sexta-feira, 25 de abril de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Terceira Parte (8b) - Mal podia acreditar

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Terceira Parte
8.

.continuando...
.
      Mal podia acreditar que aquela jovem altiva que certa vez lhe lera com ar majestoso e sobranceiro a carta de Gavríl Ardaliónovitch era a mesma que ali estava sentada ao seu lado. Não podia conceber que aquela severa e desdenhosa beldade não passasse na verdade de uma menina, de uma criançola que nem mesmo agora compreendia o sentido de todas as palavras.

- Vivestes sempre em casa, Agláia Ivánovna? Quero dizer, nunca estivestes em uma escola, como interna? Nunca estudastes em um instituto? 
- Em parte nenhuma. Permaneci sempre em casa, como se estivesse arrolhada em uma garrafa! E somente para casar é que me extrairão de dentro da garrafa. Por que é que está rindo outra vez? Será que está caçoando de mim, que passou para o lado deles? - ajuntou com a testa ameaçadoramente vincada - Não me faça zangar; que é que está pensando de mim? Estou certa que veio a este encontro todo compenetrado de que estou apaixonada por você e que por isso lhe marquei esta entrevista. - refletiu ela, irritadíssima. 
- Confesso que ontem cheguei a recear tal coisa - declarou Míchkin com a maior simplicidade. (Estava no auge da confusão.) - Mas hoje estou convencido de que...
- De quê?... - gritou Agláia Ivánovna; e o seu lábio inferior começou a tremer - Ficou com medo de que eu... Ousou imaginar que eu... ó céus! Suspeitou, acaso, que o convidei para o prender em uma armadilha? Para que nos descobrissem aqui, depois, e que assim se visse forçado a se casar comigo? 
- Agláia Ivánovna! Não vos envergonhais? Como pôde uma ideia vil desabrochar em vosso coração inocente! Juro que nem vós mesma acreditais em uma só dessas vossas palavras e que nem sabeis o que estais dizendo.

     Agláia ficou a olhar para o chão, muito séria, como que perplexa ela própria ante o que dissera. E balbuciou:

- Não estou envergonhada absolutamente. Como sabe que o meu coração é inocente? E que ousadia foi aquela de me mandar uma carta de amor?
- Uma carta de amor? Minha carta... uma carta de amor? Mas se foi uma carta a mais respeitosa possível! Uma carta que era a emanação da minha alma no momento mais amargo de minha vida! Pensei então em vós como em uma luz... Eu... 
- Está bem, está bem! - atalhou ela de chofre, em um tom inteiramente mudado, arrependida de todo e como que receosa. 

     Voltou-se para ele, embora tentando evitar olhá-lo, quase lhe tocando o ombro a pedir com veemência que não ficasse zangado. E acrescentou, terrivelmente transfigurada:

- Muito bem. De fato empreguei uma expressão estúpida. Mas o fiz com a intenção de experimentá-lo. Dou o dito por não dito. Se o ofendi, perdoe-me. Por favor, não me encare. Vire para lá. Você declarou que foi uma ideia ignóbil. Pois eu a disse somente para o magoar. Às vezes tenho medo do que vou dizer e assim mesmo digo! Acabou de confessar que escreveu aquela carta no momento mais lancinante da sua vida. Sei que momento foi esse. - olhava outra vez para o chão, o tom da voz era brando.
- Oh! Se soubésseis uma milésima parte!
 - Sei de tudo! - exclamou ela com renovada animação - Esteve vivendo na mesma casa mais de um mês com aquela mulher horrível com quem fugiu...

     Desta vez não ficou rubra, mas sim lívida, ao pronunciar tais palavras e se levantou sem saber o que estava fazendo: mas, caindo em si. logo tornou a se sentar. Por muito tempo seu lábio ainda tremia. O silêncio durou um minuto. O príncipe quedou muito atônito ante a subtaneidade daquela explosão, sem saber a que atribuí-la. E nisto Agláiá afirmou de modo categórico:

- Absolutamente não o amo!

     Míchkin não deu resposta. Ficaram em silêncio por mais um minuto. Abaixando então ainda mais a cabeça, ela proferiu depressa mas de modo quase inaudível: - Eu amo Gavríl Ardaliónovitch...

- Não é verdade! - rebateu o príncipe, em uma espécie de sussurro. 
- Então estou mentindo? É verdade, sim! Dei-lhe meu consentimento anteontem, aqui neste mesmo banco. 

     O príncipe sobressaltou-se e refletiu durante um minuto; depois, repetiu com energia:

- Não é verdade! É uma invenção isso tudo.
- Você é formidavelmente cortês. Pois saiba que ele se emendou e que me ama acima da própria vida. Queimou a mão diante de mim para provar que me ama acima da própria vida.
- Queimou a mão?!
- Sim, a mão. Não acredita? Acha que é mentira? Bem me importa.
 
     Míchkin permaneceu calado, de novo. Não havia nenhum traço de gracejo nas palavras de Agláia que continuava carrancuda.

- Isso se passou aqui? Neste banco? Então ele trouxe uma vela? Do contrário não percebo como poderia...
- Pois trouxe sim... Que há de extraordinário nisso? 
- Inteira, em um castiçal?
- Bem.., isto é... um pedaço, um toquinho só, já no fim.., ou inteira. Não vem ao caso. Acendeu a vela, pôs o dedo em cima da chama, ficou assim meia hora. Há alguma coisa impossível nisso?
- Ainda esta noite estivemos juntos. Estava com os dedos intatos.

     Agláia caiu em um acesso repentino de gargalhada, como uma criança.

 - Quer saber por que tive de lhe inventar toda essa mentira? - virou-se outra vez, de repente, para o príncipe com uma confiança infantil e o riso ainda lhe aflorava aos lábios - Porque, se uma pessoa precisa mentir, deve inventar com muita habilidade uma coisa fora do comum, bem excêntrica, inédita ou bastante rara; a mentira adquirirá foros de verdade. Sempre reparei nisso. Falhou esta vez porque não fiz com todas as regras.

     Nisto franziu novamente a testa, como a recordar-se de qualquer ato, voltou-se para o príncipe com uma expressão séria e até melancólica e declarou:

- Quando declamei o “cavaleiro pobre”, não obstante querer elogiá-lo indiretamente por algo, quis também desapontá-lo por causa de sua atitude, e mostrar-lhe que sabia de tudo.
- Sois muito injusta comigo e com essa infeliz mulher a quem vos referistes agora mesmo com falta de caridade, Agláia.
- É porque sei de tudo! De tudo! Eis por que falei deste modo. Sei que há seis meses passados lhe propôs casamento diante de uma porção de gente. Não me interrompa. Como vê, estou falando sem comentar. E depois disso ela fugiu com Rogójin; tempos depois você viveu com ela em qualquer localidade da província, ou em qualquer cidade até que ela o largou por qualquer outro. (Agláia enrubesceu de ressentimento.) E agora ela está outra vez com Rogójin que a ama como um louco. E, recentemente, você.., que não é o tolo que dizem, veio a galope parar aqui nas pegadas dessa mulher, logo que descobriu que ela voltara para Petersburgo. Ainda ontem de noite não hesitou em defendê-la; há poucos minutos estava sonhando com ela aqui mesmo... Como vê, sei de tudo. Foi por causa dela, sim, por causa dessa mulher, que você veio aqui para Pávlovsk, não foi? 
- Não nego - respondeu o príncipe brandamente, abaixando o olhar com certo modo soturno e vago, não suspeitando com que olhos chamejantes Agláia o fulminava - Por causa dela, com o fim de verificar se... Creio que ela não é feliz com Rogójin, muito embora... Enfim, conquanto não soubesse o que poderia fazer por ela aqui, de que forma ajudá-la, vim.

     Parou e fitou Agláia que o escutava calada e séria.

- Ah! Veio sem saber por quê? Quer prova maior de que a ama e muitíssimo? - externou Agláia, a custo.
- Não - retrucou o príncipe. - Não. Eu não a amo. Oh! Se ao menos pudésseis saber e avaliar com que horror me recordo do tempo que passei com ela! - disse isto sacudido por um calafrio.
- Conte-me tudo.
- E nem há em tudo quanto se passou nada que não possais escutar. Se muita vez me passou pela mente, como quando vos escrevi, vos contar tudo, a vós e a mais ninguém, não sei o motivo de tal desejo. Com certeza porque vos quero muito. Essa infeliz criatura está convencida de que é a mulher mais pecaminosa e decaída deste mundo! Oh! Não a vilipendie nem a apedreje. Ela já se torturou demasiado com a consciência do seu imerecido opróbrio. E, meu Deus, ela não tem do que ser censurada, Ah! Não cessa declamar, a todo instante, do fundo da sua desdita, que não suporta mais viver no erro e que foi vítima dos outros, de um homem depravado e libertino. Mas se eu próprio asseverar isso, então ela será a primeira a não crer, a jurar com todas as forças de sua consciência que é culpada. Quando tentei desmanchar essa idéia fixa tão sinistra, o meu gesto a atirou em um abismo tal de escrúpulos que para fugir a isso se arrojou em um outro pior, tal o seu desatino. Só em recordar esse tenebroso tempo meu coração se estraçalha. Fugiu de mim. E sabeis por quê? Para quê? Para arranjar uma prova de que era uma criatura ignóbil. E o que ainda é talvez mais terrível á que ela própria ignora que agiu somente com esse intuito, decidida a praticar uma ação infame somente para poder dizer a si mesma: ‘Largaste-o, chafurdaste neste lodo! E agora? Duvidas agora de que és uma criatura infame?” Agláia, é difícil compreender tais complexidades. Quer saber? É bem provável que nessa contínua sensação de escrúpulo e de vergonha exista para ela uma espécie de terrível prazer anômalo, uma espécie de vingança contra alguém. As vezes consigo levá-la até onde um pouco de luz a faça ver claro dentro e fora da sua angústia. Mas acaba se rebelando sempre e me acusa amargamente de pretender incutir uma superação na sua miserável vivência (coisa que nem me acode ao cérebro). O que ela me disse quando lhe propus casamento! Que não condescendia em aceitar consolo ou ajuda de quem quer que fosse, tampouco desejando ser elevada a nenhum plano superior! Ontem reparastes nela? Cuidais que ela se sinta bem naquela roda? Que aquela gente seja companhia adequada para ela? Se soubésseis quando é bem educada, que compreensão manifesta pelas coisas, quando tem paz! Não raro me surpreendia deveras.
- Costumava pregar-lhe moral.., quando esteve com ela? Sermões, como este? 
- Oh! Não - continuou o príncipe pensativo, não percebendo o tom nem a pergunta. - Dificilmente lhe falo. Muitas vezes quero falar mas não sei o que deva dizer. Já me convenci que em certos casos o melhor de tudo é ficar quieto. Oh! Eu a amei. Eu a amei muito; mas depois... depois ela adivinhou a verdade. 
- Qual verdade? 
- Adivinhou que era somente piedade o que eu tinha por ela, já que não a amava mais.
- Como é que sabe? Talvez se tenha apaixonado por esse latifundiário com quem fugiu...
- Não, não; estou bem a par de tudo. Não fez mais do que se rir dele.
- E nunca riu de você?
- Não. Mas dá risadas estranhas quando se exaspera. Transforma-se em uma fúria terrível quando censura uma pessoa. A mim, por exemplo. Contra si mesma, também. Mas... depois... Não quero me lembrar, não quero me lembrar disso!... - e escondeu o rosto nas mãos.
- Sabe que ela me escreve cartas quase todos os dias?
- Então é verdade? exclamou o príncipe, perplexo - Ouvi falar, mas não acreditei.
- Quem lhe contou? - perguntou Agláia, receosa.
- Rogójin me disse ontem, mas de um modo vago.
- Ontem? Ontem de manhã? Ontem?... A que horas? Antes da banda tocar, ou depois?
- Depois, tarde da noite, por volta das onze horas.
- Ah! Se foi Rogójin... E sabe o que ela me escreve sempre nessas cartas?
- Seja o que for, não me surpreenderá. Está com o juízo alterado.
- Eis as cartas! - Agláia tirou três envelopes da sua bolsa e os largou no banco, perto do príncipe.
- Há uma semana exata que insiste, roga, implora e me incensa, para que me case com você. Oh! É bem esperta, apesar de louca. Em bom fundamento se apoia você para a achar bem mais sensata do que eu. Escreve que gosta de mim, que tenta diariamente arranjar um ensejo para me ver mesmo que seja de longe. Asseverou-me que você me ama, que tem certeza, desde muito; que você costuma falar com ela a meu respeito e... Tem um modo de escrever esquisito, extravagante! Não mostrei essas cartas a ninguém. Achei melhor aguardar que você aparecesse. Sabe qual é o sentido de tudo isso? É capaz de adivinhar?
- Loucura típica. Uma das muitas provas de sua insanidade mental - explicou o príncipe; e seus lábios começaram a tremer. 
- Está querendo chorar? 
- Não, Agláia. Não estou chorando. - e o príncipe ficou a fita-la. 
- Que lhe parece que devo fazer? Que é que me aconselha? Não posso ficar a receber indefinidamente essas cartas!
- Tende paciência, rogo-vos - exclamou Míchkin.
- Que podeis fazer nessa incerteza? 
- Farei tudo para impedir que ela continue a vos escrever.
- Então é um homem sem coração! - redarguiu Agláia. 
- Está vendo evidentemente que ela não está caída por mim, que é a você que ela ama, tão somente a você. Não disse ainda agora mesmo que notava tudo nela? Como não notou isso? Não compreendeu ainda do que se trata? O que estas cartas significam?... Ciúme! Mais do que ciúme. Ela... Será que você acredita piamente que ela se case com Rogójin, conforme garante aqui nestas cartas? Pois sim! No dia imediato ao nosso casamento se mataria!

     O príncipe estremeceu. Seu coração parou. Só pôde fazer uma coisa: ficar olhando para Agláia, completamente marasmado. E como lhe pareceu estranho verificar quanto essa menina aí era já tão acabadamente mulher!

- Deus bem sabe, Agláia, que para restituir a paz a essa criatura e a tornar feliz eu daria até mesmo a minha vida... Mas agora já não a posso amar, E ela sabe disso!
- Sacrifique-se então, Coisa aliás bem do seu feitio. Você é uma pessoa tão caridosa! E não me chame de Agláia!... Chamou-me simplesmente de Agláia, ainda ontem. Compete a você soerguê-la. É obrigado a tal gesto. Devia ir embora com ela outra vez a fim de lhe dar paz e sossego ao coração. Ora, você bem sabe que a ama! 
- Não posso sacrificar-me desta forma, apesar de já haver querido certa vez, e de ainda querer agora. Tenho a certeza de que comigo ela se perderia. E por isso me afasto. Devia ir vê-la hoje às sete horas, mas decerto não irei mais. Ela em seu orgulho nunca toleraria a minha compaixão... e acabaríamos caindo ambos na ruína. Sei quanto isso é esquisito, mas que é que em todo esse caso não é anormal? Dizeis que ela me ama. Mas isso é amor? Posso considerar amor o que presenciei? Não, amor não é, e sim qualquer outra coisa! 
- Mas que palidez é essa? - perguntou de chofre Agláia, pasmada para a fisionomia do príncipe.
- Não é nada. É que passei a noite em claro. Estou exausto.. Realmente, Agláia, eu e ela conversamos sobre vós. 
- Então, é verdade? Falou com ela sobre mim? E... e como se preocupou você comigo se apenas me viu uma vez?
- Não sei como isso se deu. Na minha treva de então sonhei que... Tive a ilusão decerto de que me era possível ir ao encontro de uma nova aurora. Não sei como me nasceu esse pensamento. O que vos escrevi naquela ocasião era verdade, embora eu não soubesse. Tudo não passou de um sonho em plena treva... Depois comecei a trabalhar. Contava permanecer ausente uns três anos. 
- Então veio por causa dela!? - e a voz de Agláia tremeu. 
- Sim, esse foi o motivo. 

     Houve de parte a parte um silêncio opressivo que se dilatou durante dois minutos. Agláia levantou-se do banco, e disse com voz entrecortada:

- Pois fique com a ideia, com a convicção de que essa... sua... mulher é uma louca! Mas eu não tenho nada de ver com as suas fantasias de louca... Intimo-o, Liév Nikoláievitch, a restituir estas cartas a essa mulher, da minha parte! E se ela ousar tomar a me escrever uma linha que seja, farei queixa a meu pai e então se há de providenciar o seu internamento em uma casa de correção!... 

     O príncipe levantou-se de um pulo e ficou boquiaberto diante da fúria repentina de Agláia. Foi como se uma espécie de névoa o envolvesse.

- Não podeis sentir uma coisa destas! Não pode ser! - balbuciou.
- Sinto! Sinto, sim! - gritou Agláia, fora de si. É a verdade, a pura verdade! 
- Que é que é verdade? Verdade o quê? - ouviram ambos uma voz aflita indagar, perto deles. Era Lizavéta Prokófievna que estava chegando.
- A verdade.., é que vou me casar com Gavríl Ardaliónovitch! Que amo Gavril Ardaliónovitch e que vou fugir de casa amanhã com ele! - bradou Agláia quase esbarrando na mãe. - Ouviu agora? Ficou satisfeita a sua curiosidade? Ou quer saber mais? - e correu para casa.
- Não, meu amigo, não se vá embora - disse Lizavéta Prokófievna sustando os passos do príncipe. - Você terá a bondade de me dar uma explicação. Que é que eu fiz para ter tantos aborrecimentos? Não consegui dormir a noite inteira.

     O príncipe seguiu-a.

O Idiota: Terceira Parte (8b) - Mal podia acreditar
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