sexta-feira, 25 de abril de 2025

A Montanha Mágica - “Deus meu, eu vejo!” (b)

Thomas Mann

A Montanha Mágica 


Capítulo V

“Deus meu, eu vejo!” 

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     Mme. Chauchat sentou-se junto à porta do laboratório, numa poltronazinha redonda, de braços um tanto estropiados, como que rudimentares. Recostando-se, cruzou ligeiramente as pernas e olhou para o vazio, enquanto seus olhos de quirguiz, nervosamente desviados pela sensação de ser observada, pareciam quase vesgos. Usava suéter branco e saia azul e tinha sobre os joelhos um livro da biblioteca do estabelecimento. Batia levemente no chão com os pés.
     Já depois de um minuto e meio mudou de atitude. Olhou em redor de si. Levantou-se com a expressão de quem está indeciso e não sabe aonde dirigir-se. E começou a falar. Perguntou alguma coisa. Dirigiu a palavra a Joachim, muito embora este parecesse absorto na leitura da revista, ao passo que Hans Castorp ali se achava sem nada fazer. Formava palavras na boca, emprestando-lhes a voz que saía da garganta branca. Era aquela voz pouco grave, um tanto áspera, agradavelmente velada, que Hans Castorp conhecia – conhecia desde muito tempo e já ouvira uma vez, a seu lado, no dia em que lhe dissera: “Com muito prazer. Mas você deve devolvê-lo sem falta depois da aula”. Mas aquelas frases haviam sido proferidas com mais fluência e com maior decisão. Desta vez, porém, chegavam as palavras um pouco arrastadas e trôpegas. A que falava não tinha um direito natural de usá-las; tomava-as apenas de empréstimo, como Hans Castorp já diversas vezes a ouvira fazer, experimentando um certo sentimento de superioridade, envolvido em humilíssimo deleite. Com uma das mãos no bolso do casaquinho de lã e a outra na nuca, perguntou Mme. Chauchat:

– Por favor, qual é a hora que marcaram para o senhor?

     E Joachim, após ter relanceado os olhos para o primo, respondeu, juntando os calcanhares, mas permanecendo sentado:

– Três e meia. 

     Ela voltou a falar: 

– A minha hora é três e quarenta e cinco. Que é que há? São quase quatro horas. Alguém entrou agora, não é? 
– Sim, duas pessoas – explicou Joachim. – As que estavam à nossa frente. O serviço está atrasado. Parece que o atraso é de meia hora. 
– Isto é desagradável – disse ela, apalpando o penteado num gesto nervoso. 
– Bastante – tornou Joachim. – Nós também já esperamos há quase meia hora. 

     Assim conversaram, e Hans Castorp escutava-os como que num sonho. Que Joachim falasse com Mme. Chauchat era quase como se ele mesmo o fizesse -se bem que, por outro lado, fosse muito diferente. Aquele “bastante” chocara Hans Castorp; a resposta parecia-lhe petulante ou pelo menos estranhamente fria, em vista das circunstâncias. Mas, afinal, Joachim podia falar assim – podia, em geral, falar com ela, e talvez até se gabasse desse atrevido “bastante”, com o mesmo ar de importância que assumira Hans Castorp perante Joachim e Settembrini, quando, ao lhe perguntarem quanto tempo pretendia permanecer em Davos, respondera: “Três semanas”. Dirigira ela a palavra a Joachim, ainda que este escondesse o rosto atrás do jornal. Sem dúvida fizera-o por ser o primo o pensionista mais antigo, a quem conhecia de vista havia mais tempo. Mas também por outra razão: entre ela e Joachim tinham cabimento relações civilizadas e uma troca de palavras articuladas; nada de selvagem, profundo, terrível e misterioso existia entre eles. Se uma certa pessoa de olhos castanhos, com um anel de rubi e com um perfume de flor de laranjeira houvesse esperado ali, perto deles, teria cabido a Hans Castorp tomar as rédeas da conversa e dizer “bastante”, independente e puro como se sentia em relação a ela. “Com efeito, bastante desagradável, senhorita”, teria dito e talvez, com um gesto desenvolto, tivesse tirado o lenço do bolso do paletó a fim de se assoar. “Tenha paciência, por favor. Estamos todos no mesmo barco.” E Joachim teria admirado sua leviandade – provavelmente sem experimentar o desejo sério de substituí-lo. Não, dada a situação, Hans Castorp tampouco tinha ciúmes de Joachim, não obstante ser o primo quem teve oportunidade de falar com Mme. Chauchat. Estava de acordo com o fato de ela se ter dirigido a Joachim. Assim fazendo, ela levara em conta as circunstâncias e demonstrara ter consciência delas... E o coração do jovem martelava.
    Após o tratamento displicente que Mme. Chauchat recebera da parte de Joachim, e no qual Hans Castorp até notara certa hostilidade contra a companheira de enfermidade, hostilidade que o fez sorrir apesar de toda a sua emoção, “Clávdia” tentou dar um passeio pela peça. Mas como faltasse espaço para isso, aproximou-se também da mesa, tirou dela uma revista ilustrada e voltou à poltrona dos braços rudimentares. Hans Castorp permanecia sentado, a contemplá-la, imitando o jeito do avô de apoiar o queixo na gravata, a ponto de se parecer ridiculamente com o velho. Mme. Chauchat tornara a cruzar as pernas, de maneira que a esbelteza das linhas, do joelho para baixo, tornava-se nítida sob a saia de tecido azul. Era de estatura apenas mediana, uma estatura agradável e harmoniosa aos olhos de Hans Castorp, mas tinha as pernas relativamente compridas e as cadeiras pouco largas. Já não se recostava na poltrona, mas, fincando na coxa mais elevada os antebraços cruzados, inclinava-se para a frente, com as costas convexas e os ombros tão avançados, que se salientavam as vértebras da nuca e quase se delineava, sob o suéter muito justo, a espinha dorsal, ficando comprimidos, de ambos os lados, os seios, que não eram opulentos e altos como os de Marusja, mas pequenos como os de uma menina. De súbito Hans Castorp lembrou-se de que também ela se achava à espera da radioscopia. O conselheiro áulico pintava-a, reproduzia sobre uma tela, por meio de óleo e corantes, sua aparência exterior. Dentro em breve, porém, dirigiria na penumbra sobre ela os raios que lhe revelariam o interior do corpo. E ao pensar nisso Hans Castorp voltou a cabeça com um ensombramento pudico da sua fisionomia e com aquele ar de discrição e reserva que lhe parecia adequado a essa visão.
     Não permaneceram os três reunidos por muito tempo na salinha de espera. Lá dentro, evidentemente, não haviam feito grandes cerimônias para liquidar os casos de Sacha e de sua mãe. Apressavam-se para recuperar o tempo perdido. Novamente a porta foi aberta pelo técnico de jaleco branco. Levantando-se, Joachim atirou a revista sobre a mesa, e Hans Castorp seguiu-o em direção à porta, não sem uma hesitação íntima. Despertaram nele escrúpulos cavalheirescos, bem como a tentação de dirigir, apesar de tudo, uma palavra convencional a Mme. Chauchat e de lhe oferecer a precedência, talvez até em francês, se isso fosse realizável. Apressadamente procurou os vocábulos e ponderou a sintaxe. Mas ignorava se esse tipo de galanteria estava em uso ali. Era possível que a ordem estabelecida ficasse acima de todo cavalheirismo. Joachim devia sabê-lo, e como não fizesse menção de ceder o seu lugar à senhora presente, apesar dos olhares comovidos e insistentes de Hans Castorp, este seguiu os passos do primo e atravessou a porta do laboratório, depois de ter passado por Mme. Chauchat, que continuava na sua posição inclinada e mal levantara os olhos. Estava ele por demais atordoado pelo que deixava atrás de si e pelas aventuras dos dez últimos minutos, para que a transferência do seu corpo ao gabinete de radioscopia pudesse produzir também uma modificação imediata do seu estado de alma. Não via nada ou apenas tinha percepções muito vagas nessa meia-luz artificial. Ouvia ainda a voz agradavelmente velada de Mme. Chauchat, quando dissera: “Que é que há?... Alguém entrou agora, não é?... Isto é desagradável...” E o som dessa voz lhe descia docemente pelas costas, fazendo-o estremecer. Via o joelho delineado sob o pano da saia; via as vértebras do pescoço salientarem-se na nuca curvada, por baixo dos curtos cabelos arruivados que nesse lugar pendiam frouxos, sem terem sido presos na trança, e um novo tremor passou-lhe pelo corpo. Deparou com o Dr. Behrens, de costas para os recém-entrados, de pé diante de um armário ou de uma estante saliente, ocupado em examinar uma chapa escura que mantinha, com o braço estendido, nas proximidades da fosca lâmpada do teto. Passando ao lado dele, chegaram ao fundo da sala, precedidos pelo técnico que fazia os preparativos para o exame. Pairava ali um cheiro esquisito. Uma espécie de ozônio deteriorado enchia a atmosfera. Entre as janelas vendadas de preto, a estante dividia o gabinete em duas partes desiguais. Distinguiam-se aparelhos de física, lentes côncavas, quadros de distribuição, instrumentos para medir, mas também uma caixa parecida com uma máquina fotográfica sobre uma armação de rodas, e dispositivos de vidro, embutidos em fileiras na parede. Não se sabia onde se estava, se no ateliê de um fotógrafo, se numa câmara escura, se na oficina de um inventor ou na cozinha de um bruxo tecnológico.
     Sem perder tempo, Joachim começou a desnudar-se até a cintura. O técnico, um jovem suíço atarracado, de faces rosadas, pediu a Hans Castorp que fizesse o mesmo. Acrescentou que os exames eram feitos rapidamente e que logo a seguir seria a vez dele... Enquanto Hans Castorp despia o colete, Behrens saiu da parte menor do recinto e foi ter com eles, na outra, mais espaçosa.

– Olá! – disse. – Vejam só os nossos Dióscuros! Castor e Pólux!... Rogo-lhes a fineza de suprimirem quaisquer gritos lancinantes! Esperem um pouco, num instante vamos passar luz através dos dois. Parece, Castorp, que o senhor tem medo de nos revelar o seu interior. Fique tranquilo, que tudo se passará segundo as regras da estética. Olhe aí, já viu a minha galeria particular? – E tomando Hans Castorp pelo braço, conduziu-o àquelas fileiras de vidros escuros, e dando volta a um comutador, acendeu a luz atrás delas. Eis que os vidros, iluminando-se, mostraram as suas imagens. Hans Castorp viu membros – mãos, pés, rótulas, pernas, coxas, braços e partes de bacias. Mas a forma viva, arredondada, daqueles fragmentos do corpo humano era fantasmagórica e de contornos vagos; circundava, como uma névoa ou uma aura pálida, o núcleo que ressaltava clara, minuciosa e decididamente: o esqueleto. 
– Muito interessante – disse Hans Castorp. 
– É de fato interessante – retrucou o conselheiro áulico. – Uma lição prática sumamente útil para a rapaziada. Anatomia de raios X, compreende? Um triunfo dos tempos modernos. Isto aqui é um braço de mulher, como o senhor pode perceber pela sua delicadeza. É com isso quê nos cingem nas horas de amor, sabe? – E pôs-se a rir, o que fazia levantar-se de um lado o lábio superior com o bigodinho aparado. Em seguida apagaram-se as chapas. Hans Castorp dirigiu-se para onde estavam preparando a radiografia de Joachim. 

     Isso se dava à frente daquela saliência a cujo outro lado se achara momentos antes o Dr. Behrens. Joachim sentara-se numa espécie de tamborete de carpinteiro, diante de uma tábua contra a qual apertava o peito, e que ao mesmo tempo abraçava. O técnico corrigiu-lhe a posição com movimentos moldadores, avançando ainda mais as espáduas de Joachim e fazendo-lhe massagem nas costas. Depois, encaminhou-se para trás da máquina fotográfica, para focalizar, encurvado e de pernas separadas, como um fotógrafo qualquer, a vista a tirar; expressou então a sua satisfação e, afastando-se, recomendou a Joachim que inalasse o ar profundamente e prendesse a respiração até que a chapa fosse batida. Dilataram-se e a seguir imobilizaram-se as costas arredondadas de Joachim. Nesse momento, o técnico fez a manobra adequada no quadro de distribuição. Durante dois segundos operaram energias terríveis cujo esforço era necessário para atravessar a matéria, correntes de milhares de volts, de cem mil, como Hans Castorp julgava lembrar-se. Apenas dominadas, em prol do seu objetivo, as forças procuraram escapar por um desvio. Descargas estouravam como disparos. Chispas azuis dançavam num aparelho de medição. Relâmpagos compridos passavam, crepitando, pela parede. Em qualquer parte, uma luz vermelha, semelhante a um olho, mirava o recinto, impassível e ameaçadora. Um frasco, nas costas de Joachim, enchia-se de qualquer substância verde. Depois, tudo sossegou. Desapareceram os fenômenos luminosos, e com um suspiro Joachim soltou o ar retido nos seus pulmões. Estava tudo terminado.

– O próximo réu! – chamou Behrens, dando uma cotovelada em Hans Castorp. – Não faça cera! O senhor vai ganhar uma cópia gratuita, Castorp. Assim poderá projetar os segredos do seu peito na parede, para divertir seus filhos e netos.

     Joachim retirara-se, e o técnico já estava mudando a chapa. O conselheiro instruiu pessoalmente o novato acerca do modo de se sentar e se agarrar. – Abraçar! – disse. – Dê um abraço à tábua! Quanto a mim pode imaginar qualquer coisa diferente. E aperte o peito firmemente contra ela, como se experimentasse sensações voluptuosas! Muito bem! Respire! Não se mexa! – ordenou. – E agora sorria! – Hans Castorp esperava de olhos piscos, com os pulmões repletos de ar. Atrás dele irrompeu a tempestade, estourando, pipocando, crepitando e amainando. A objetiva contemplara o seu interior.
     Ergueu-se, perturbado e aturdido pelo que acabava de lhe acontecer, ainda que a penetração nem de leve se lhe tivesse tornado sensível. – Ótimo! – elogiou o conselheiro áulico. – Agora vamos ver com os nossos próprios olhos. – E Joachim, como homem experimentado, já se encaminhara mais ao fundo da sala, para se colocar nas proximidades da porta de saída, junto a uma armação. Tinha às costas o volumoso aparelho, em cuja parte traseira se notava uma ampola de vidro, semicheia de água, com um tubo de evaporação. Diante dela, à altura do peito, achava se um anteparo emoldurado, suspenso em roldanas. À sua esquerda, no meio de um quadro de distribuição e de outro instrumental, elevava-se um globo vermelho com uma lâmpada, que foi acesa pelo Dr. Behrens, a cavaleiro sobre o tamborete à frente do anteparo. Apagou-se a luz do teto, e somente a vermelha iluminava a cena. Com um rápido gesto, o mestre fez desaparecer também esta, e profundas trevas envolveram as pessoas presentes.

– Antes de tudo os olhos têm de se adaptar – ouviu-se a voz do conselheiro áulico através da escuridão. – É preciso que nossas pupilas se alarguem imensamente, como as dos gatos, para que possamos enxergar o que queremos descobrir. Os senhores compreendem que não poderíamos ver bem nitidamente com os nossos olhos ordinários, habituados à luz. Antes de começarmos, devemos esquecer o dia claro com suas imagens alegres. 
– Lógico – disse Hans Castorp, que se achava de pé atrás do médico. Fechou os olhos, pois tanto fazia tê-los abertos ou cerrados, tão negra era a noite. – É necessário que os olhos tomem um banho de escuridão, para que possam enxergar uma coisa dessas. Entende-se. Acho até conveniente e indicado que a gente aproveite esse tempo para se concentrar um pouco, por assim dizer, numa prece silenciosa. Estou aqui de olhos fechados e sinto uma sonolência agradável. Mas que cheiro é esse?
– Oxigênio – explicou o conselheiro; – é o oxigênio que o senhor sente no ar. O produto atmosférico da nossa tempestade particular, compreende?... E agora abra os olhos! – acrescentou. – Já vai começar a evocação. – Hans Castorp obedeceu depressa.

     Ouviu-se a mudança de uma alavanca de lingueta. Um motor sobressaltou-se, pôs-se a cantar furiosos agudos, mas foi logo regulado por uma segunda manobra. O chão vibrava ritmicamente. A luzinha vermelha, oblonga e vertical, encarava-os, como uma ameaça muda. Em qualquer parte crepitou um relâmpago. E lentamente, com um brilho leitoso, qual uma janela que se iluminasse, ressaltou das trevas o pálido retângulo do anteparo luminoso, diante do qual o Dr. Behrens cavalgava o seu tamborete de sapateiro, com as coxas escancaradas, e com os punhos fincados nelas, apertando o nariz achatado contra a vidraça que lhe permitia a visão interior de um organismo humano.

– Está vendo, rapaz? – perguntou... Hans Castorp inclinou-se por cima do ombro dele, mas tornou a levantar a cabeça para olhar na direção onde supunha estarem, no meio da escuridão, os olhos de Joachim, que provavelmente tinham aquela mesma expressão meiga e triste do último exame. E perguntou ao primo: 
– Você permite? 
– Pois não – respondeu Joachim generosamente de dentro das trevas. O chão continuava vibrando, e as energias em ação estalavam e rumorejavam, enquanto Hans Castorp, curvado, espiava pela lívida janela, espiava através da ossatura vazia de Joachim Ziemssen. O esterno confundia-se com a espinha dorsal numa espécie de coluna escura, cartilaginosa. A fileira anterior das costelas estava entremeada pela das costas, que parecia mais pálida. As clavículas, em elegante curva, bifurcavam-se mais acima, para ambos os lados, e na suave auréola dos contornos da carne exibia-se, seco e nítido, o esqueleto dos ombros, a juntura dos úmeros de Joachim. Era muito clara a cavidade do peito, mas distinguia-se um sistema de veias, manchas escuras, uma negrejante aspereza. 
– Imagem clara – disse o conselheiro áulico. – É a magreza decente da mocidade militar. Já tive aqui panças impenetráveis. Não havia meio de distinguir a menor coisa que fosse. Seria preciso descobrir antes os raios capazes de atravessar tal camada de banha... Este aqui, sim, é um trabalho limpo. Pode ver o diafragma? – perguntou, apontando com o dedo para o arco escuro que subia e descia na parte inferior da janela... – Está vendo, à esquerda, essas bossas, essas protuberâncias? É a pleurisia que ele teve faz quinze anos... Respire profundamente! – ordenou. – Mais! Eu disse: “Profundamente!” – E o diafragma de Joachim erguia-se, trêmulo, o mais alto que podia. Notava-se um clareamento nas regiões superiores do pulmão, mas o conselheiro não estava satisfeito. – Insuficiente – observou. – O senhor vê os hilos? Veja as aderências! Está vendo as cavernas? É daí que vêm os tóxicos que o: embriagam. – Mas a atenção de Hans Castorp achava-se toda absorvida por alguma coisa parecida com um saco, qualquer massa estranha, como que animalesca, que aparecia, escura, atrás da coluna central, na sua maior parte à direita do espectador – massa que regularmente se dilatava e se contraía, um pouco à maneira de uma medusa a nadar.
– O senhor vê o coração? – perguntou o conselheiro, desprendendo novamente a manzorra da coxa e designando com o indicador aquele saco palpitante... Grande Deus! Era o coração o que Hans Castorp contemplava, o orgulhoso coração de Joachim. 
– Estou vendo o seu coração – disse com voz estrangulada. 
– Pois não – tornou Joachim, e sem dúvida sorria, resignado, ali na escuridão. Mas o médico mandou-os calar-se e deixar de trocar sentimentalismos. Estudou as manchas e as linhas, aspereza preta na cavidade interior do peito, e enquanto isso, Hans Castorp tampouco se cansava de olhar a forma sepulcral de Joachim, o seu esqueleto, essa armação descarnada, esse escanifrado memento. Sentia-se cheio de devoção e de terror. – Sim, sim, eu vejo – disse diversas vezes. – Deus meu! Eu vejo! – Ouvira falar de uma mulher, uma parenta, havia muito falecida, da família Tienappel, distinguida pelo dom, ou talvez pela desgraça, de uma visão sinistra, que suportara com toda a humildade: as pessoas que morreriam em breve apareciam-lhe sob a forma de esqueletos. Deste modo é que Hans Castorp via o bom Joachim, embora com a ajuda e por meio da aparelhagem da ciência física e óptica, de maneira que isso não queria dizer grande coisa e nada havia de sobrenatural, tratando-se ainda de um espetáculo que o primo lhe permitira expressamente. Sem embargo, sentiu-se de repente tomado de uma profunda compreensão do destino melancólico daquela tia visionária. Violentamente emocionado pelo que via, ou, no fundo, pelo fato de o ver, tinha a alma acossada por secretas dúvidas, a ponto de se perguntar se tudo aquilo se passava de forma lícita, se sua visão, naquelas trevas vibrantes e chispantes, era de fato inocente; e no seu peito mesclava-se o angustiante prazer da indiscrição com os sentimentos de comoção e de piedade. 

     Mas, poucos minutos após, ele mesmo se achava no pelourinho, em plena tempestade, enquanto Joachim vestia o seu corpo que tornara a ser opaco. De novo olhava o conselheiro áulico através da vidraça leitosa; dessa vez esquadrinhava o interior de Hans Castorp, e das suas observações feitas à meia voz, de certos resmungos abruptos e de algumas expressões vagas, parecia deduzir-se que o resultado correspondia às suas expectativas. Terminada a radioscopia, teve ainda a amabilidade de permitir que o paciente, a seus rogos insistentes, contemplasse a própria mão através do anteparo luminoso. E Hans Castorp viu o que devia ter esperado, mas que, em realidade, não cabe ver ao homem, e que jamais teria crido poder ver: lançou um olhar para dentro do seu próprio túmulo. Viu, antecipado pela força dos raios, o futuro trabalho da decomposição; viu a carne em que vivia, solubilizada, aniquilada, reduzida a uma névoa inconsistente, no meio da qual se destacava o esqueleto minuciosamente plasmado da sua mão direita, e em torno da primeira falange do dedo anular pairava, preto e frouxo, o anel-sinete que o avô lhe legara, um objeto duro desta terra, com o qual os homens adornam o seu corpo destinado a desfazer-se por baixo dele, para que fique novamente livre e se possa enfiar em outra mão que o use durante algum tempo. Com os olhos daquela parenta da família Tienappel, contemplou uma parte familiar do seu corpo, estudou-a com olhos videntes e penetrantes, e pela primeira vez na vida compreendeu que estava destinado a morrer. Enquanto isso, sua fisionomia tomou aquela expressão que costumava assumir quando ouvia música – expressão bastante tola, sonolenta e piedosa, com a boca entreaberta e a cabeça inclinada para um ombro. O conselheiro disse:

– Fantasmagórico, hein? Sim, senhor, inegavelmente há nisso qualquer coisa de fantasmagoria.

     E mandou sustar a energia. O chão serenou; esvaíram-se os fenômenos luminosos; a janela mágica voltou a envolver-se em trevas. A luz do teto foi acesa. E enquanto também Hans Castorp se vestia, Behrens dava aos jovens alguns esclarecimentos a respeito das suas observações, levando em conta os reduzidos conhecimentos de leigos dos dois. No que se referia a Hans Castorp, o resultado óptico confirmou o acústico com toda a precisão que a honra da ciência podia exigir. Haviam sido visíveis os lugares antigos tanto como outros, recentes, e partindo dos brônquios estendiam-se cordões muito adentro do órgão – cordões com nozinhos. Hans Castorp poderia verificá-los com seus próprios olhos no pequeno diapositivo que lhe seria entregue em breve. – Por conseguinte, calma, paciência, disciplina de homem! Comer, tirar a temperatura, repousar, esperar, não ter pressa. – Com isso voltou-lhes as costas. Foram-se os primos. Hans Castorp, ao sair atrás de Joachim, olhou por cima do ombro. Introduzida pelo técnico, Mme. Chauchat entrou no laboratório.

continua pág 143...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
“Deus meu, eu vejo!” (b)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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