A Montanha Mágica
Capítulo V
.
Mme. Chauchat sentou-se junto à porta do laboratório, numa poltronazinha redonda, de
braços um tanto estropiados, como que rudimentares. Recostando-se, cruzou ligeiramente as
pernas e olhou para o vazio, enquanto seus olhos de quirguiz, nervosamente desviados pela
sensação de ser observada, pareciam quase vesgos. Usava suéter branco e saia azul e tinha sobre
os joelhos um livro da biblioteca do estabelecimento. Batia levemente no chão com os pés.
Já depois de um minuto e meio mudou de atitude. Olhou em redor de si. Levantou-se
com a expressão de quem está indeciso e não sabe aonde dirigir-se. E começou a falar. Perguntou
alguma coisa. Dirigiu a palavra a Joachim, muito embora este parecesse absorto na leitura da
revista, ao passo que Hans Castorp ali se achava sem nada fazer. Formava palavras na boca,
emprestando-lhes a voz que saía da garganta branca. Era aquela voz pouco grave, um tanto
áspera, agradavelmente velada, que Hans Castorp conhecia – conhecia desde muito tempo e já
ouvira uma vez, a seu lado, no dia em que lhe dissera: “Com muito prazer. Mas você deve
devolvê-lo sem falta depois da aula”. Mas aquelas frases haviam sido proferidas com mais
fluência e com maior decisão. Desta vez, porém, chegavam as palavras um pouco arrastadas e
trôpegas. A que falava não tinha um direito natural de usá-las; tomava-as apenas de empréstimo,
como Hans Castorp já diversas vezes a ouvira fazer, experimentando um certo sentimento de
superioridade, envolvido em humilíssimo deleite. Com uma das mãos no bolso do casaquinho de
lã e a outra na nuca, perguntou Mme. Chauchat:
– Por favor, qual é a hora que marcaram para o senhor?
E Joachim, após ter relanceado os olhos para o primo, respondeu, juntando os
calcanhares, mas permanecendo sentado:
– Três e meia.
Ela voltou a falar:
– A minha hora é três e quarenta e cinco. Que é que há? São quase quatro horas. Alguém
entrou agora, não é?
– Sim, duas pessoas – explicou Joachim. – As que estavam à nossa frente. O serviço está
atrasado. Parece que o atraso é de meia hora.
– Isto é desagradável – disse ela, apalpando o penteado num gesto nervoso.
– Bastante – tornou Joachim. – Nós também já esperamos há quase meia hora.
Assim conversaram, e Hans Castorp escutava-os como que num sonho. Que Joachim
falasse com Mme. Chauchat era quase como se ele mesmo o fizesse -se bem que, por outro lado,
fosse muito diferente. Aquele “bastante” chocara Hans Castorp; a resposta parecia-lhe petulante
ou pelo menos estranhamente fria, em vista das circunstâncias. Mas, afinal, Joachim podia falar
assim – podia, em geral, falar com ela, e talvez até se gabasse desse atrevido “bastante”, com o
mesmo ar de importância que assumira Hans Castorp perante Joachim e Settembrini, quando, ao
lhe perguntarem quanto tempo pretendia permanecer em Davos, respondera: “Três semanas”.
Dirigira ela a palavra a Joachim, ainda que este escondesse o rosto atrás do jornal. Sem dúvida
fizera-o por ser o primo o pensionista mais antigo, a quem conhecia de vista havia mais tempo.
Mas também por outra razão: entre ela e Joachim tinham cabimento relações civilizadas e uma
troca de palavras articuladas; nada de selvagem, profundo, terrível e misterioso existia entre eles.
Se uma certa pessoa de olhos castanhos, com um anel de rubi e com um perfume de flor de
laranjeira houvesse esperado ali, perto deles, teria cabido a Hans Castorp tomar as rédeas da
conversa e dizer “bastante”, independente e puro como se sentia em relação a ela. “Com efeito,
bastante desagradável, senhorita”, teria dito e talvez, com um gesto desenvolto, tivesse tirado o
lenço do bolso do paletó a fim de se assoar. “Tenha paciência, por favor. Estamos todos no
mesmo barco.” E Joachim teria admirado sua leviandade – provavelmente sem experimentar o
desejo sério de substituí-lo. Não, dada a situação, Hans Castorp tampouco tinha ciúmes de
Joachim, não obstante ser o primo quem teve oportunidade de falar com Mme. Chauchat. Estava
de acordo com o fato de ela se ter dirigido a Joachim. Assim fazendo, ela levara em conta as
circunstâncias e demonstrara ter consciência delas... E o coração do jovem martelava.
Após o tratamento displicente que Mme. Chauchat recebera da parte de Joachim, e no
qual Hans Castorp até notara certa hostilidade contra a companheira de enfermidade, hostilidade
que o fez sorrir apesar de toda a sua emoção, “Clávdia” tentou dar um passeio pela peça. Mas
como faltasse espaço para isso, aproximou-se também da mesa, tirou dela uma revista ilustrada e
voltou à poltrona dos braços rudimentares. Hans Castorp permanecia sentado, a contemplá-la,
imitando o jeito do avô de apoiar o queixo na gravata, a ponto de se parecer ridiculamente com o
velho. Mme. Chauchat tornara a cruzar as pernas, de maneira que a esbelteza das linhas, do joelho
para baixo, tornava-se nítida sob a saia de tecido azul. Era de estatura apenas mediana, uma
estatura agradável e harmoniosa aos olhos de Hans Castorp, mas tinha as pernas relativamente
compridas e as cadeiras pouco largas. Já não se recostava na poltrona, mas, fincando na coxa mais
elevada os antebraços cruzados, inclinava-se para a frente, com as costas convexas e os ombros
tão avançados, que se salientavam as vértebras da nuca e quase se delineava, sob o suéter muito
justo, a espinha dorsal, ficando comprimidos, de ambos os lados, os seios, que não eram
opulentos e altos como os de Marusja, mas pequenos como os de uma menina. De súbito Hans
Castorp lembrou-se de que também ela se achava à espera da radioscopia. O conselheiro áulico
pintava-a, reproduzia sobre uma tela, por meio de óleo e corantes, sua aparência exterior. Dentro
em breve, porém, dirigiria na penumbra sobre ela os raios que lhe revelariam o interior do corpo.
E ao pensar nisso Hans Castorp voltou a cabeça com um ensombramento pudico da sua
fisionomia e com aquele ar de discrição e reserva que lhe parecia adequado a essa visão.
Não permaneceram os três reunidos por muito tempo na salinha de espera. Lá dentro,
evidentemente, não haviam feito grandes cerimônias para liquidar os casos de Sacha e de sua
mãe. Apressavam-se para recuperar o tempo perdido. Novamente a porta foi aberta pelo técnico
de jaleco branco. Levantando-se, Joachim atirou a revista sobre a mesa, e Hans Castorp seguiu-o
em direção à porta, não sem uma hesitação íntima. Despertaram nele escrúpulos cavalheirescos,
bem como a tentação de dirigir, apesar de tudo, uma palavra convencional a Mme. Chauchat e de
lhe oferecer a precedência, talvez até em francês, se isso fosse realizável. Apressadamente
procurou os vocábulos e ponderou a sintaxe. Mas ignorava se esse tipo de galanteria estava em
uso ali. Era possível que a ordem estabelecida ficasse acima de todo cavalheirismo. Joachim devia
sabê-lo, e como não fizesse menção de ceder o seu lugar à senhora presente, apesar dos olhares
comovidos e insistentes de Hans Castorp, este seguiu os passos do primo e atravessou a porta do
laboratório, depois de ter passado por Mme. Chauchat, que continuava na sua posição inclinada e
mal levantara os olhos. Estava ele por demais atordoado pelo que deixava atrás de si e pelas
aventuras dos dez últimos minutos, para que a transferência do seu corpo ao gabinete de
radioscopia pudesse produzir também uma modificação imediata do seu estado de alma. Não via
nada ou apenas tinha percepções muito vagas nessa meia-luz artificial. Ouvia ainda a voz
agradavelmente velada de Mme. Chauchat, quando dissera: “Que é que há?... Alguém entrou
agora, não é?... Isto é desagradável...” E o som dessa voz lhe descia docemente pelas costas,
fazendo-o estremecer. Via o joelho delineado sob o pano da saia; via as vértebras do pescoço
salientarem-se na nuca curvada, por baixo dos curtos cabelos arruivados que nesse lugar pendiam
frouxos, sem terem sido presos na trança, e um novo tremor passou-lhe pelo corpo. Deparou
com o Dr. Behrens, de costas para os recém-entrados, de pé diante de um armário ou de uma
estante saliente, ocupado em examinar uma chapa escura que mantinha, com o braço estendido,
nas proximidades da fosca lâmpada do teto. Passando ao lado dele, chegaram ao fundo da sala,
precedidos pelo técnico que fazia os preparativos para o exame. Pairava ali um cheiro esquisito.
Uma espécie de ozônio deteriorado enchia a atmosfera. Entre as janelas vendadas de preto, a
estante dividia o gabinete em duas partes desiguais. Distinguiam-se aparelhos de física, lentes
côncavas, quadros de distribuição, instrumentos para medir, mas também uma caixa parecida
com uma máquina fotográfica sobre uma armação de rodas, e dispositivos de vidro, embutidos
em fileiras na parede. Não se sabia onde se estava, se no ateliê de um fotógrafo, se numa câmara
escura, se na oficina de um inventor ou na cozinha de um bruxo tecnológico.
Sem perder tempo, Joachim começou a desnudar-se até a cintura. O técnico, um jovem
suíço atarracado, de faces rosadas, pediu a Hans Castorp que fizesse o mesmo. Acrescentou que
os exames eram feitos rapidamente e que logo a seguir seria a vez dele... Enquanto Hans Castorp
despia o colete, Behrens saiu da parte menor do recinto e foi ter com eles, na outra, mais
espaçosa.
– Olá! – disse. – Vejam só os nossos Dióscuros! Castor e Pólux!... Rogo-lhes a fineza de
suprimirem quaisquer gritos lancinantes! Esperem um pouco, num instante vamos passar luz
através dos dois. Parece, Castorp, que o senhor tem medo de nos revelar o seu interior. Fique
tranquilo, que tudo se passará segundo as regras da estética. Olhe aí, já viu a minha galeria
particular? – E tomando Hans Castorp pelo braço, conduziu-o àquelas fileiras de vidros escuros,
e dando volta a um comutador, acendeu a luz atrás delas. Eis que os vidros, iluminando-se,
mostraram as suas imagens. Hans Castorp viu membros – mãos, pés, rótulas, pernas, coxas,
braços e partes de bacias. Mas a forma viva, arredondada, daqueles fragmentos do corpo humano
era fantasmagórica e de contornos vagos; circundava, como uma névoa ou uma aura pálida, o
núcleo que ressaltava clara, minuciosa e decididamente: o esqueleto.
– Muito interessante – disse Hans Castorp.
– É de fato interessante – retrucou o conselheiro áulico. – Uma lição prática sumamente
útil para a rapaziada. Anatomia de raios X, compreende? Um triunfo dos tempos modernos. Isto
aqui é um braço de mulher, como o senhor pode perceber pela sua delicadeza. É com isso quê
nos cingem nas horas de amor, sabe? – E pôs-se a rir, o que fazia levantar-se de um lado o lábio
superior com o bigodinho aparado. Em seguida apagaram-se as chapas. Hans Castorp dirigiu-se
para onde estavam preparando a radiografia de Joachim.
Isso se dava à frente daquela saliência a cujo outro lado se achara momentos antes o Dr.
Behrens. Joachim sentara-se numa espécie de tamborete de carpinteiro, diante de uma tábua
contra a qual apertava o peito, e que ao mesmo tempo abraçava. O técnico corrigiu-lhe a posição
com movimentos moldadores, avançando ainda mais as espáduas de Joachim e fazendo-lhe
massagem nas costas. Depois, encaminhou-se para trás da máquina fotográfica, para focalizar,
encurvado e de pernas separadas, como um fotógrafo qualquer, a vista a tirar; expressou então a
sua satisfação e, afastando-se, recomendou a Joachim que inalasse o ar profundamente e
prendesse a respiração até que a chapa fosse batida. Dilataram-se e a seguir imobilizaram-se as
costas arredondadas de Joachim. Nesse momento, o técnico fez a manobra adequada no quadro
de distribuição. Durante dois segundos operaram energias terríveis cujo esforço era necessário
para atravessar a matéria, correntes de milhares de volts, de cem mil, como Hans Castorp julgava
lembrar-se. Apenas dominadas, em prol do seu objetivo, as forças procuraram escapar por um
desvio. Descargas estouravam como disparos. Chispas azuis dançavam num aparelho de medição.
Relâmpagos compridos passavam, crepitando, pela parede. Em qualquer parte, uma luz vermelha,
semelhante a um olho, mirava o recinto, impassível e ameaçadora. Um frasco, nas costas de
Joachim, enchia-se de qualquer substância verde. Depois, tudo sossegou. Desapareceram os
fenômenos luminosos, e com um suspiro Joachim soltou o ar retido nos seus pulmões. Estava
tudo terminado.
– O próximo réu! – chamou Behrens, dando uma cotovelada em Hans Castorp. – Não
faça cera! O senhor vai ganhar uma cópia gratuita, Castorp. Assim poderá projetar os segredos do
seu peito na parede, para divertir seus filhos e netos.
Joachim retirara-se, e o técnico já estava mudando a chapa. O conselheiro instruiu
pessoalmente o novato acerca do modo de se sentar e se agarrar. – Abraçar! – disse. – Dê um
abraço à tábua! Quanto a mim pode imaginar qualquer coisa diferente. E aperte o peito
firmemente contra ela, como se experimentasse sensações voluptuosas! Muito bem! Respire! Não
se mexa! – ordenou. – E agora sorria! – Hans Castorp esperava de olhos piscos, com os pulmões
repletos de ar. Atrás dele irrompeu a tempestade, estourando, pipocando, crepitando e
amainando. A objetiva contemplara o seu interior.
Ergueu-se, perturbado e aturdido pelo que acabava de lhe acontecer, ainda que a
penetração nem de leve se lhe tivesse tornado sensível. – Ótimo! – elogiou o conselheiro áulico. –
Agora vamos ver com os nossos próprios olhos. – E Joachim, como homem experimentado, já
se encaminhara mais ao fundo da sala, para se colocar nas proximidades da porta de saída, junto a
uma armação. Tinha às costas o volumoso aparelho, em cuja parte traseira se notava uma ampola
de vidro, semicheia de água, com um tubo de evaporação. Diante dela, à altura do peito, achava
se um anteparo emoldurado, suspenso em roldanas. À sua esquerda, no meio de um quadro de
distribuição e de outro instrumental, elevava-se um globo vermelho com uma lâmpada, que foi
acesa pelo Dr. Behrens, a cavaleiro sobre o tamborete à frente do anteparo. Apagou-se a luz do
teto, e somente a vermelha iluminava a cena. Com um rápido gesto, o mestre fez desaparecer
também esta, e profundas trevas envolveram as pessoas presentes.
– Antes de tudo os olhos têm de se adaptar – ouviu-se a voz do conselheiro áulico através
da escuridão. – É preciso que nossas pupilas se alarguem imensamente, como as dos gatos, para
que possamos enxergar o que queremos descobrir. Os senhores compreendem que não
poderíamos ver bem nitidamente com os nossos olhos ordinários, habituados à luz. Antes de
começarmos, devemos esquecer o dia claro com suas imagens alegres.
– Lógico – disse Hans Castorp, que se achava de pé atrás do médico. Fechou os olhos,
pois tanto fazia tê-los abertos ou cerrados, tão negra era a noite. – É necessário que os olhos
tomem um banho de escuridão, para que possam enxergar uma coisa dessas. Entende-se. Acho
até conveniente e indicado que a gente aproveite esse tempo para se concentrar um pouco, por
assim dizer, numa prece silenciosa. Estou aqui de olhos fechados e sinto uma sonolência
agradável. Mas que cheiro é esse?
– Oxigênio – explicou o conselheiro; – é o oxigênio que o senhor sente no ar. O produto
atmosférico da nossa tempestade particular, compreende?... E agora abra os olhos! – acrescentou. – Já vai começar a evocação. – Hans Castorp obedeceu depressa.
Ouviu-se a mudança de uma alavanca de lingueta. Um motor sobressaltou-se, pôs-se a
cantar furiosos agudos, mas foi logo regulado por uma segunda manobra. O chão vibrava
ritmicamente. A luzinha vermelha, oblonga e vertical, encarava-os, como uma ameaça muda. Em
qualquer parte crepitou um relâmpago. E lentamente, com um brilho leitoso, qual uma janela que
se iluminasse, ressaltou das trevas o pálido retângulo do anteparo luminoso, diante do qual o Dr.
Behrens cavalgava o seu tamborete de sapateiro, com as coxas escancaradas, e com os punhos
fincados nelas, apertando o nariz achatado contra a vidraça que lhe permitia a visão interior de
um organismo humano.
– Está vendo, rapaz? – perguntou... Hans Castorp inclinou-se por cima do ombro dele,
mas tornou a levantar a cabeça para olhar na direção onde supunha estarem, no meio da
escuridão, os olhos de Joachim, que provavelmente tinham aquela mesma expressão meiga e
triste do último exame. E perguntou ao primo:
– Você permite?
– Pois não – respondeu Joachim generosamente de dentro das trevas. O chão continuava
vibrando, e as energias em ação estalavam e rumorejavam, enquanto Hans Castorp, curvado,
espiava pela lívida janela, espiava através da ossatura vazia de Joachim Ziemssen. O esterno
confundia-se com a espinha dorsal numa espécie de coluna escura, cartilaginosa. A fileira anterior
das costelas estava entremeada pela das costas, que parecia mais pálida. As clavículas, em elegante
curva, bifurcavam-se mais acima, para ambos os lados, e na suave auréola dos contornos da carne
exibia-se, seco e nítido, o esqueleto dos ombros, a juntura dos úmeros de Joachim. Era muito
clara a cavidade do peito, mas distinguia-se um sistema de veias, manchas escuras, uma negrejante
aspereza.
– Imagem clara – disse o conselheiro áulico. – É a magreza decente da mocidade militar.
Já tive aqui panças impenetráveis. Não havia meio de distinguir a menor coisa que fosse. Seria
preciso descobrir antes os raios capazes de atravessar tal camada de banha... Este aqui, sim, é um
trabalho limpo. Pode ver o diafragma? – perguntou, apontando com o dedo para o arco escuro
que subia e descia na parte inferior da janela... – Está vendo, à esquerda, essas bossas, essas
protuberâncias? É a pleurisia que ele teve faz quinze anos... Respire profundamente! – ordenou. –
Mais! Eu disse: “Profundamente!” – E o diafragma de Joachim erguia-se, trêmulo, o mais alto que
podia. Notava-se um clareamento nas regiões superiores do pulmão, mas o conselheiro não
estava satisfeito. – Insuficiente – observou. – O senhor vê os hilos? Veja as aderências! Está
vendo as cavernas? É daí que vêm os tóxicos que o: embriagam. – Mas a atenção de Hans
Castorp achava-se toda absorvida por alguma coisa parecida com um saco, qualquer massa
estranha, como que animalesca, que aparecia, escura, atrás da coluna central, na sua maior parte à
direita do espectador – massa que regularmente se dilatava e se contraía, um pouco à maneira de
uma medusa a nadar.– O senhor vê o coração? – perguntou o conselheiro, desprendendo novamente a
manzorra da coxa e designando com o indicador aquele saco palpitante... Grande Deus! Era o
coração o que Hans Castorp contemplava, o orgulhoso coração de Joachim.
– Estou vendo o seu coração – disse com voz estrangulada.
– Pois não – tornou Joachim, e sem dúvida sorria, resignado, ali na escuridão. Mas o
médico mandou-os calar-se e deixar de trocar sentimentalismos. Estudou as manchas e as linhas,
aspereza preta na cavidade interior do peito, e enquanto isso, Hans Castorp tampouco se cansava
de olhar a forma sepulcral de Joachim, o seu esqueleto, essa armação descarnada, esse escanifrado
memento. Sentia-se cheio de devoção e de terror. – Sim, sim, eu vejo – disse diversas vezes. –
Deus meu! Eu vejo! – Ouvira falar de uma mulher, uma parenta, havia muito falecida, da família
Tienappel, distinguida pelo dom, ou talvez pela desgraça, de uma visão sinistra, que suportara
com toda a humildade: as pessoas que morreriam em breve apareciam-lhe sob a forma de
esqueletos. Deste modo é que Hans Castorp via o bom Joachim, embora com a ajuda e por meio
da aparelhagem da ciência física e óptica, de maneira que isso não queria dizer grande coisa e
nada havia de sobrenatural, tratando-se ainda de um espetáculo que o primo lhe permitira
expressamente. Sem embargo, sentiu-se de repente tomado de uma profunda compreensão do
destino melancólico daquela tia visionária. Violentamente emocionado pelo que via, ou, no
fundo, pelo fato de o ver, tinha a alma acossada por secretas dúvidas, a ponto de se perguntar se
tudo aquilo se passava de forma lícita, se sua visão, naquelas trevas vibrantes e chispantes, era de
fato inocente; e no seu peito mesclava-se o angustiante prazer da indiscrição com os sentimentos
de comoção e de piedade.
Mas, poucos minutos após, ele mesmo se achava no pelourinho, em plena tempestade,
enquanto Joachim vestia o seu corpo que tornara a ser opaco. De novo olhava o conselheiro
áulico através da vidraça leitosa; dessa vez esquadrinhava o interior de Hans Castorp, e das suas
observações feitas à meia voz, de certos resmungos abruptos e de algumas expressões vagas,
parecia deduzir-se que o resultado correspondia às suas expectativas. Terminada a radioscopia,
teve ainda a amabilidade de permitir que o paciente, a seus rogos insistentes, contemplasse a
própria mão através do anteparo luminoso. E Hans Castorp viu o que devia ter esperado, mas
que, em realidade, não cabe ver ao homem, e que jamais teria crido poder ver: lançou um olhar
para dentro do seu próprio túmulo. Viu, antecipado pela força dos raios, o futuro trabalho da
decomposição; viu a carne em que vivia, solubilizada, aniquilada, reduzida a uma névoa
inconsistente, no meio da qual se destacava o esqueleto minuciosamente plasmado da sua mão
direita, e em torno da primeira falange do dedo anular pairava, preto e frouxo, o anel-sinete que o
avô lhe legara, um objeto duro desta terra, com o qual os homens adornam o seu corpo destinado
a desfazer-se por baixo dele, para que fique novamente livre e se possa enfiar em outra mão que o
use durante algum tempo. Com os olhos daquela parenta da família Tienappel, contemplou uma
parte familiar do seu corpo, estudou-a com olhos videntes e penetrantes, e pela primeira vez na
vida compreendeu que estava destinado a morrer. Enquanto isso, sua fisionomia tomou aquela
expressão que costumava assumir quando ouvia música – expressão bastante tola, sonolenta e
piedosa, com a boca entreaberta e a cabeça inclinada para um ombro. O conselheiro disse:
– Fantasmagórico, hein? Sim, senhor, inegavelmente há nisso qualquer coisa de
fantasmagoria.
E mandou sustar a energia. O chão serenou; esvaíram-se os fenômenos luminosos; a
janela mágica voltou a envolver-se em trevas. A luz do teto foi acesa. E enquanto também Hans
Castorp se vestia, Behrens dava aos jovens alguns esclarecimentos a respeito das suas
observações, levando em conta os reduzidos conhecimentos de leigos dos dois. No que se referia
a Hans Castorp, o resultado óptico confirmou o acústico com toda a precisão que a honra da
ciência podia exigir. Haviam sido visíveis os lugares antigos tanto como outros, recentes, e
partindo dos brônquios estendiam-se cordões muito adentro do órgão – cordões com nozinhos.
Hans Castorp poderia verificá-los com seus próprios olhos no pequeno diapositivo que lhe seria
entregue em breve. – Por conseguinte, calma, paciência, disciplina de homem! Comer, tirar a
temperatura, repousar, esperar, não ter pressa. – Com isso voltou-lhes as costas. Foram-se os
primos. Hans Castorp, ao sair atrás de Joachim, olhou por cima do ombro. Introduzida pelo
técnico, Mme. Chauchat entrou no laboratório.
continua pág 143...
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Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
“Deus meu, eu vejo!” (b)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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