Segunda Parte - Cosette
Livro Quinto — Para Caçada Tenebrosa Matilha Silenciosa
VIII - Complica-se o enigma
Deitada no chão, com a cabeça sobre uma pedra, a criança adormecera. Jean Valjean
sentou-se ao lado dela e pôs-se a contemplá-la.
A pouco e pouco, à medida que observava, sentia-se mais tranquilo e readquiriu a
liberdade do espírito.
Notou-se então distintamente esta verdade: que o fundo da sua vida, dali em diante,
enquanto existisse aquela criança, enquanto a tivesse junto de si, não teria necessidades
senão para ela, não temeria coisa alguma senão por sua causa. Tendo despido a
sobrecasaca para cobri-la, nem mesmo sentia que estava gelado de frio.
Entretanto, e através da meditação a que estava entregue, ouvia, desde algum tempo,
um ruído singular.
Era como o som de um guizo; este ruído par a do jardim e, ainda que fraco, ouvia-se
distintamente. Assemelhava-se ao tinir constante que, durante a noite, se ouve nas
vizinhanças de um redil.
Jean Valjean voltou-se, olhou e viu que andava alguém no quintal. Pelo centro do
meloal caminhava um ente que parecia ser um homem, levantando-se, baixando-se e
parando, com movimentos regulares, como se estivesse estendendo ou arrastando
alguma coisa pelo chão. Quem quer que era parecia coxear.
Jean Valjean sentiu-se agitado pelo estremecimento contínuo dos desgraçados, a
quem tudo se torna suspeito. Desconfiam do dia porque ajuda a que os vejam, e da
noite porque contribui para que os surpreendam. Havia pouco tremia com a ideia de que
o quintal fosse deserto, depois estremecia por ver que nele havia alguém.
Dos terrores quiméricos caiu nos terrores reais. Pensou consigo mesmo que Javert e os
beleguins não se tinham talvez retirado, que sem dúvida haviam deixado sentinelas na
rua; que se aquele homem o descobrisse no quintal, julgá-lo-ia ladrão, pediria socorro e
entregá-lo-ia. Em seguida tomou cuidadosamente Cosette nos braços, mesmo
adormecida, e levou-a para trás de um montão de móveis velhos e desmantelados, que
estava no canto mais recôndito da barraca. Cosette não fez o menor movimento. Dali
pôs-se a observar o aspecto da criatura que andava no meloal.
O que parecia extravagante era que o tinir do guizo acompanhava todos os
movimentos do homem. Quando este se aproximava, aproximava-se também o som do
guizo, e se ele se afastava levava-o consigo; se fazia algum movimento mais precipitado,
o guizo acompanhava-o com um som trêmulo, e quando parava cessava o ruído.
Parecia evidente que o guizo estava preso àquele homem; mas sendo assim o que
podia aquilo significar? O que era aquele homem, que trazia um guizo pendente como se
fora um carneiro?
Jean Valjean, mesmo fazendo estas reflexões, tocou nas mãos de Cosette e sentiu-as
geladas.
— Valha-me Deus! — disse ele. E chamou em voz baixa: — Cosette!
«Estará morta?» pensou ele; e ergueu-se, tremendo como varas verdes.
Então atravessaram-lhe o espírito, em medonho turbilhão, as ideias mais medonhas.
Há momentos em que somos assaltados por toda a espécie de Ideias hediondas, ideias
que nos penetram violentamente no cérebro, qual multidão de fúrias. Quando se trata
daqueles que amamos, a nossa prudência inventa toda a espécie de loucuras.
Jean Valjean lembrou-se de que o sono ao relento pode ser mortal numa noite fria.
Cosette, extremamente pálida, tornara a cair no chão, depois dele a ter sacudido, sem
fazer o mínimo movimento.
Chegou-lhe o ouvido ao rosto e ouviu-lhe a respiração, mas tão fraca que parecia
próxima a extinguir-se. Como a aqueceria? Como conseguiria acordá-la?
Tudo o que não era isto se lhe apagou do pensamento; em seguida precipitou-se
desorientado para fora do pardieiro.
Era absolutamente indispensável que antes de um quarto de hora, Cosette estivesse
numa cama, e próxima de um bom lume.
continua na página 357...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Quinto - VIII - Complica-se o enigma
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira
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