quarta-feira, 16 de abril de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Terceira Parte (7a) - Eu tinha uma pequena pistola de bolso

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Terceira Parte
7.


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      Eu tinha uma pequena pistola de bolso: comprei-a quando ainda garoto, aquela idade absurda em que nos enlevamos com histórias de duelos e assaltos de bandidos, imaginando de que forma valorosa enfrentaremos um disparo no caso de um desafio. Há um mês atrás a procurei e a carreguei. Na caixa onde estava encontrei também duas balas e um chifre com pólvora suficiente para três cargas. Trata-se de uma pistola ordinária, que não atinge o alvo a não ser de perto e que só matará se for desfechada à queima-roupa. Mas é lógico que arrebentará com o crânio de uma pessoa se for disparada rente à têmpora. Resolvi morrer em Pávlovsk, ao raiar do sol, e decidi fazer isso dentro do parque para não alvoroçar ninguém.
     A minha ‘Explicação’ fornecerá à polícia informes suficientes.
     Os amadores de psicologia e quem quer que se interesse terão farto ensejo para a obtenção de dados sensacionais. Não desejo, porém, que este manuscrito venha a público. Peço ao príncipe que guarde uma cópia para si e que entregue este original a Agláia Ivánovna Epantchiná. Tal é, por assim dizer, o meu testamento, pois nisso se resume a minha última vontade. Lego o meu esqueleto à Academia de Medicina, a bem da ciência. Não admito a quem quer que seja o direito de me julgar, já que considero haver ultrapassado o limite de qualquer julgamento.
     Ainda não há muito tempo me dei ao capricho de imaginar- caso me desse à fantasia de matar alguém, uma dúzia de pessoas de uma só vez, por exemplo, ou de cometer um gesto congênere, inteiramente aloucado, algo que assumisse a característica do crime mais nefando do mundo - em que apuros se veriam os meus juízes sabendo que eu, por causa da minha doença, não duraria mais do que duas semanas e que lhes era impossível, devido à lei que aboliu a punição corporal e a tortura, me dar um corretivo oportuno. Quisessem ou não, teriam de me deixar morrer confortavelmente em um hospital, bem aquecido e agasalhado, melhor do que em casa. Até me admira que esta idéia já não tenha ocorrido a uma pessoa que esteja no meu estado; quando mais não fosse, por brincadeira, visto, neste país, não faltar gente folgazã.
     Conquanto não reconheça em ninguém o direito de me julgar, sei que serei julgado postumamente, quando, mudo e inerte, não puder me defender. Portanto não quero me ir sem deixar algumas palavras de defesa. Mas defesa livre, e não arrancada para me justificar, oh não, pois não tenho de que pedir perdão a ninguém e nada de que ser perdoado. Faço simplesmente por minha espontânea vontade.
     Aqui, preliminarmente, se apresenta uma pergunta fora do comum: pode alguém se arrogar o direito de impedir que eu disponha dos meus últimos quinze dias de vida? Com que razão? Que tem o mundo que ver com isso? Compete a quem quer que seja exigir que eu, além de condenado, ainda por cima suporte conscientemente a minha sentença até ao dia final? É isso porventura da alçada de alguém? A moral exige uma tal coisa? Admito que se eu estivesse no auge da saúde e da robustez, a moralidade poderia me censurar, baseada em linhas de tradição, por ter disposto de uma vida que poderia ‘ser útil ao próximo’ e utilizada em algum benefício geral. Mas, no estado em que estou, com o prazo para a minha sentença a se esgotar!? Que obrigação moral é essa que exige não somente a vida de uma criatura, mas até mesmo o seu último fôlego? E para quê? Para ouvir as palavras de consolo do príncipe cujos desvelos cristãos tenderão a me convencer que devo me resignar a morrer? (Cristãos como ele sempre estão com tal espécie de argumentos preparados; trata-se de uma espécie de mania.) Afinal, que quer ele com essas ridículas ‘árvores de Pávlovsk’? Que amenizem as últimas horas da minha vida? Pois não é lógico que quanto mais eu me esquecer da minha situação mais me prenderei a este resquício de vida e de amor que tende por força a tapar da minha vista as paredes de Meyer e tudo quanto nelas está tão categoricamente escrito? Que só poderei vir a ser ainda mais infeliz? De que me adianta esta natureza, este parque de Pávlovsk, o sol que nasce e que se põe, o céu azul, as fisionomias satisfeitas, se todo esse festival começa desde logo me excluindo? Para que desejo eu essa magnificência se cada minuto, cada segundo, sou obrigado, forçado a reconhecer que mesmo a diminuta mosca, zumbindo à luz do sol, ao meu lado, tem seu quinhão no banquete e no coro, sabe que lhe foi guardado um lugar, contenta-se com a sua porção e é feliz? Só mesmo eu, que sou um banido, e um covarde, me tenho recusado até agora a reconhecer uma tal situação.
     Oh! Bem sei quanto o príncipe e todos os mais gostariam, por princípio, e para a vitória da moralidade, de entoar comigo os célebres versos clássicos de Millevoye.

Ah! puissent voir votre beauté sacrée 
Tant d’amis sourds à mes adieux 
Qu’ils meurent pleins de jours, que leur mort soit pleurée. 

Q’un ami leurferme les yeux!

em lugar destas palavras arrogantes e amargas. Mas, acreditem, sim, acreditem, ó almas ingênuas, que estas edificantes estrofes, Este louvor acadêmico ao mundo em versos franceses, na verdade contêm tanta amargura escondida, tamanha malícia irreconciliável amaneirada em rima, que talvez o próprio poeta se tivesse confundido e tomasse tal malícia por lágrimas de ternura e morresse sem perceber seu equívoco; paz às suas cinzas.
     Em verdade lhes digo que em cada um de nós há um limite de ignomínia no conhecimento da própria mesquinhez e incapacidade, além do qual nenhum de nós pode ir e além do qual cada um de nós começa a sentir satisfação imensa na sua própria degradação!... Oh! Naturalmente a humildade é uma grande força, nesse sentido, concordo... Mas não no sentido em que a religião aceita a humildade como uma força.
     Religião!
     Sim, posso admitir a vida eterna, talvez até a tenha admitido sempre. Que a consciência, abrasada pela vontade de uma Força mais alta, contemple o mundo em redor e diga: ‘Existo!’ e que logo a seguir seja sentenciada por essa Força à aniquilação, visto ser necessário que tal ocorra para qualquer finalidade ou mesmo que tal finalidade não tenha lógica nenhuma - eis um fato que aceito; mas me reservo sempiternamente o direito de perguntar: que necessidade há em tudo isso que eu seja humilde? Pois então não posso ser placidamente devorado sem a obrigação de homenagear quem ou aquilo que me devora? Haverá de fato Alguém lá no alto que se ofenda pelo fato de eu não querer esperar por uns quinze dias mais?
     Não creio.
     E é muitíssimo mais provável que se alguma necessidade há é da minha vida insignificante, a vida de um átomo para completar uma tal ou qual harmonia universal, por mera questão de mais ou de menos, para rematar algum contraste, ou coisa que o valha, da mesma forma que a vida de milhões de criaturas é necessária cada dia como um sacrifício como se, sem a morte delas, o resto do mundo não pudesse prosseguir (muito embora isso não seja uma ideia muito generosa, devo observar).
     Pois que seja. Admito, pelo contrário, isto é, que sem o contínuo devorar recíproco seria impossível acomodar o mundo. Estou mesmo pronto a admitir que não chego a compreender nada relativamente a tal acomodação. Mas de uma coisa estou certo: se me foi concedido em dada hora ter consciência de que existo, pouco se me dá que haja erros na construção do mundo e sem os quais ele não possa prosseguir.
     Isto posto, quem me condenará e mediante qual libelo? Digam o que disserem, tudo isso é impossível e injusto. Ainda assim, a despeito de todo o meu desejo em contrário, nunca pude conceber a inexistência de uma vida futura e da Providência. O mais certo é que de fato existem, mas que nada compreendemos a respeito dessa vida futura e de suas leis. Já, portanto, que é tão difícil e até mesmo impossível compreender, não me cabe responsabilidade nenhuma por não ser capaz de compreender o inconcebível. Torna-se patente, dir-me-ão, e o príncipe na certa está com os que tal dizem, que devo obedecer sem raciocinar, simplesmente por piedosa crença e que naturalmente serei recompensado no outro mundo por minha humildade.
     Ora, estamos mais é rebaixando muito a Deus, atribuindo-Lhe as nossas ideias, compelidos pela impossibilidade de compreendê-Lo.
     Mas, repito mais uma vez, se é impossível compreendê-Lo, como havemos de ter uma resposta para aquilo que ao homem não é dado compreender? E, já que assim é, como posso eu vir a ser julgado por não ter capacidade para compreender a vontade e as leis da Providência? Não, o melhor é pormos a religião para um lado.
     E já falei bastante, com efeito. Quando acabar este trecho, já, sem dúvida, o sol estará nascendo e ‘ressoando na abóbada’ e o seu incomensurável poder se propagará por sobre a terra. Que nasça! Quero olhar firme para a fonte da energia e da vida; não quero essa vida! Se tivesse o poder de não nascer, certamente não aceitaria a existência em condições tão irônicas. Resta-me, porém, ainda, a faculdade de me matar, embora só possa liquidar alguns dias, visto mesmo estes já estarem contados. Como veem, trata-se de uma faculdade muito relativa, de um poder limitado, a minha revolta não passando de insignificante, quase.
     Eis a minha última ‘Explicação’: morro, mas não porque me faltem forças para suportar estas três semanas que seriam as restantes. Tê-las-ia, se quisesse, e chegaria até mesmo, querendo, a achar um conforto já de si suficiente na avaliação do dano que me é causado. Não sou o poeta francês e não estou à cata de tal consolação.
     De todo este estado decorre uma consequente tentação: a Natureza imitou tanto qualquer atividade minha com essa sentença de vida só por mais três semanas, que na certa a única ação que ainda tenho tempo de iniciar e acabar por vontade própria é o suicídio. Claro que tenho de tirar vantagem desta última possibilidade de ação. Vezes há em que, um protesto representa uma ação pequena mas positiva...

O Idiota: Terceira Parte (7a) - Eu tinha uma pequena pistola de bolso
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Ah! possa ver sua beleza sagrada
Tantos amigos surdos à minha despedida
Que morram cheios de dias, que sua morte seja lamentada.

Deixe um amigo fechar os olhos!

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