Segunda Parte - Cosette
Livro Quinto — Para Caçada Tenebrosa Matilha Silenciosa
VII - Continuação do enigma
A brisa da noite começava a refrescar, o que indicava ser uma ou duas horas da
manhã. A pobre Cosette não dizia coisa alguma. Como se tinha sentado ao lado de Jean
Valjean e lhe havia encostado a cabeça ao ombro, julgou ele que adormecera.
Curvou-se e encarou-a.
Cosette tinha os olhos muito abertos e um ar pensativo que muito afligiu Jean
Valjean.
A criança não cessara de tremer.
— Tens sono? — perguntou Jean Valjean.
— Tenho muito frio — respondeu ela. Um momento depois acrescentou: — Ela ainda
lá está?
— Quem?
— A senhora Thenardier.
Jean Valjean esquecera-se já do meio de que se servira para obrigar Cosette a estar
calada.
— Ah! — disse ele. — Já se foi embora. Não tenhas medo.
A criança suspirou como se lhe tivessem tirado um grande peso de sobre o peito.
Como a terra estava húmida, o alpendre era aberto por todos os lados e a brisa
refrescava cada vez mais, Jean Valjean despiu a sobrecasaca e cobriu Cosette com ela.
— Tens menos frio assim? — perguntou ele.
— Agora tenho menos, meu pai!
— Então deixa-te estar quietinha que eu já venho.
Em seguida saiu das ruínas e começou a caminhar ao longo do edifício, encostado à
parede, em procura de algum abrigo melhor. Encontrou diversas portas, mas todas
fechadas; e as janelas do rés-do-chão eram guarnecidas de grades.
Quando passou o ângulo interior do edifício, viu que se achava ao pé das tais janelas
de grades, e lobrigou alguma claridade. Pôs-se nos bicos dos pés e espreitou por uma das
janelas. Davam todas para uma sala assaz vasta, lajeada, cortada de arcadas e de pilares,
e onde se não distinguia senão pequeníssima claridade e grandes sombras. A claridade
provinha de uma lamparina acesa a um canto.
A sala estava deserta e não havia nela a menor coisa que se movesse.
Contudo, à força de aplicar a vista, pareceu a Jean Valjean que via no chão, sobre a
pedra, um objeto que parecia coberto com um lençol e que se assemelhava a um vulto
humano estendido de bruços, com o rosto sobre a pedra, os braços cruzados, e com a
imobilidade da morte.
Ter-se-ia dito, ao ver uma tal espécie de serpente arrastando-se pelo pavimento, que
a sinistra figura tinha uma corda ao pescoço. Toda a sala estava cheia da espécie de
nevoeiro próprio dos lugares pouco iluminados e que lhes aumenta ainda o terror, Jean
Valjean disse depois muitas vezes, que conquanto muitos espetáculos fúnebres lhe
vessem atravessado a vida, nunca presenciara coisa alguma mais medonha e terrível do
que aquela figura enigmática, consumando não sabia que desconhecido mistério,
naquele lugar sombrio e assim entrevisto no meio da noite. Era medonho supor que
aquilo estivesse talvez morto; porém mais medonho ainda pensar que estaria vivo.
Jean Valjean teve a coragem de encostar o rosto à vidraça e de se pôr em observação
para ver se o estranho objeto se movia. De repente, sentiu-se dominado por
inexplicável espanto e fugiu, deitando a correr para o alpendre sem se atrever a olhar
para trás. Parecia-lhe que se voltasse a cabeça veria a medonha figura caminhando atrás
dele a passos largos e agitando os braços.
Chegou ao alpendre como que alucinado. Os joelhos vergavam-se-lhe e tinha o corpo
coberto de suor.
Onde estava? Quem poderia ter imaginado coisa semelhante naquela espécie de
sepulcro no centro de Paris? Que extraordinária casa era aquela? Edifício cheio de
mistérios noturnos, chamando as almas na sombra com vozes de anjos, e quando elas
se apresentavam oferecendo-lhes inopinadamente tão espantosa visão; prometendo
abrir a porta radiante do céu e abrindo a horrível porta do túmulo! E era, com efeito, um
edifício, uma casa, cuja porta tinha o seu número! Não era sonho! Jean Valjean
necessitava tocar as pedras para crer na realidade de tudo aquilo.
O frio, a ansiedade, a inquietação, as comoções porque passara durante aquela noite,
tinham-lhe causado verdadeira febre; e todas estas ideias se lhe embatiam no cérebro.
Aproximando-se de Cosette viu que adormecera.
continua na página 355...
______________
Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
_________________________
Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Quinto - VII - Continuação do enigma
_______________________
Victor Hugo
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira
Nenhum comentário:
Postar um comentário