O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Terceira Parte
7..
Eu tinha uma pequena pistola de bolso: comprei-a quando ainda garoto, aquela
idade absurda em que nos enlevamos com histórias de duelos e assaltos de
bandidos, imaginando de que forma valorosa enfrentaremos um disparo no caso
de um desafio. Há um mês atrás a procurei e a carreguei. Na caixa onde estava
encontrei também duas balas e um chifre com pólvora suficiente para três
cargas. Trata-se de uma pistola ordinária, que não atinge o alvo a não ser de
perto e que só matará se for desfechada à queima-roupa. Mas é lógico que
arrebentará com o crânio de uma pessoa se for disparada rente à têmpora.
Resolvi morrer em Pávlovsk, ao raiar do sol, e decidi fazer isso dentro do parque
para não alvoroçar ninguém.
A minha ‘Explicação’ fornecerá à polícia informes
suficientes.
Os amadores de psicologia e quem quer que se interesse terão farto
ensejo para a obtenção de dados sensacionais. Não desejo, porém, que este
manuscrito venha a público. Peço ao príncipe que guarde uma cópia para si e
que entregue este original a Agláia Ivánovna Epantchiná. Tal é, por assim dizer, o
meu testamento, pois nisso se resume a minha última vontade. Lego o meu
esqueleto à Academia de Medicina, a bem da ciência. Não admito a quem quer
que seja o direito de me julgar, já que considero haver ultrapassado o limite de
qualquer julgamento.
Ainda não há muito tempo me dei ao capricho de imaginar- caso me desse à fantasia de matar alguém, uma dúzia de pessoas de uma só
vez, por exemplo, ou de cometer um gesto congênere, inteiramente aloucado,
algo que assumisse a característica do crime mais nefando do mundo - em que
apuros se veriam os meus juízes sabendo que eu, por causa da minha doença,
não duraria mais do que duas semanas e que lhes era impossível, devido à lei que
aboliu a punição corporal e a tortura, me dar um corretivo oportuno. Quisessem
ou não, teriam de me deixar morrer confortavelmente em um hospital, bem
aquecido e agasalhado, melhor do que em casa. Até me admira que esta idéia já
não tenha ocorrido a uma pessoa que esteja no meu estado; quando mais não
fosse, por brincadeira, visto, neste país, não faltar gente folgazã.
Conquanto não reconheça em ninguém o direito de me julgar, sei que serei
julgado postumamente, quando, mudo e inerte, não puder me defender. Portanto
não quero me ir sem deixar algumas palavras de defesa. Mas defesa
livre, e não arrancada para me justificar, oh não, pois não tenho de que pedir
perdão a ninguém e nada de que ser perdoado. Faço simplesmente por minha
espontânea vontade.
Aqui, preliminarmente, se apresenta uma pergunta fora do comum: pode alguém
se arrogar o direito de impedir que eu disponha dos meus últimos quinze dias de
vida? Com que razão? Que tem o mundo que ver com isso? Compete a quem
quer que seja exigir que eu, além de condenado, ainda por cima suporte
conscientemente a minha sentença até ao dia final? É isso porventura da alçada
de alguém? A moral exige uma tal coisa? Admito que se eu estivesse no auge da
saúde e da robustez, a moralidade poderia me censurar, baseada em linhas de
tradição, por ter disposto de uma vida que poderia ‘ser útil ao próximo’ e utilizada
em algum benefício geral. Mas, no estado em que estou, com o prazo para a
minha sentença a se esgotar!? Que obrigação moral é essa que exige não
somente a vida de uma criatura, mas até mesmo o seu último fôlego? E para
quê? Para ouvir as palavras de consolo do príncipe cujos desvelos cristãos
tenderão a me convencer que devo me resignar a morrer? (Cristãos como ele
sempre estão com tal espécie de argumentos preparados; trata-se de uma
espécie de mania.) Afinal, que quer ele com essas ridículas ‘árvores de
Pávlovsk’? Que amenizem as últimas horas da minha vida? Pois não é lógico que
quanto mais eu me esquecer da minha situação mais me prenderei a este
resquício de vida e de amor que tende por força a tapar da minha vista as
paredes de Meyer e tudo quanto nelas está tão categoricamente escrito? Que só
poderei vir a ser ainda mais infeliz? De que me adianta esta natureza, este parque
de Pávlovsk, o sol que nasce e que se põe, o céu azul, as fisionomias satisfeitas, se
todo esse festival começa desde logo me excluindo? Para que desejo eu essa
magnificência se cada minuto, cada segundo, sou obrigado, forçado a
reconhecer que mesmo a diminuta mosca, zumbindo à luz do sol, ao meu lado,
tem seu quinhão no banquete e no coro, sabe que lhe foi guardado um lugar,
contenta-se com a sua porção e é feliz? Só mesmo eu, que sou um banido, e um
covarde, me tenho recusado até agora a reconhecer uma tal situação.
Oh! Bem
sei quanto o príncipe e todos os mais gostariam, por princípio, e para a vitória da
moralidade, de entoar comigo os célebres versos clássicos de Millevoye.
Ah! puissent voir votre beauté sacréeTant d’amis sourds à mes adieuxQu’ils meurent pleins de jours, que leur mort soit pleurée.Q’un ami leurferme les yeux!
em lugar destas palavras arrogantes e amargas. Mas, acreditem, sim, acreditem, ó almas ingênuas, que estas edificantes estrofes, Este louvor acadêmico ao mundo em versos franceses, na verdade contêm tanta amargura escondida, tamanha malícia irreconciliável amaneirada em rima, que talvez o próprio poeta se tivesse confundido e tomasse tal malícia por lágrimas de ternura e morresse sem perceber seu equívoco; paz às suas cinzas.
Em verdade lhes digo que em
cada um de nós há um limite de ignomínia no conhecimento da própria
mesquinhez e incapacidade, além do qual nenhum de nós pode ir e além do qual
cada um de nós começa a sentir satisfação imensa na sua própria degradação!...
Oh! Naturalmente a humildade é uma grande força, nesse sentido, concordo...
Mas não no sentido em que a religião aceita a humildade como uma força.
Religião!
Sim, posso admitir a vida eterna, talvez até a tenha admitido sempre.
Que a consciência, abrasada pela vontade de uma Força mais alta, contemple o
mundo em redor e diga: ‘Existo!’ e que logo a seguir seja sentenciada por essa
Força à aniquilação, visto ser necessário que tal ocorra para qualquer finalidade
ou mesmo que tal finalidade não tenha lógica nenhuma - eis um fato que aceito;
mas me reservo sempiternamente o direito de perguntar: que necessidade há em
tudo isso que eu seja humilde? Pois então não posso ser placidamente devorado
sem a obrigação de homenagear quem ou aquilo que me devora? Haverá de fato
Alguém lá no alto que se ofenda pelo fato de eu não querer esperar por uns
quinze dias mais?
Não creio.
E é muitíssimo mais provável que se alguma
necessidade há é da minha vida insignificante, a vida de um átomo para
completar uma tal ou qual harmonia universal, por mera questão de mais ou de
menos, para rematar algum contraste, ou coisa que o valha, da mesma forma
que a vida de milhões de criaturas é necessária cada dia como um sacrifício
como se, sem a morte delas, o resto do mundo não pudesse prosseguir (muito
embora isso não seja uma ideia muito generosa, devo observar).
Pois que seja. Admito, pelo contrário, isto é, que sem o contínuo devorar
recíproco seria impossível acomodar o mundo. Estou mesmo pronto a admitir
que não chego a compreender nada relativamente a tal acomodação. Mas de
uma coisa estou certo: se me foi concedido em dada hora ter consciência de que
existo, pouco se me dá que haja erros na construção do mundo e sem os quais
ele não possa prosseguir.
Isto posto, quem me condenará e mediante qual
libelo? Digam o que disserem, tudo isso é impossível e injusto. Ainda assim, a
despeito de todo o meu desejo em contrário, nunca pude conceber a inexistência
de uma vida futura e da Providência. O mais certo é que de fato existem, mas
que nada compreendemos a respeito dessa vida futura e de suas leis. Já, portanto,
que é tão difícil e até mesmo impossível compreender, não me cabe
responsabilidade nenhuma por não ser capaz de compreender o inconcebível.
Torna-se patente, dir-me-ão, e o príncipe na certa está com os que tal dizem, que
devo obedecer sem raciocinar, simplesmente por piedosa crença e que
naturalmente serei recompensado no outro mundo por minha humildade.
Ora, estamos mais é rebaixando muito a Deus, atribuindo-Lhe as nossas ideias,
compelidos pela impossibilidade de compreendê-Lo.
Mas, repito mais uma vez,
se é impossível compreendê-Lo, como havemos de ter uma resposta para aquilo
que ao homem não é dado compreender? E, já que assim é, como posso eu vir a
ser julgado por não ter capacidade para compreender a vontade e as leis da
Providência? Não, o melhor é pormos a religião para um lado.
E já falei
bastante, com efeito. Quando acabar este trecho, já, sem dúvida, o sol estará
nascendo e ‘ressoando na abóbada’ e o seu incomensurável poder se propagará
por sobre a terra. Que nasça! Quero olhar firme para a fonte da energia e da
vida; não quero essa vida! Se tivesse o poder de não nascer, certamente não
aceitaria a existência em condições tão irônicas. Resta-me, porém, ainda, a
faculdade de me matar, embora só possa liquidar alguns dias, visto mesmo estes
já estarem contados. Como veem, trata-se de uma faculdade muito relativa, de
um poder limitado, a minha revolta não passando de insignificante, quase.
Eis a minha última ‘Explicação’: morro, mas não porque me faltem forças para
suportar estas três semanas que seriam as restantes. Tê-las-ia, se quisesse, e
chegaria até mesmo, querendo, a achar um conforto já de si suficiente na
avaliação do dano que me é causado. Não sou o poeta francês e não estou à cata
de tal consolação.
De todo este estado decorre uma consequente tentação: a Natureza imitou tanto
qualquer atividade minha com essa sentença de vida só por mais três semanas,
que na certa a única ação que ainda tenho tempo de iniciar e acabar por vontade
própria é o suicídio. Claro que tenho de tirar vantagem desta última possibilidade
de ação. Vezes há em que, um protesto representa uma ação pequena mas
positiva...
continua página 374...
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Segunda Parte
O Idiota: Terceira Parte (7a) - Eu tinha uma pequena pistola de bolso
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Ah! possa ver sua beleza sagrada
Tantos amigos surdos à minha despedida
Que morram cheios de dias, que sua morte seja lamentada.
Deixe um amigo fechar os olhos!
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