em busca do tempo perdido
volume II
À Sombra das Moças em Flor
Segunda Parte
Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar
(r)
continuando...
A ideia daquele grande véu no qual os anjos levam o corpo da Virgem, sagrado demais para que ousem tocá-lo diretamente (disse-lhe que o mesmo assunto era tratado na igreja de Saint-André-des-Champs; ele havia visto fotografias do pórtico desta última igreja, mas me fez notar que o empenho desses pequenos camponeses que rodeiam ao mesmo tempo a Virgem era coisa diversa da gravidade dos dois grandes anjos quase italianos, tão esguios e benignos, da igreja de Balbec); o anjo que conduz a alma da Virgem para reuni-la a seu corpo; no encontro da Virgem com Santa Isabel, o gesto desta última que toca o seio de Maria e se maravilha ao senti-lo cheio; e o braço esticado da parteira que não queria crer, sem tocar, na Imaculada Conceição; e o cinto lançado pela Virgem a São Tomás para lhe dar uma prova de sua ressurreição; e também esse véu que a Virgem arranca do seio para cobrir a nudez do filho de um lado em que a Igreja recolhe o sangue, o licor da Eucaristia, enquanto, do outro, a Sinagoga, cujo reinado é findo, tem os olhos vendados, segura um cetro partido ao meio e deixa escapar, com a coroa que lhe cai da cabeça, as tábuas da antiga Lei; e o marido que, na hora do Juízo Final, ajudando a jovem esposa a sair do túmulo, lhe apoia a mão contra seu próprio coração para sossegá-la e lhe provar que combate de verdade, será que isso é uma ideia tola ou um lugar-comum? E o anjo que leva o sol e a lua, tornados inúteis, visto que está dito que a Luz do Cruzeiro será sete vezes mais intensa que a dos astros; e aquele que mergulha a mão na água do banho de Jesus para ver se está bem quente; e aquele que sai das nuvens para pousar sua coroa na fronte da virgem; e todos os que, debruçados do alto dos céus entre os balaustres da Jerusalém celeste, erguem os braços de pavor e alegria diante dos suplícios dos malvados e da ventura dos eleitos! Pois são todos os círculos do céu, todo um gigantesco poema teológico e simbólico que o senhor tem ali. É louco, é divino, é mil vezes superior a tudo aquilo que verá na Itália, onde aliás esse tímpano foi literalmente copiado por escultores de muito menor talento. Porque, compreenda, é tudo uma questão de talento. Não houve época em que todo mundo tivesse talento, isso é pura conversa... Seria mais forte que a Idade de Ouro. O sujeito que esculpiu aquela fachada, acredite que era tão forte e tinha ideias tão profundas como as pessoas de hoje a quem o senhor mais admira. Eu lhe mostraria tudo isso, caso fôssemos lá juntos. Há certas palavras do ofício da Assunção que foram traduzidas com uma sutileza que um Odilon Redon não igualou.
Essa ampla visão celestial de que ele me falava, esse gigantesco poeta teológico que eu
compreendia ter sido escrito ali, não foi isso, no entanto, que meus olhos cheios de desejos viram,
ao abrirem-se diante daquela fachada. Eu lhe falava daquelas grandes estátuas de santos que,
erguidas em muletas, formavas uma espécie de avenida.
- Ela parte do fundo das idades para dar em Jesus Cristo - disse-me Elstir, - São, por um
lado, seus ancestrais segundo o espírito; por outro, os reis dos Judeus, seus ancestrais segundo
a carne. Todos os séculos estão ali. E, se o senhor tivesse olhado melhor o que lhe pareceu
serem muletas, teria podido denominar os que se achavam erguidos. Pois, sob os pés de Moisés,
teria percebido o bezerro de ouro; sob os pés de Abraão o carneiro, sob os de José o demônio
aconselhando a mulher de Putifar.
Disse-lhe também que esperara encontrar um monumento quase persa que isto fora sem
dúvida uma das causas de minha decepção.
- Mas há muito de verdade nisso - respondeu ele - Certas partes são visivelmente orientais;
um capitel reproduz tão exatamente um tema persa que a persistência das tradições orientais não
basta para explica-la. O escultor deve ter copiado algum cor e trazido pelos navegadores.
E de fato, ele deveria mais tarde me mostrar a fotografia de um capitel onde vi dragões
meio chineses que se devoravam, mas em Balbec esse detalhe de escultura me passara
despercebido no conjunto do monumento, que em nada se assemelhava ao que me haviam
indicado estas palavras: "igreja persa".
As alegrias intelectuais que desfrutei nesse ateliê não me impediram de forma alguma de
sentir, embora nos envolvessem e contra a vontade nossa, as mornas transparências, a
penumbra cintilante da peça, e, ao fundo da pequena janela enquadrada de madressilvas, na
avenida bem rústica, a resistente secura da terra queimada de sol, velada exclusivamente pela
transparência da distância e a sombra das árvores. Talvez o inconsciente bem-estar que me
causava aquele dia, o verão viesse aumentar, como um afluente, a alegria provocada pela vista
do "Por de Carquethuit".
Julgara Elstir modesto, mas percebi que me enganara ao ver seu rosto Somatizar de
tristeza quando, numa frase de agradecimento, pronunciei a palavra glória. Aqueles que creem
duráveis as suas obras e era esse o caso de Elstir, adquirem o hábito de situa-las numa época em
que eles mesmos não serão mais que pó. E assim, obrigando-os a refletir a cerca do nada, a ideia
da glória os entristece porque é inseparável da ideia da morte. Mudei de assunto para dissipar e
nuvem de altiva melancolia com que eu, sem querer, velara a fronte de Elstir. Tinha me
aconselhado - disse-lhe eu, pensando na conversa que tivéramos Legrandin em Combray e sobre
a qual gostaria de ter a opinião de Elstir - que fosse à Bretanha, porque seria maléfico para um
espírito já inclinado ao sonho.
- Que nada! - respondeu ele. - Quando um espírito já é inclinado ao sonho, não se deve
mantê-lo afastado dele, raciona-lo. Enquanto o senhor desviar o espírito dos sonhos, não saberá
nada sobre eles; o senhor será o joguete de mil aparências porque não terá compreendido a sua
natureza. Se um pouco de sonho é perigoso, o que há de cura-lo não será menos sonho e sim
mais sonho, todo o sonho. É importante conhecer inteiramente os próprios sonhos para não mais
sofrer com eles; há uma certa separação entre o sonho e a vida, tão frequentemente útil de se
fazer que me pergunto se não se deveria, haja o que houver, pratica-la preventivamente, como
certos cirurgiões dizem que é necessário extirpar o apêndice de todas as crianças para evitar a
possibilidade de uma futura apendicite.
Elstir e eu tínhamos ido até o fundo do ateliê, diante da janela que dava, atrás do jardim,
para uma estreita avenida transversal, quase um caminho rústico. Chegáramos até ali para
respirar o ar fresco da tarde mais adiantada. Julgava-me bem distante das moças do pequeno
grupo e, sacrificando de vez a esperança de vê-las, é que eu acabara por ceder aos rogos de
minha avó e fora ver Elstir. Pois nunca se sabe onde está o que procuramos, e muitas vezes
evitamos durante um longo período o lugar para o qual, por outros motivos, todos nos convidam.
Mas não suspeitamos que ali veríamos justamente a criatura em que pensamos. Eu olhava de
maneira vaga o caminho campestre que, exterior ao ateliê, passava bem junto dele mas não
pertencia a Elstir. De súbito, apareceu ali, a passos rápidos, a jovem ciclista do pequeno grupo
com a boina abaixada, sobre os cabelos pretos, para suas faces rechonchudas, seus olhos
alegres e um pouco insistentes; e naquela senda afortunada, milagrosamente repleta de suaves
promessas, eu a vi, debaixo das árvores, lançara Elstir um cumprimento sorridente de amiga,
arco-íris que uniu, para mim, o nosso mundo terreno a regiões que até então julgara inacessíveis.
Ela até se aproximou para estender a mão ao pintor, sem parar, e vi que tinha um sinalzinho no
queixo.
- Conhece esta moça? - perguntei a Elstir, compreendendo que ele me poderia apresentá-la, convidá-la para entrar. E aquele ateliê tranquilo, com seu horizonte rural, encheu-se de um
delicioso acréscimo como ocorre com uma casa onde uma criança já brinca muito e onde além
disso, fica sabendo que, pela generosidade que as belas coisas e as nobres pessoas têm em
aumentar indefinidamente os seus dons, está sendo preparado para ela um magnífico lanche.
Elstir me disse que ela se chamava Albertine Simonet e deu-me também o nome de suas
outras amigas, que lhe descrevi com exatidão suficiente para que ele não hesitasse. Eu cometera
um erro no que tangia à sua posição social, mas não no mesmo sentido que de hábito em Balbec.
Ali eu tomava facilmente por príncipes os filhos de donos de lojas que andavam a cavalo. Desta
vez, situara num ambiente suspeito moças de uma pequena burguesia muito rica, do mundo
industrial e dos negócios. Era o que, antes de tudo, menos me interessava, pois não tinha para
mim o mistério nem do povo nem de uma sociedade como a dos Guermantes. E sem dúvida, se o
brilhante vazio da vida de praia não lhes houvesse conferido um prestígio prévio a meus olhos
deslumbrados, prestígio que não mais perderiam, talvez eu não chegasse a lutar vitoriosamente
contra a ideia de que eram filhas de fortes negociantes. Pude apenas admirar como a burguesia
francesa era um esplêndido ateliê da mais variada escultura. Quantos tipos imprevistos, quanta
invenção nos caracteres das fisionomias, quanta decisão, quanto frescor, quanta simplicidade nos
traços!
Os velhos burgueses avaros de onde haviam brotado essas Dianas e ninfas me pareciam
os maiores estatuários. Antes que tivesse tido tempo de me aperceber da metamorfose social
dessas jovens, e de tal forma essas descobertas de um engano, essas modificações da noção
que se tem de uma pessoa possuem a instantaneidade de uma reação química, já se instalara,
por trás da aparência de um gênero tão vulgar daquelas moças que eu pensara serem amantes
de ciclistas ou de campeões de boxe, a ideia de que elas podiam muito bem estar ligadas à
família de algum tabelião nosso conhecido.
Não sabia absolutamente quem era Albertine Simonet. Ela decerto ignorava o que devia
ser um dia para mim. Mesmo esse nome de Simonet, que eu já ouvira na praia, se me houvessem
pedido que o escrevesse, tê-lo-ia grafado com dois nn, sem saber da importância que aquela
família dava a só possuir um. À medida que se desce na escala social, o esnobismo se apega a
ninharias que talvez não sejam mais nulas que as distinções da aristocracia, mas que, devido a
serem mais obscuras, mais próprias a cada um, surpreendem em maior grau. Talvez tivesse
havido Simonnets que se envolvessem em maus negócios, ou coisa ainda pior. O fato é que os
Simonets, ao que parecia, sempre se irritavam, como diante de uma calúnia, quando lhes
duplicavam o-n. Davam a impressão de serem os únicos Simonet com um ene em vez de dois, e
punham nisso talvez tanto orgulho como os Montmorency de serem os primeiros barões da
França.
Perguntei a Elstir se essas moças moravam em Balbec, e ele me respondeu que sim
quanto a algumas delas. A casa de uma delas estava situada precisamente no extremo da praia,
no ponto em que começavam as falésias de Canapville. Como era essa uma grande amiga de
Albertine Simonet, mais uma razão havia para que eu acreditasse que fora mesmo esta última a
que eu encontrara quando estava com minha avó. Por certo havia tantas ruazinhas
perpendiculares à praia e formando com ela um ângulo semelhante, que eu não poderia
especificar exatamente de qual se tratava. A gente gostaria de ter uma lembrança precisa, mas no
exato momento a visão estivera perturbada.
No entanto, que Albertine e aquela moça que entrava na casa da amiga fossem a mesma
e uma só pessoa, era praticamente uma certeza. Apesar disso, ao passo que as inúmeras
imagens que a segui me apresentou a morena jogadora de golfe, por mais diversas que sejam
umas das outras, se superpõem (pois sei que todas lhe pertencem) e que, se remonto o fio de
minhas lembranças, posso, protegido por essa identidade e como que num carinho de
comunicação interior, recordar todas essas imagens sem sair de uma mesma pessoa; em
compensação, se desejo remontar até a moça pela qual cruzei no dia em que estava com minha
avó, é-me necessário retornar ao ar livre. Estou persuadido de que é Albertine quem encontro, a
mesma que parava muitas vezes, no meio das amigas, naquele passeio, em que suas imagens se
erguiam contra o horizonte do mar.
Mas todas essas imagens continuam separadas daquela outra, pois não lhe posso atribuir,
retrospectivamente, uma identidade que ela não tinha para mim no momento em que
impressionou meu olhar; e, apesar do que possa me garantir o cálculo das probabilidades, aquela
moça de faces gorduchas, que me encarou de modo tão atrevido na esquina da ruazinha e da
praia e pela qual julgo que poderia ter sido amado, no sentido estrito da palavra "rever", essa eu
nunca mais revi.
Minha hesitação entre as diversas moças do pequeno grupo, todas conservando um pouco
do encanto coletivo que me perturbara a princípio, terá se acrescentado igualmente a essas
causas para me deixar depois, mesmo no tempo do meu maior do meu segundo-amor por
Albertine, uma espécie de liberdade intermitente, e muito breve, para não amá-la? Por ter
vagueado entre todas as suas amigas antes de se fixar definitivamente nela, o meu amor
conservou às vezes, entre ele e a imagem de Albertine, certo "dispositivo" que lhe permitia, como
uma iluminação mal adaptada, pousar em outras antes de voltar a se aplicar nela; a relação entre
o mal que sentia no coração e a lembrança de Albertine não me parecia necessária, eu talvez o
pudesse ter relacionado com a imagem de uma outra pessoa. O que me permitia, no luzir de um
raio, fazer desvanecer-se a realidade, não só a realidade exterior, como no meu amor por Gilberte
(que eu havia reconhecido como um estado interior em que extraía de mim apenas a qualidade
particular, o caráter especial da criatura a quem amava, tudo aquilo que a fazia indispensável à
minha felicidade), mas até a realidade interior e puramente subjetiva.
- Não há um só dia que uma ou outra delas não passe diante do ateliê e não dê uma
chegadinha.- disse Elstir, desesperando-me com a ideia de que, se tivesse ido visitá-lo logo que
minha avó pedira, provavelmente há muito já teria conhecido Albertine. Ela se afastara; do ateliê
já não era visível. Pensei que fora juntar-se às amigas no molhe. Se pudesse estar ali com Elstir,
teria travado conhecimento com elas.
Inventei mil pretextos para que anuísse em dar uma volta pela praia comigo. Eu não tinha
mais o mesmo sossego que tivera antes do aparecimento da moça no quadro da janela tão
encantadora até então sob suas madressilvas e agora toda vazia. Elstir me causou uma alegria
mesclada de tortura ao me dizer que daria alguns passos comigo, mas que primeiro era obrigado
a terminar o pedaço que estava pintando. Eram flores, mas não daquelas cujo retrato eu mais
gostaria de lhe encomendar, em vez do de uma pessoa, a fim de saber, pela revelação de seu
gênio, o que tanto havia procurado em vão diante delas-espinheiros brancos, espinheiros cor-de-rosa, escovinhas, flores de macieiras. Pintando, Elstir me falava, mas eu quase não o escutava;
ele já não se bastava a si mesmo, não para o intermediário preciso entre mim e aquelas moças. O
prestígio que seu talento lhe dava a meus olhos ainda há pouco só valia agora na medida em que
atribuía tanto a mim mesmo aos olhos do pequeno grupo ao qual seria apresentado por ele.
Eu ia e vinha, impaciente por vê-lo terminar a pintura; pegava estudos o contemplá-los;
muitos deles, virados contra a parede, estavam empilhados uns sobre os outros. E, assim,
ocorreu-me descobrir uma aquarela que devia pertencer a uma época bem mais antiga da vida de
Elstir e me causou esse tipo específico de encanto proporcionado pelas obras não só de uma
realização deliciosa, mas também de um tema tão singular e sedutor que é a ele que atribuímos
uma parte desse fascínio, como se este o pintor não tivesse feito mais que descobri-lo, observá-lo,
materialmente já efetuado pela natureza, e pronto para ser reproduzido. Que tais objetos possam
existir, belos até fora da interpretação do artista, isto satisfaz em nós um materialismo inato,
combatido pela razão, e serve de contrapeso às abstrações da estética. Essa aquarela era o
retrato de uma mulher jovem, não bonita, mas de um tipo curioso, que usava um boné bem
semelhante a um chapéu-coco, mais do de uma fita de seda cor-de-cereja; uma de suas mãos,
com luvas sem dedo, segurava um cigarro aceso, ao passo que a outra erguia à altura do joelho
uma espécie de chapelão de jardineiro, simples anteparo de palha contra o sol. Ao lado dela, uma
floreira cheia de rosas sobre uma mesa. Muitas vezes, e era o caso aqui, a singularidade dessas
obras decorre sobretudo de terem sido executadas em condições particulares, de que não nos
damos conta com toda a clareza a princípio; por exemplo, se o estranho vestido de um modelo
feminino é um disfarce de baile à fantasia, ou se, pelo contrário, a capa rubra de um velho, que
parece tê-la vestido para atender a um capricho do pintor, é a sua toga de catedrático ou de
conselheira, ou sua murça de cardeal. A natureza ambígua da criatura, cujo retrato eu
contemplava, provinha, sem que eu o compreendesse, de que se tratava de uma jovem atriz de
outros tempos, em meio-travesti. Mas o seu chapéu-coco, sob o qual os cabelos estavam
estufados porém curtos, sua jaqueta de veludo sem lapela, abrindo-se sobre um peitilho branco,
fizeram-me vacilar quanto à data da moda e ao sexo do modelo, de modo que não sabia
exatamente o que tinha diante dos olhos, a não ser que era a mais luminosa das telas de pintura.
E o prazer que ela me proporcionara era perturbado apenas pelo medo de que Elstir, atrasando
se ainda mais, me fizesse esperar, pois o sol já se mostrava oblíquo e bem baixo na janelinha.
Medo de perder as moças, e se representava nessa aquarela estava ali como um fato real, e
pintado devido à sua utilidade para a cena: o vestuário porque era preciso que a dama estivesse
vestida, ou a floreira por causa das flores. O vidro da floreira, armado por ele mesmo, dava a
impressão de encerrar a água onde mergulhavam as hastes cravos em algo tão límpido, quase
tão líquido quanto ela; a roupa da mulher envolvia de uma matéria que tinha um encanto
independente, fraterno, e como se as obras da indústria pudessem rivalizarem encanto com as
maravilhas da natureza, tão delicadas, tão saborosas ao toque do olhar, tão frescamente pintadas
como o pelo de uma gata, as pétalas de um cravo ou as penas de uma pomba. A brancura do
peitilho, de uma finura de granizo, e cuja frívola plissagem tinha campânulas como o lírio-do-vale,
se estrelava de claros reflexos do quarto, eles próprios agudos e finamente matizados como
buquês de flores que houvessem tecido o linho em relevo. E o veludo da jaqueta, brilhante e
nacarado, tinha aqui e ali algo de eriçado, picotado e veloso que dava ideia do desalinho dos
cravos no vaso. Mas sentia-se, acima de tudo, que Elstir, pouco se importando para o que
pudesse apresentar de imoral aquele travesti de uma jovem atriz, para quem o talento com que
interpretaria o papel tinha decerto menos importância que o excitante atrativo que ela ia oferecer
aos sentidos embotados ou depravados de certos espectadores, se prendera ao contrário àqueles
traços de ambiguidade como a um elemento estético que valesse a pena pôr em relevo e que
tudo fizera para ressaltar. Ao longo das linhas do rosto, o sexo parecia a ponto de confessar que
era o de uma moça um tanto viril, depois se esvaía e mais ao longe reaparecia, sugerindo antes a
ideia de um jovem efeminado vicioso e sonhador; depois fugia de novo, ficava inatingível. O
caráter de tristeza sonhadora do olhar, pelo seu mesmo contraste com os acessórios pertencentes
ao mundo da boemia e do teatro, não era o que havia de menos perturbador. Aliás, pensava-se
que devia ser artificial e que a jovem criatura, que parecia se ofertar às carícias nesse vestido
provocante, julgara provavelmente ser picante acrescentar-lhe a expressão romântica de um
sentimento secreto, de um desgosto inconfesso. Embaixo do retrato estava escrito:
"Miss Sacripant, outubro de 1872".
Não pude conter minha admiração.
- Oh, não é nada, é um esboço da mocidade; era uma fantasia para uma revista das
Variedades. Tudo isto está bem distante.
- E que fim levou o modelo?
O espanto causado por minhas palavras antecedeu, no rosto de Elstir, o ar indiferente e
distraído que ele imprimiu após um segundo.
- Olhe, passe-me depressa esse quadro - disse ele - Estou ouvindo a chegada da Sra. Elstir
e, embora a jovem do chapéu-coco não tenha desempenhado, garanto-lhe, nenhum papel na
minha vida, é inútil que minha mulher tenha essa aquarela diante dos olhos. Só guardei isto como
um documento divertido sobre o teatro daquela época.
E, antes de esconder atrás dele a aquarela, Elstir, que certamente não a via há muito, deu
lhe um olhar atento.
- Só vou poder conservar a cabeça. - murmurou - o resto está verdadeiramente mal
pintado, as mãos são de um principiante.
Eu estava desolado com a chegada da Sra. Elstir, que ia nos fazer demorar mais ainda.
Em breve o peitoril da janela se apresentou cor-de-rosa. Nossa saída seria em pura perda. Não
havia mais chance alguma de ver as moças e, por conseguinte, nenhuma importância que a Sra.
Elstir nos deixasse mais cedo ou mais tarde. Aliás, ela não ficou por muito tempo. Achei-a
extremamente aborrecida; poderia ter sido bela se tivesse vinte anos, levando um boi pela
campina romana; mas seus cabelos negros embranqueciam; e ela era vulgar sem ser simples,
pois achava que a solenidade das maneiras e a majestade da atitude eram requisitados por sua
beleza escultural, que aliás havia perdido todos os encantos com a idade. Trajava-se com a maior
simplicidade. E a gente ficava impressionado, mas surpreso, por ouvir Elstir dizer a todo o
instante, e com uma ternura respeitosa como se apenas o fato de pronunciar tais palavras lhe
causasse ternura e veneração:
"Minha bela Gabrielle''
Mais tarde, quando conheci a pintura mitológica de Elstir, a Sra. Elstir também adquiriu, a
meu ver, uma certa beleza. Compreendi que o pintor atribuíra de fato um caráter quase divino a
um determinado tipo de ideal, resumido em certas linhas, certos arabescos que se encontravam a
cada passo em sua obra, a certos cânones, visto que todo o tempo disponível, todo esforço de
pensamento de que era capaz, em uma palavra, toda a sua vida, ele a consagrara à tarefa de
distinguir melhores suas linhas e de reproduzi-las com a maior fidelidade. Semelhante ideal
inspirava a Elstir um culto na verdade tão grave, tão exigente, que não lhe permitia jamais sentir
se satisfeito: era a parte mais íntima de si mesmo, de forma que não o pudera encarar com
distanciamento e dele extrair emoções, até o dia em que o encontrou realizado exteriormente no
corpo de uma mulher, no corpo daquela que em seguida se tornou a Sra. Elstir e no qual pudera
como o que só nos é possível com o que não é nossa própria pessoa - julgá-lo meritório,
comovente, divino. Além disso, que descanso pousar os lábios naquela beleza que até então
tinha de extrair de si mesmo com tanto esforço e que agora, misteriosamente encarnada, se
ofertava a ele para uma série de eficazes comunhões!
Naquela ocasião, Elstir já não estava mais na primeira juventude, quando se espera a
realização do ideal apenas com a força do pensamento. Aproximava-se da idade em que
contamos com as satisfações do corpo para estimular a força do espírito, em que a fadiga deste,
inclinando-nos ao materialismo, e a diminuição da atividade à possibilidade de influências
passivamente recebidas, começam a nos fazer admitir que talvez haja certos corpos, certos
ofícios, certos ritmos privilegiados realizando com tanta naturalidade o nosso ideal, que, mesmo
sem gênio, apenas copiando o movimento de uma espádua, a tensão de um pescoço, faríamos
uma obra-prima; é a idade em que nos agrada acariciar a beleza do olhar fora de nós, junto a nós,
num belo esboço de Ticiano descoberto num antiquário, numa amante que é tão bela como o
esboço de Ticiano. Quando compreendi isto, já pude ver a Sra. Elstir com prazer, e seu corpo
deixou de ser pesado, pois enchi-o de uma ideia, a ideia de que ela era uma criatura imaterial, um
retrato de Elstir. Ela o era para mim e, sem dúvida, também para ele. Os dados reais da vida não
contam para o artista; para ele não passam de uma ocasião para evidenciar o seu gênio. Ao ver,
lado a lado, dez retratos de pessoas diversas pintados por Elstir, sente-se perfeitamente que são
sobretudo Elstirs. Unicamente, depois dessa maré montante do gênio que recobre a vida, quando
o cérebro se cansa, o equilíbrio pouco a pouco se rompe e, como um rio que retoma o curso após
o contra-fluxo de uma maré intensa, é a vida que retoma o predomínio. Ora, enquanto durava o
primeiro período, o artista foi aos poucos deduzindo a lei, a fórmula de seu dom inconsciente.
Conhece que situações, se é romancista, que paisagens, se é pintor, lhe fornecem a matéria,
indiferente em si, mas necessária às suas pesquisas como o seria um laboratório ou um ateliê.
Sabe que fez suas obras-primas com efeitos de meia-luz, com remorsos que modificam a ideia de
uma culpa, com mulheres assentadas sob as árvores ou meio mergulhadas na água como
estátuas. Dia virá em que, pelo desgaste do cérebro, já não terá, diante desses materiais de que
seu gênio se aproveitava, a força de cumprir o esforço intelectual necessário e único para produzir
a obra; no entanto, continuará a procurá-los, feliz por se achar junto a eles devido ao prazer
espiritual que despertam nele e que convida ao trabalho; e, além disso, cercando-os de uma
espécie de superstição, como se fossem superiores a qualquer outra coisa, como se neles já
residisse uma boa parte da obra artística que de alguma forma trariam bem acabada, não irá além
de frequentar e adorar seus modelos. Conversará indefinidamente com criminosos arrependidos,
cujos remorsos e regeneração lhe valeram outrora para assunto de seus romances; comprará
uma casa de campo numa terra em que a névoa atenua a luz; passará longas horas olhando as
mulheres a se banharem; colecionará belos tecidos. E assim a beleza da vida, palavra de algum
modo desprovida de sentido, ponto situado aquém da arte e onde eu vira que Swann estacionava,
era o lugar ao qual, pelo esmorecimento do gênio criador, por idolatria das formas que o tinham
favorecido, por desejo de menor esforço, Elstir devia um dia ir retrocedendo aos poucos.
continua na página 185...
________________
Leia também:
Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - r)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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