam para beber chá ou cumprimentar umas às outras,
dir-se-ia um reservatório, uma armadilha em que o pescador acumulasse os fulgurantes peixes
escolhidos, os quais, metade fora d'água e banhados de raios, resplandeciam aos nossos olhos
em seu brilho cambiante.
Algumas horas depois, durante o jantar, o qual era naturalmente servido no refeitório,
acendiam-se as luzes, se bem que ainda estivesse claro lá fora, de modo que a gente via à nossa
frente, no jardim, ao lado dos pavilhões iluminados pelo crepúsculo, e que pareciam os pálidos
espectros da tardinha, alamedas arborizadas cuja glauca verdura era atravessada pelos últimos
raios de sol, e que, do refeitório iluminado pelas lâmpadas, onde se jantava, surgiam, além das
vidraças não mais, como se teria dito das damas que merendavam no fim da tarde, ao longo do
corredor azulado e de ouro, numa faixa cintilante e úmida; mas como as vegetações de um pálido
e verde aquário gigante banhado em luz sobrenatural. Erguiam-se da mesa; e, se os convivas,
durante a refeição, passando o tempo todo a olhar, reconhecer, a perguntar sobre os convivas da
mesa próxima, tinham sido retidos numa coesão perfeita em torno da própria mesa, a força
atrativa, que os fazia orbitar ao redor de seu anfitrião de uma noite, perdia um tanto de seu poder
no momento em que, para tomar café, dirigiam-se para aquele mesmo corredor em que os outros
haviam tomado chá; muitas vezes acontecia que, na ocasião da passagem, algum jantar em
andamento perdia um ou vários de seus corpúsculos que, tendo sofrido muito fortemente a
atração do jantar rival, destacavam-se um instante do seu, onde eram substituídos por senhores
ou senhoras que tinham vindo cumprimentar amigos, antes de regressar, dizendo:
- Tenho de sair para me encontrar com o Sr. X, que hoje me convidou. E, por um instante,
dir-se-ia que eram dois buquês separados que houvessem trocado algumas de suas flores.
Depois o próprio corredor se esvaziava. Com frequência, como mesmo depois de jantar
ainda houvesse um pouco de claridade, esse longo corredor não era iluminado e, acotovelado
pelas árvores que se inclinavam lá fora, do outro lado da vidraça, dava a impressão de uma
alameda num parque espesso e tenebroso. Às vezes, a meia escuridão, uma conviva ali se
demorava. Atravessando-o para sair, distinguia no corredor, uma noite, sentada no meio de um
grupo desconhecido, a bela princesa de Luxemburgo. Sem parar, tirei o chapéu. Ela me
reconheceu, inclinou a cabeça e sorriu; bem acima desse cumprimento, emanando daquele
próprio gesto elevaram-se melodiosamente algumas palavras a mim dirigidas, e que deviam ser
um "boa noite" um tanto prolongado, não para que ficasse, mas apenas para completar a
saudação, transformá-la num cumprimento falado. Mas eram tão indistintas as palavras, e o único
som que ouvi se prolongou tão suavemente e me parecera tão musical, que foi como se, na
ramaria ensombrecida das árvores, um rouxinol se pusesse a cantar. Se, por acaso, para terminar
a noitada com um grupo de amigos seus que havíamos encontrado, Saint-Loup decidia nos levar
ao cassino de alguma praia vizinha, e se, partindo com eles, punha-me sozinho num carro, eu
recomendava ao cocheiro que fosse a toda a velocidade, para que se tornassem menos longos os
momentos que passaria sem ter ajuda de ninguém que me dispensasse; - fornecer eu próprio à
minha sensibilidade - dando marcha a ré e saindo da passividade em que me havia prendido
como numa engrenagem essas modificações que recebia dos outros desde que chegara a
Rivebelle. O choque possível corria se o carro que viesse em sentido contrário nesses caminhos
onde só há espaço para passagem de um e onde a noite era negra, a instabilidade do solo, com
frequência desmoronado, da falésia, a proximidade de sua vertente a pique sobre o mar, disso
encontrava em mim o pequeno esforço necessário para levar a imagem de temor do perigo até a
minha razão. É que, do mesmo modo que, não o desejo de tornar célebre, mas o hábito de
trabalhar é que nos permite produzir uma obra, não é a alegria do momento presente, mas as
sábias reflexões do passado, que nos auxiliam a preservar o futuro. Ora, se já, ao chegar a
Rivebelle, lançara para longe de mim essas muletas da razão, do autocontrole, que ajudam nossa
fraqueza a prosseguir no caminho certo; estava exposto a uma espécie de ataxia moral, o álcool
distendendo excepcionalmente meus nervos, havia dado aos minutos de uma qualidade, um
encanto que não tinham por efeito me tornar mais apto sequer mais resoluto para defendê-los;
pois, fazendo-me preferi-los mil vezes resto da minha vida, minha exaltação os isolava; eu era
como os heróis, estava encerrado no presente; momentaneamente eclipsado, meu passado não
projetava à minha frente aquela sombra de si mesmo a que chamamos futuro; colocando o
objetivo da minha vida não mais na realização dos sonhos desse passado, mas na felicidade do
minuto presente, nada enxergava além. De modo que, por uma contradição apenas aparente, no
momento em que eu experimentava um prazer excepcional, quando sentia que minha vida podia
ser feliz, em que poderia ter mais valor a meus olhos, nesse momento é que, liberto das
preocupações que até então ela poderia ter me inspirado, eu a entregava sem hesitar ao acaso de
um acidente. Aliás, não fazia, em suma, senão concentrar numa noite a incúria que para os outros
homens está diluída em sua existência inteira, onde diariamente afrontam sem necessidade o
risco de uma viagem marítima, de um passeio de aeroplano ou de automóvel, quando os espera
em casa a criatura que sua morte destruiria ou quando ainda está ligado à fragilidade de seus
cérebros o livro cujo próximo lançamento é a única razão de suas vidas. Da mesma forma, no
restaurante de Rivebelle, nas noites em que ali ficávamos, se alguém aparecesse com o intuito de
me matar, como eu só via numa distância longínqua e irreal a minha avó, o meu por vir, os livros
por escrever, como aderia por inteiro ao aroma da mulher que estava na mesa vizinha, à polidez
dos mordomos, aos contornos da valsa que tocavam, como estava colado à sensação do
momento, não tendo mais extensão que ela nem outra finalidade senão a de não ser separado
dela, seria morto contra ela, me deixaria massacrar em resistência, sem me mexer, abelha
entorpecida pelo fumo do tabaco, que já não se preocupa em conservar a provisão de seus
esforços acumulados e a esperança de sua colmeia.
De resto, devo dizer que esta insignificância em que recaíam as coisas mais graves, em
contraste com a violência de minha exaltação, acabava por abranger até a Srta. Simonet e suas
amigas. A empreitada de conhecê-las parecia-me agora fácil, porém indiferente, pois só a minha
sensação atual, graças a seu extraordinário poder, à alegria que provocavam suas menores
alterações e até a sua simples continuidade, tinha importância para mim; tudo o mais, parentes,
trabalho, prazeres, moças de Balbec, pesava menos que um floco de espuma numa ventania que
não o deixa repousar, existia apenas em relação a esse poder interior; a embriaguez realiza, por
algumas horas, o idealismo subjetivo, o fenomenismo puro; tudo não passa de aparências e só
existe em função do nosso sublime eu. Aliás, não quer dizer que um amor de verdade, se o
tivermos, não possa subsistirem semelhante estado. Porém, sentimos tão perfeitamente, como
num meio novo, que pressões desconhecidas mudaram as dimensões desse sentimento, que não
podemos considerá-lo do mesmo modo que antes. Este mesmo amor, é certo que o
reencontramos, porém deslocado, já sem pesar sobre nós, satisfeito com a sensação que lhe
concede o presente e que nos basta, pois não nos importamos com o que não é atual.
Infelizmente, o coeficiente que muda assim os valores só os muda nessa hora de embriaguez. As
pessoas que não tinham mais importância e sobre as quais soprávamos como se fossem bolhas
de sabão, amanhã retomarão sua densidade; será preciso tentar entregar-se novamente a
trabalhos que já não significam nada. Coisa ainda mais grave, essa matemática do amanhã, a
mesma de ontem, e com cujos problemas nos encontraremos inexoravelmente enleados, é ela
que nos rege mesmo durante aquelas horas, salvo para nós próprios. Se está perto de nós uma
mulher virtuosa ou hostil, essa coisa tão difícil na véspera a saber, que chegávamos a lhe agradar
nos parece agora um milhão de vezes mais fácil sem que tenha ficado em nada, pois apenas a
nossos próprios olhos, nossos próprios olhos interiores, é que mudamos. E ela fica tão
descontente, no momento mesmo que nos tenhamos permitido uma familiaridade, como o
estaremos no dia seguinte por ter dado cem francos ao groom, e pelo mesmo motivo que para
nós foi apenas retardado: a ausência de embriaguez.
Não conhecia nenhuma das mulheres que estavam em Rivebelle e quer por fazerem parte
de minha embriaguez como os reflexos fazem parte do espelho, me pareciam mil vezes mais
desejáveis do que a cada vez menos existente Srta. Simonet. Uma jovem loura, sozinha, de ar
triste, sob um chapéu de palha recheado de flores do campo, olhou-me por um instante com ar
sonhador e me pareceu, agradável.
Depois, foi a vez de uma outra; depois, de uma terceira; por fim, de uma morena de pele
deslumbrante. Ao contrário do que ocorria comigo, quase todas eram conhecidas de Saint-Loup.
Antes de conhecer a sua amante atual, ele de fato vivera de tal modo no mundo restrito da
boêmia que, de todas as mulheres que jantavam naquelas noites em Rivebelle, muitas das quais
ali se achavam por acaso, tendo vindo à praia, algumas para encontrar o amante, outras para
tentar conseguir um, não havia quase nenhuma que ele não conhecesse por ter passado ele
mesmo ou um de seus amigos - ao menos uma noite com ela. Não as saudava se estavam
acompanhadas de um homem, e elas, mesmo olhando-o mais que a qualquer outro, pois
indiferença que sabiam ter ele por toda mulher que não fosse a sua atriz lhe dava aos olhos delas
um prestígio singular, fingiam não conhecê-lo. E uma sussurrava:
''É o pequeno Saint-Loup. Parece que está sempre amando a sua putinha. É um grande
amor. Que rapaz lindo! Acho-o extraordinário! E como é chique! Mesmo assim, há mulheres que
têm uma sorte! É um senhor tipo em tudo. Conheci-o muito bem quando eu estava com o
d'Órleans. Os dois eram inseparáveis. Estavam na maior farra naquela época! Mas agora, nada
disso; não lhe faz nenhuma infidelidade. Ah, ela pode dizer que tem mesmo sorte. E eu só me
pergunto o que será que ele viu nela. É preciso que ele seja mesmo um grande idiota. Ela tem pés
do tamanho de barcos, bigodes à americana, e a roupa de baixo é suja! Acho que uma
operariazinha não ia querer ficar com suas calças. Repare bem nos olhos dele; faz gente se matar
por um homem desses. Cale-se, ele me reconheceu, está rindo; eu sabia que ele se lembrava
bem de mim.
Entre ele e elas surpreendi um olhar de inteligência. Gostaria que me apresentasse a
essas mulheres, gostaria de lhes pedir um encontro e que elas com isto concordassem, mesmo
que eu não pudesse aceitá-lo. Pois sem isso o rosto delas permaneceria eternamente destituído,
minha memória, dessa parte de si mesmo e como se estivesse oculto por um véu; que varia em
todas as mulheres, que não podemos imaginar numa delas quando não a vimos, e que só
aparece no olhar que nos é dirigido e que aquiesce ao nosso desejo e nos promete que ele será
satisfeito. E, no entanto, mesmo assim restrito, a fisionomia delas valia muito mais para mim que a
das mulheres que eu soubesse serem virtuosas, e não me parecia, como a destas, lisa, sem
interior, composta de uma única peça sem espessura. Sem dúvida, não era para mim o que
deveria ser para Saint-Loup que, pela memória, sob a indiferença, para ele transparente, dos
traços imóveis que fingiam não conhecê-lo ou por trás da banalidade do cumprimento que lhe
teriam dirigido tanto quanto a qualquer outro, lembrava, via, entre cabelos desfeitos, uma boca
arquejante e olhos semicerrados, todo um quadro silencioso como aqueles que os pintores, para
iludir a maioria dos visitantes, recobrem com um pano decente. Certamente, para mim, ao
contrário, que sentia que nada do meu ser havia penetrado numa ou noutra dessas mulheres, e ali
não seria transportado pelos caminhos desconhecidos que ela seguiria durante a vida, tais rostos
permaneciam fechados. Mas já era muito saber que se abriam, para que me parecessem de um
valor que não lhes teria atribuído se não fossem mais que belas medalhas, em vez de medalhões
sob os quais se ocultavam lembranças de amor. Quanto a Robert, mal parando num lugar quando
estava sentado, dissimulando com um sorriso de homem da sociedade a avidez de agir como
homem de batalha, eu, encarando-o bem, percebia o quanto a ossatura enérgica de seu rosto
triangular devia ser a mesma da de seus antepassados, mais apropriada para um ardente
arqueiro do que para um letrado suave. Sob a pele fina, aparecia a construção ousada, a
arquitetura feudal. A cabeça fazia pensar nessas torres de antigos torreões, cujas ameias
inutilizadas permanecem visíveis, mas que foram preparadas internamente para serem
bibliotecas.
continua na página 170...
________________
Leia também:
Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - o)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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