sexta-feira, 25 de abril de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Quinto - Para Caçada Tenebrosa Matilha Silenciosa / VIII - Complica-se o enigma

Victor Hugo - Os Miseráveis

Segunda Parte - Cosette

Livro Quinto — Para Caçada Tenebrosa Matilha Silenciosa

VIII - Complica-se o enigma
     
     Deitada no chão, com a cabeça sobre uma pedra, a criança adormecera. Jean Valjean sentou-se ao lado dela e pôs-se a contemplá-la. 
     A pouco e pouco, à medida que observava, sentia-se mais tranquilo e readquiriu a liberdade do espírito.
     Notou-se então distintamente esta verdade: que o fundo da sua vida, dali em diante, enquanto existisse aquela criança, enquanto a tivesse junto de si, não teria necessidades senão para ela, não temeria coisa alguma senão por sua causa. Tendo despido a sobrecasaca para cobri-la, nem mesmo sentia que estava gelado de frio. 
     Entretanto, e através da meditação a que estava entregue, ouvia, desde algum tempo, um ruído singular.
     Era como o som de um guizo; este ruído par a do jardim e, ainda que fraco, ouvia-se distintamente. Assemelhava-se ao tinir constante que, durante a noite, se ouve nas vizinhanças de um redil.
      Jean Valjean voltou-se, olhou e viu que andava alguém no quintal. Pelo centro do meloal caminhava um ente que parecia ser um homem, levantando-se, baixando-se e parando, com movimentos regulares, como se estivesse estendendo ou arrastando alguma coisa pelo chão. Quem quer que era parecia coxear.
      Jean Valjean sentiu-se agitado pelo estremecimento contínuo dos desgraçados, a quem tudo se torna suspeito. Desconfiam do dia porque ajuda a que os vejam, e da noite porque contribui para que os surpreendam. Havia pouco tremia com a ideia de que o quintal fosse deserto, depois estremecia por ver que nele havia alguém.
     Dos terrores quiméricos caiu nos terrores reais. Pensou consigo mesmo que Javert e os beleguins não se tinham talvez retirado, que sem dúvida haviam deixado sentinelas na rua; que se aquele homem o descobrisse no quintal, julgá-lo-ia ladrão, pediria socorro e entregá-lo-ia. Em seguida tomou cuidadosamente Cosette nos braços, mesmo adormecida, e levou-a para trás de um montão de móveis velhos e desmantelados, que estava no canto mais recôndito da barraca. Cosette não fez o menor movimento. Dali pôs-se a observar o aspecto da criatura que andava no meloal.
     O que parecia extravagante era que o tinir do guizo acompanhava todos os movimentos do homem. Quando este se aproximava, aproximava-se também o som do guizo, e se ele se afastava levava-o consigo; se fazia algum movimento mais precipitado, o guizo acompanhava-o com um som trêmulo, e quando parava cessava o ruído.
      Parecia evidente que o guizo estava preso àquele homem; mas sendo assim o que podia aquilo significar? O que era aquele homem, que trazia um guizo pendente como se fora um carneiro? 
     Jean Valjean, mesmo fazendo estas reflexões, tocou nas mãos de Cosette e sentiu-as geladas.

— Valha-me Deus! — disse ele. E chamou em voz baixa: — Cosette!

 «Estará morta?» pensou ele; e ergueu-se, tremendo como varas verdes.

     Então atravessaram-lhe o espírito, em medonho turbilhão, as ideias mais medonhas. Há momentos em que somos assaltados por toda a espécie de Ideias hediondas, ideias que nos penetram violentamente no cérebro, qual multidão de fúrias. Quando se trata daqueles que amamos, a nossa prudência inventa toda a espécie de loucuras.
     Jean Valjean lembrou-se de que o sono ao relento pode ser mortal numa noite fria. 
     Cosette, extremamente pálida, tornara a cair no chão, depois dele a ter sacudido, sem fazer o mínimo movimento.
     Chegou-lhe o ouvido ao rosto e ouviu-lhe a respiração, mas tão fraca que parecia próxima a extinguir-se. Como a aqueceria? Como conseguiria acordá-la?
     Tudo o que não era isto se lhe apagou do pensamento; em seguida precipitou-se desorientado para fora do pardieiro.
     Era absolutamente indispensável que antes de um quarto de hora, Cosette estivesse numa cama, e próxima de um bom lume.

continua na página 357...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Quinto - VIII - Complica-se o enigma
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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