O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Terceira Parte
8..continuando...
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Mal podia acreditar que aquela jovem altiva que certa vez lhe lera com ar
majestoso e sobranceiro a carta de Gavríl Ardaliónovitch era a mesma que ali
estava sentada ao seu lado. Não podia conceber que aquela severa e
desdenhosa beldade não passasse na verdade de uma menina, de uma criançola
que nem mesmo agora compreendia o sentido de todas as palavras.
- Vivestes
sempre em casa, Agláia Ivánovna? Quero dizer, nunca estivestes em uma escola,
como interna? Nunca estudastes em um instituto?
- Em parte nenhuma. Permaneci sempre em casa, como se estivesse arrolhada
em uma garrafa! E somente para casar é que me extrairão de dentro da garrafa.
Por que é que está rindo outra vez? Será que está caçoando de mim, que passou
para o lado deles? - ajuntou com a testa ameaçadoramente vincada - Não me
faça zangar; que é que está pensando de mim? Estou certa que veio a este
encontro todo compenetrado de que estou apaixonada por você e que por isso lhe
marquei esta entrevista. - refletiu ela, irritadíssima.
- Confesso que ontem
cheguei a recear tal coisa - declarou Míchkin com a maior simplicidade. (Estava
no auge da confusão.) - Mas hoje estou convencido de que...
- De quê?... - gritou Agláia Ivánovna; e o seu lábio inferior começou a tremer - Ficou com medo de que eu... Ousou imaginar que eu... ó céus! Suspeitou, acaso,
que o convidei para o prender em uma armadilha? Para que nos descobrissem
aqui, depois, e que assim se visse forçado a se casar comigo?
- Agláia Ivánovna!
Não vos envergonhais? Como pôde uma ideia vil desabrochar em vosso coração
inocente! Juro que nem vós mesma acreditais em uma só dessas vossas palavras
e que nem sabeis o que estais dizendo.
Agláia ficou a olhar para o chão, muito
séria, como que perplexa ela própria ante o que dissera. E balbuciou:
- Não estou
envergonhada absolutamente. Como sabe que o meu coração é inocente? E que
ousadia foi aquela de me mandar uma carta de amor?
- Uma carta de amor?
Minha carta... uma carta de amor? Mas se foi uma carta a mais respeitosa
possível! Uma carta que era a emanação da minha alma no momento mais
amargo de minha vida! Pensei então em vós como em uma luz... Eu...
- Está bem, está bem! - atalhou ela de chofre, em um tom inteiramente mudado,
arrependida de todo e como que receosa.
Voltou-se para ele, embora tentando
evitar olhá-lo, quase lhe tocando o ombro a pedir com veemência que não
ficasse zangado. E acrescentou, terrivelmente transfigurada:
- Muito bem. De
fato empreguei uma expressão estúpida. Mas o fiz com a intenção de
experimentá-lo. Dou o dito por não dito. Se o ofendi, perdoe-me.
Por favor, não me encare. Vire para lá. Você declarou que foi uma ideia ignóbil.
Pois eu a disse somente para o magoar. Às vezes tenho medo do que vou dizer e
assim mesmo digo! Acabou de confessar que escreveu aquela carta no momento
mais lancinante da sua vida. Sei que momento foi esse. - olhava outra vez para o
chão, o tom da voz era brando.
- Oh! Se soubésseis uma milésima parte!
- Sei de
tudo! - exclamou ela com renovada animação - Esteve vivendo na mesma casa
mais de um mês com aquela mulher horrível com quem fugiu...
Desta vez não
ficou rubra, mas sim lívida, ao pronunciar tais palavras e se levantou sem saber o
que estava fazendo: mas, caindo em si. logo tornou a se sentar. Por muito tempo
seu lábio ainda tremia. O silêncio durou um minuto. O príncipe quedou muito
atônito ante a subtaneidade daquela explosão, sem saber a que atribuí-la.
E nisto Agláiá afirmou de modo categórico:
- Absolutamente não o amo!
Míchkin não deu resposta. Ficaram em silêncio por mais um minuto. Abaixando
então ainda mais a cabeça, ela proferiu depressa mas de modo quase inaudível: - Eu amo Gavríl Ardaliónovitch...
- Não é verdade! - rebateu o príncipe, em uma espécie de sussurro.
- Então
estou mentindo? É verdade, sim! Dei-lhe meu consentimento anteontem, aqui
neste mesmo banco.
O príncipe sobressaltou-se e refletiu durante um minuto; depois, repetiu com
energia:
- Não é verdade! É uma invenção isso tudo.
- Você é formidavelmente cortês.
Pois saiba que ele se emendou e que me ama acima da própria vida.
Queimou a mão diante de mim para provar que me ama acima da própria vida.
- Queimou a mão?!
- Sim, a mão. Não acredita? Acha que é mentira? Bem me importa.
Míchkin
permaneceu calado, de novo. Não havia nenhum traço de gracejo nas palavras
de Agláia que continuava carrancuda.
- Isso se passou aqui? Neste banco? Então
ele trouxe uma vela? Do contrário não percebo como poderia...
- Pois trouxe sim... Que há de extraordinário nisso?
- Inteira, em um castiçal?
- Bem.., isto é... um pedaço, um toquinho só, já no fim.., ou inteira. Não
vem ao caso. Acendeu a vela, pôs o dedo em cima da chama, ficou assim meia
hora. Há alguma coisa impossível nisso?
- Ainda esta noite estivemos juntos.
Estava com os dedos intatos.
Agláia caiu em um acesso repentino de gargalhada,
como uma criança.
- Quer saber por que tive de lhe inventar toda essa mentira? - virou-se outra vez, de repente, para o príncipe com uma confiança infantil e o
riso ainda lhe aflorava aos lábios - Porque, se uma pessoa precisa mentir, deve
inventar com muita habilidade uma coisa fora do comum, bem excêntrica, inédita
ou bastante rara; a mentira adquirirá foros de verdade. Sempre reparei nisso.
Falhou esta vez porque não fiz com todas as regras.
Nisto franziu novamente a
testa, como a recordar-se de qualquer ato, voltou-se para o príncipe com uma
expressão séria e até melancólica e declarou:
- Quando declamei o “cavaleiro
pobre”, não obstante querer elogiá-lo indiretamente por algo, quis também
desapontá-lo por causa de sua atitude, e mostrar-lhe que sabia de tudo.
- Sois muito injusta comigo e com essa infeliz mulher a quem vos referistes
agora mesmo com falta de caridade, Agláia.
- É porque sei de tudo! De tudo! Eis
por que falei deste modo. Sei que há seis meses passados lhe propôs casamento
diante de uma porção de gente. Não me interrompa. Como vê, estou falando sem
comentar. E depois disso ela fugiu com Rogójin; tempos depois você viveu com
ela em qualquer localidade da província, ou em qualquer cidade até que ela o
largou por qualquer outro. (Agláia enrubesceu de ressentimento.) E agora ela
está outra vez com Rogójin que a ama como um louco. E, recentemente, você..,
que não é o tolo que dizem, veio a galope parar aqui nas pegadas dessa mulher,
logo que descobriu que ela voltara para Petersburgo. Ainda ontem de noite não
hesitou em defendê-la; há poucos minutos estava sonhando com ela aqui
mesmo... Como vê, sei de tudo. Foi por causa dela, sim, por causa dessa mulher,
que você veio aqui para Pávlovsk, não foi?
- Não nego - respondeu o príncipe brandamente, abaixando o olhar com certo
modo soturno e vago, não suspeitando com que olhos chamejantes Agláia o
fulminava - Por causa dela, com o fim de verificar se... Creio que ela não é feliz
com Rogójin, muito embora... Enfim, conquanto não soubesse o que poderia
fazer por ela aqui, de que forma ajudá-la, vim.
Parou e fitou Agláia que o
escutava calada e séria.
- Ah! Veio sem saber por quê? Quer prova maior de que a ama e
muitíssimo? - externou Agláia, a custo.
- Não - retrucou o príncipe. - Não. Eu não
a amo. Oh! Se ao menos pudésseis saber e avaliar com que horror me recordo
do tempo que passei com ela! - disse isto sacudido por um calafrio.
- Conte-me tudo.
- E nem há em tudo quanto se passou nada que não possais escutar. Se muita vez
me passou pela mente, como quando vos escrevi, vos contar tudo, a vós e a mais
ninguém, não sei o motivo de tal desejo. Com certeza porque vos quero muito.
Essa infeliz criatura está convencida de que é a mulher mais pecaminosa e
decaída deste mundo! Oh! Não a vilipendie nem a apedreje. Ela já se torturou
demasiado com a consciência do seu imerecido opróbrio. E, meu Deus, ela não
tem do que ser censurada, Ah! Não cessa declamar, a todo instante, do fundo da
sua desdita, que não suporta mais viver no erro e que foi vítima dos outros, de um
homem depravado e libertino. Mas se eu próprio asseverar isso, então ela será a
primeira a não crer, a jurar com todas as forças de sua consciência que é
culpada. Quando tentei desmanchar essa idéia fixa tão sinistra, o meu gesto a
atirou em um abismo tal de escrúpulos que para fugir a isso se arrojou em um
outro pior, tal o seu desatino. Só em recordar esse tenebroso tempo meu coração
se estraçalha. Fugiu de mim. E sabeis por quê? Para quê? Para arranjar uma
prova de que era uma criatura ignóbil. E o que ainda é talvez mais terrível á que
ela própria ignora que agiu somente com esse intuito, decidida a praticar uma
ação infame somente para poder dizer a si mesma:
‘Largaste-o, chafurdaste neste lodo! E agora? Duvidas agora de que és uma
criatura infame?” Agláia, é difícil compreender tais complexidades. Quer saber?
É bem provável que nessa contínua sensação de escrúpulo e de vergonha exista
para ela uma espécie de terrível prazer anômalo, uma espécie de vingança
contra alguém. As vezes consigo levá-la até onde um pouco de luz a faça ver
claro dentro e fora da sua angústia. Mas acaba se rebelando sempre e me acusa
amargamente de pretender incutir uma superação na sua miserável vivência
(coisa que nem me acode ao cérebro). O que ela me disse quando lhe propus
casamento! Que não condescendia em aceitar consolo ou ajuda de quem quer
que fosse, tampouco desejando ser elevada a nenhum plano superior! Ontem
reparastes nela? Cuidais que ela se sinta bem naquela roda? Que aquela gente
seja companhia adequada para ela? Se soubésseis quando é bem
educada, que compreensão manifesta pelas coisas, quando tem paz! Não raro
me surpreendia deveras.
- Costumava pregar-lhe moral.., quando esteve com ela? Sermões, como este?
- Oh! Não - continuou o príncipe pensativo, não percebendo o tom nem a
pergunta. - Dificilmente lhe falo. Muitas vezes quero falar mas não sei o que deva dizer. Já
me convenci que em certos casos o melhor de tudo é ficar quieto. Oh! Eu a
amei. Eu a amei muito; mas depois... depois ela adivinhou a verdade.
- Qual
verdade?
- Adivinhou que era somente piedade o que eu tinha por ela, já que não a amava
mais.
- Como é que sabe? Talvez se tenha apaixonado por esse latifundiário com quem
fugiu...
- Não, não; estou bem a par de tudo. Não fez mais do que se rir dele.
- E nunca
riu de você?
- Não. Mas dá risadas estranhas quando se exaspera. Transforma-se em uma
fúria terrível quando censura uma pessoa. A mim, por exemplo. Contra si
mesma, também. Mas... depois... Não quero me lembrar, não quero me lembrar
disso!... - e escondeu o rosto nas mãos.
- Sabe que ela me escreve cartas quase todos os dias?
- Então é verdade?
exclamou o príncipe, perplexo - Ouvi falar, mas não acreditei.
- Quem lhe contou? - perguntou Agláia, receosa.
- Rogójin me disse ontem, mas
de um modo vago.
- Ontem? Ontem de manhã? Ontem?... A que horas? Antes da
banda tocar, ou depois?
- Depois, tarde da noite, por volta das onze horas.
- Ah! Se foi Rogójin... E sabe o
que ela me escreve sempre nessas cartas?
- Seja o que for, não me
surpreenderá. Está com o juízo alterado.
- Eis as cartas! - Agláia tirou três
envelopes da sua bolsa e os largou no banco, perto do príncipe.
- Há uma semana exata que insiste, roga, implora e me incensa, para que me
case com você. Oh! É bem esperta, apesar de louca. Em bom fundamento se
apoia você para a achar bem mais sensata do que eu. Escreve que gosta de mim,
que tenta diariamente arranjar um ensejo para me ver mesmo que seja de
longe.
Asseverou-me que você me ama, que tem certeza, desde muito; que você
costuma falar com ela a meu respeito e... Tem um modo de escrever esquisito,
extravagante! Não mostrei essas cartas a ninguém. Achei melhor aguardar que
você aparecesse. Sabe qual é o sentido de tudo isso? É capaz de adivinhar?
- Loucura típica. Uma das muitas provas de sua insanidade mental - explicou o
príncipe; e seus lábios começaram a tremer.
- Está querendo chorar?
- Não, Agláia. Não estou chorando. - e o príncipe ficou a fita-la.
- Que lhe
parece que devo fazer? Que é que me aconselha? Não posso ficar a receber
indefinidamente essas cartas!
- Tende paciência, rogo-vos - exclamou Míchkin.
- Que podeis fazer nessa incerteza?
- Farei tudo para impedir que ela continue a vos
escrever.
- Então é um homem sem coração! - redarguiu Agláia.
- Está vendo
evidentemente que ela não está caída por mim, que é a você que ela ama, tão
somente a você. Não disse ainda agora mesmo que notava tudo nela? Como não
notou isso? Não compreendeu ainda do que se trata? O que estas cartas
significam?... Ciúme! Mais do que ciúme. Ela... Será que você acredita piamente
que ela se case com Rogójin, conforme garante aqui nestas cartas? Pois sim! No
dia imediato ao nosso casamento se mataria!
O príncipe estremeceu. Seu
coração parou. Só pôde fazer uma coisa: ficar olhando para Agláia,
completamente marasmado. E como lhe pareceu estranho verificar quanto essa
menina aí era já tão acabadamente mulher!
- Deus bem sabe, Agláia, que para
restituir a paz a essa criatura e a tornar feliz eu daria até mesmo a minha vida...
Mas agora já não a posso amar, E ela sabe disso!
- Sacrifique-se então, Coisa aliás bem do seu feitio. Você é uma pessoa tão
caridosa! E não me chame de Agláia!... Chamou-me simplesmente de Agláia,
ainda ontem. Compete a você soerguê-la. É obrigado a tal gesto. Devia ir embora
com ela outra vez a fim de lhe dar paz e sossego ao coração. Ora, você bem sabe
que a ama!
- Não posso sacrificar-me desta forma, apesar de já haver querido certa vez, e
de ainda querer agora. Tenho a certeza de que comigo ela se perderia. E por isso
me afasto. Devia ir vê-la hoje às sete horas, mas decerto não irei mais. Ela em
seu orgulho nunca toleraria a minha compaixão... e acabaríamos caindo ambos
na ruína. Sei quanto isso é esquisito, mas que é que em todo esse caso
não é anormal? Dizeis que ela me ama. Mas isso é amor? Posso considerar amor
o que presenciei? Não, amor não é, e sim qualquer outra coisa!
- Mas que palidez
é essa? - perguntou de chofre Agláia, pasmada para a fisionomia do príncipe.
- Não é nada. É que passei a noite em claro. Estou exausto.. Realmente, Agláia,
eu e ela conversamos sobre vós.
- Então, é verdade? Falou com ela sobre mim?
E... e como se preocupou você comigo se apenas me viu uma vez?
- Não sei como isso se deu. Na minha treva de então sonhei que... Tive a ilusão
decerto de que me era possível ir ao encontro de uma nova aurora. Não sei como
me nasceu esse pensamento. O que vos escrevi naquela ocasião era verdade,
embora eu não soubesse.
Tudo não passou de um sonho em plena treva... Depois comecei a trabalhar.
Contava permanecer ausente uns três anos.
- Então veio por causa dela!? - e a
voz de Agláia tremeu.
- Sim, esse foi o motivo.
Houve de parte a parte um silêncio opressivo que se dilatou durante dois minutos.
Agláia levantou-se do banco, e disse com voz entrecortada:
- Pois fique com a
ideia, com a convicção de que essa... sua... mulher é uma louca! Mas eu não
tenho nada de ver com as suas fantasias de louca... Intimo-o, Liév Nikoláievitch,
a restituir estas cartas a essa mulher, da minha parte! E se ela ousar tomar a me
escrever uma linha que seja, farei queixa a meu pai e então se há de
providenciar o seu internamento em uma casa de correção!...
O príncipe
levantou-se de um pulo e ficou boquiaberto diante da fúria repentina de Agláia.
Foi como se uma espécie de névoa o envolvesse.
- Não podeis sentir uma coisa
destas! Não pode ser! - balbuciou.
- Sinto! Sinto, sim! - gritou Agláia, fora de si.
É a verdade, a pura verdade!
- Que é que é verdade? Verdade o quê? - ouviram ambos uma voz aflita indagar,
perto deles.
Era Lizavéta Prokófievna que estava chegando.
- A verdade.., é que vou me
casar com Gavríl Ardaliónovitch! Que amo Gavril Ardaliónovitch e que vou
fugir de casa amanhã com ele! - bradou Agláia quase esbarrando na mãe. - Ouviu agora? Ficou satisfeita a sua curiosidade? Ou quer saber mais? - e correu
para casa.
- Não, meu amigo, não se vá embora - disse Lizavéta Prokófievna
sustando os passos do príncipe. - Você terá a bondade de me dar uma explicação. Que é que eu fiz para ter
tantos aborrecimentos? Não consegui dormir a noite inteira.
O príncipe seguiu-a.
continua página 394...
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