em busca do tempo perdido
volume II
À Sombra das Moças em Flor
Segunda Parte
Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar
(l)
continuando...
O Sr. Bloch pai, que só conhecia Bergotte de longe, e a sua vida só ouvira contar de voz pública, tinha uma forma também muito indireta de tomar conhecimento de sua obra, com o auxílio de julgamentos aparentemente literários. Vi no mundo do mais ou menos, onde se saúda no vazio e se julga em falso, a imprecisão e a incompetência não diminuem a autossuficiência; pelo contrário é um milagre benéfico do amor-próprio que, como pouca gente pode ter amizades importantes e profundo conhecimento, faz com que pessoas a quem faltara coisas se julguem ainda as mais favorecidas, pois a ótica das escalas sociais todos a supõem que a melhor posição é a que ocupam; portanto, acham, menos favorecidos, menos aquinhoados, dignos de compaixão, os superiores a quem nomeiam e caluniam sem conhecer, e julgam e desprezam por não compreendê-los; e, mesmo nos casos em que a multiplicação das poucas vantagens pessoais pelo amor-próprio não bastaria para assegurar a cada um a dose de felicidade, superior à concedida aos outros, e que lhe é necessária, a inveja comparecer para preencher a diferença. É verdade que, se a inveja se exprime em frases desdenhosas, é mister traduzi-las: "Não quero conhecê-lo" por "Não posso conhecê-lo". É este o sentido intelectual, mas o sentido passional da frase é, de fato: "Não quero conhecê-lo". Sabe-se que isto não é verdade e, no entanto, não é dito por simples artifício, e sim porque desse modo é sentido, e basta isso para suprimir a distância, ou seja, para tornar feliz.
O egocentrismo, permitindo que todo ser humano veja o universo a seus pés, leva-o a ser
um rei. O Sr. Bloch dava-se ao luxo de ser um rei implacável quando, de manhã, tomando sua
taça de chocolate, vendo a assinatura de Bergotte no fim de um artigo no jornal mal entreaberto,
lhe concedia com desdém uma breve audiência, pronunciava sua sentença e se outorgava o
confortável prazer de repetir, depois de cada gole da bebida fervente:
"Este Bergotte se tornou ilegível. Como pode ser tão aborrecido! Vou cancelar a
assinatura. Nada mais enfeitado que essa obra de confeitaria!"
E pegava outra fatia de pão com manteiga.
Essa importância ilusória do Sr. Bloch pai se estendia, aliás, um pouco além do círculo de
sua própria percepção. Em primeiro lugar, os filhos o consideravam um homem superior. Os filhos
têm sempre uma tendência, seja a depreciar, seja a exaltar os pais; e, para um bom filho, seu pai
é sempre o melhor dos pais, mesmo sem contar todas as razões objetivas para admirá-lo. E
razões bastantes havia no caso do Sr. Bloch, que era instruído, fino, afetuoso com os seus. Entre
os parentes mais próximos, todos achavam agradável o seu convívio, pois, embora a sociedade
julgue as pessoas conforme um padrão, aliás absurdo, e de acordo com regras falsas porém fixas,
e em comparação com a totalidade das outras pessoas elegantes, em compensação, na vida
fragmentada dos burgueses, os jantares e saraus em família giram em torno de personalidades
declaradas agradáveis, divertidas, e que, nas rodas elegantes, não ficariam duas noites em
cartaz. Enfim, nesse ambiente em que as grandezas artificiais da aristocracia inexistem, elas são
substituídas por distinções ainda mais desvairadas. Assim e que, na sua família e mesmo num
grau de parentesco bastante afastado, todos chamavam o pai do meu camarada de "falso duque
de Aumale", devido a uma pretensa identidade no formato do nariz e no feitio do bigode. (No
mundo dos moços de recado de um clube, se acontece a um deles usar o gorro de lado e a
jaqueta bem justa de modo a se parecer, segundo julga, com um oficial estrangeiro, não é para
seus companheiros uma celebridade?) A semelhança era das mais vagas, mas os outros diriam
que se tratava de um título. Repetiam:
"Bloch? Qual? O duque de Aumale?" como se dissessem: "A princesa Murat? Qual? A
rainha de Nápoles?" Um certo número de indícios ínfimos acabavam de lhe dar, aos olhos da
parentela, uma pretensa distinção. Embora não chegasse a ter uma carruagem, o Sr. Bloch
alugava em determinados eventos uma vitória descoberta tirada por dois cavalos, na Companhia
de Transportes e atravessava o Bois de Boulogne languidamente estendido no veículo, a cabeça
apoiada na mão, de forma que dois dedos tocassem a têmpora e outros ficassem sob o queixo; e,
se as pessoas que não o conheciam o tomassem por pretensioso ao vê-lo assim, todos na família
estavam convencidos de que, era assunto de coisas chiques, o tio Salomon teria podido dar lições
a Gramottt Caderousse. Era dessas pessoas que, quando morrem, e por terem muitas vezes
sentado à mesa do redator-chefe de O Radical, num restaurante das alamedas, são consideradas
"figuras bem conhecidas dos parisienses" pela crônica social de jantar na mesma folha. O Sr.
Bloch disse-nos, a mim e a Saint-Loup, que Bergotte sabia muito bem por que ele, Bloch, não o
cumprimentava, que Bergotte evitava olhá-lo quando o via no teatro ou no clube. Saint-Loup
enrubesceu, pois pensara que no clube não podia ser o Jockey, do qual seu pai fora presidente,
conquanto deveria ser um clube relativamente fechado, pois o Sr. Bloch havia dito que Bergotte ali
seria mais recebido agora. Assim, com medo de "subestimar o adversário", foi que Saint-Loup
perguntou se aquele clube era o da rua Royale, considerado como "desqualificador" por sua
família, e onde sabia que eram recebidos alguns judeus.
- Não. - respondeu com ar negligente o Sr. Bloch, entre orgulhoso e envergonhada é um
pequeno clube, mas muito mais agradável, o Clube dos Palermas. Ali se junta com muita
severidade a galeria.
- O presidente não é o Sr. Rufus Israel? - perguntou Bloch filho ao pai, para lhe
proporcionar a ocasião de uma mentira honrosa e se dar conta de que esse financista não tinha o
mesmo prestígio para Saint-Loup que para ele. Na realidade, não era Sir Rufus Israel quem fazia
parte do Clube Palermas, e sim um de seus empregados. Mas, como esse empregado tinha
excelentes relações com o patrão, dispunha dos cartões do grande financistas, e dava um ao Sr.
Bloch quando este precisava viajar em algumas das linhas férreas, que Sir Rufus era
administrador; assim é que o pai Bloch dizia:
- Vou passar no clube para pedir uma recomendação de Sir Rufus. - E aquele cartão
poderia deixar deslumbrados os chefes de trem. As Srtas. Bloch estavam mais interessadas em
Bergotte e, voltando a ele ao invés de continuarem no tema dos "Palermas''. A caçula indagou ao
irmão, no tom mais sério do mundo, pois achava que designar pessoas de talento, não existiam
outras expressões senão as que empregava:
- É mesmo um sujeito formidável esse Bergotte? É da categoria caras de primeira, como
Villiers ou Catulle?
- Vi-o muitas vezes entre as estrelas - o Sr. Nissim Bernard. - É canhoto, é uma espécie de
Schlemihl.
Essa alusão à novela de Chamisso nada tinha de grave, mas o epíteto de Schlemihl fazia
desse dialeto semi-alemão, semi-judeu, cujo emprego encantava o Sr. Blotch intimidade, mas este
o julgava deslocado e vulgar diante de estranhos. De modo que lançou um olhar severo ao tio.
- Sim, tem talento. - disse Bloch.
-Ah! - disse gravemente a irmã, como se desse a entender que nesse caso era
desculpável a minha admiração.
-Todos os escritores têm talento. - comentou o pai Bloch com desprezo.
- Parece até que vai se candidatar à Academia - disse o filho erguendo o garfo e piscando
o olho com ar diabolicamente irônico.
- Ora, ora, ele não tem bagagem suficiente. Falta-lhe o calibre necessário. - respondeu o
Sr. Bloch, que parecia não sentir pela Academia o desprezo do filho e das filhas. -Além disso, a
Academia é um salão aristocrático e Bergotte não tem brilho algum declarou o tio Bernard, sujeito
rico e herança futura da Sra. Bloch, pessoa inofensiva e doce, cujo nome de Bernard teria por si
só despertado os dons de diagnóstico de meu avô, nome aliás que não estava à altura daquele
rosto que parecia ter sido arrancado do palácio de Dario e reconstituído pela Sra. Dieulafoy, se, no
caso de ser escolhido por algum amador desejoso de dar um remate oriental a essa figura de
Susa, o nome de Nissim não tivesse estendido sobre sua pessoa as asas de algum touro
androcéfalo de Khorsabad.
Porém o Sr. Bloch não cessava de insultar o tio, fosse porque o irritava a bonacheirice
indefesa de sua vítima, fosse porque, sendo a villa de Balbec paga pelo Sr. Nissim Bernard,
quisesse mostrar que conservava sua independência e, sobretudo, que não procurava garantir
com bajulações a futura herança do ricaço. Este sentia-se constrangido principalmente por se ver
tratado de modo tão grosseiro diante do mordomo. Murmurou uma frase ininteligível onde apenas
se entendia:
"Quando os Mexores estão presentes." O termo Mexores designa na Bíblia os servos de
Deus. Os Bloch se serviam desse nome para designar os criados e se divertiam com a certeza de
não serem compreendidos pelos cristãos e pelos próprios criados, e assim se exaltava nas
pessoas dos Srs. Nissim Bernard e Bloch a sua dupla particularidade de "patrões" e "judeus". Mas
este último motivo de satisfação se transformava em descontentamento na presença de
estranhos. Então o Sr. Bloch, ouvindo o tio dizer "Mexores", imaginava que revelara demais o seu
lado oriental, assim como uma cocote, que convida para uma reunião suas colegas
acompanhadas de pessoas distintas, se irrita se elas aludem ao ofício que lhes é comum ou
empregam frases pesadas. De modo que a súplica do tio não só não produziu efeito algum sobre
o Sr. Bloch, como este, fora de si, não pôde mais se conter. Não perdeu a oportunidade de injuriar
o pobre Nissim.
- Na verdade, quando há uma asneira pretensiosa para dizer, pode-se ter certeza que o
senhor não deixará de soltá-la, não é?
- E seria o primeiro a lamber os pés de Bergotte se ele estivesse aqui! - gritou o Sr. Bloch,
enquanto o Sr. Nissim Bernard, mortificado, inclinava para o prato sua barba anelada de rei
Sargão. Meu colega Bloch, desde que deixara crescer a barba, que também era crespa e azulada,
parecia-se muito ao tio-avô.
- Como? O senhor é filho do marquês de Marsantes? Conheci-o muito bem -, disse o Sr.
Nissim Bernard a Saint-Loup. Julguei que dizia "conheci-o" no sentido em que o pai Bloch
afirmava que conhecia Bergotte, isto é, de vista. Mas ele acrescentou: - Seu pai era um dos meus
bons amigos. - Entretanto Bloch ficara muito vermelho, seu pai se mostrava bastante contrariado,
as senhoritas sufocavam o riso. É que, no Sr. Nissim Bernard, o gosto pela ostentação contido no
Sr. Bloch pai e nos seus filhos, chegara a criar o hábito da mentira permanente. Por exemplo, em
viagem, quando se hospedava num hotel, o Sr. Nissim Bernard como o teria feito o Sr. Bloch pai,
mandava que o criado lhe trouxesse todos os jornais à sala de jantar, em pleno almoço, quando
todos estavam reunidos, para que vissem bem que viajava com um criado de quarto. Mas, aos
hóspedes do hotel era ele quem travava amizade, dizia o tio uma coisa que o sobrinho jamais
diria: senador. Sabia perfeitamente que acabariam descobrindo que usurpara o título; no entanto,
era-lhe impossível, naquele instante, resistir à necessidade de intitular-se senador. O Sr. Bloch
sofria muito com as mentiras do tio e os aborrecimentos que lhe causavam.
- Não lhe dê atenção, é muito amigo de lorotas -, disse ele a meia voz à Saint-Loup, que se
interessou ainda mais pelo velho, pois sentia curiosidade pela psicologia dos mentirosos. - Mais mentiroso ainda que o itacense Odisseus, no entanto, Atena denominava o maior
mentiroso dos homens - completou nosso companheiro Bloch.
- Ah! Por exemplo! - exclamou o Sr. Nissim Bernard - diria que eu haveria de jantar com o
filho de meu amigo! Na minha casa, em Paris tenho uma fotografia do senhor seu pai e muitas
cartas dele. Ele sempre me chamava "meu tio", nunca soube por quê. Era um homem encantador,
deslumbrante. Lembro-me de um jantar em minha casa, em Nice, onde compareceram Sardoy-
Labiche, Augier...
- Moliere, Racine, Comeille - continuou ironicamente o Sr. Bloch, pai, cujo filho terminou a
enumeração, acrescentando:
- Plauto, Menandro, Calidasaa - O Sr. Nissim Bernard, ofendido, interrompeu bruscamente
a narrativa e, privando asceticamente de um grande prazer, permaneceu mudo até o fim do jantar.
- Saint-Loup, do bronze de capacete - disse Bloch-, coma mais um pouco deste pato de
gordurosas coxas, sobre as quais o ilustre sacrificador derramou numerosas libações de vinho
tinto.
Geralmente o Sr. Bloch, depois de tirar do fundo da gaveta para um companheiro notável
do filho as anedotas relativas sobre Sir Rufus Israel e outros, percebendo que o filho estava já
satisfeito e comovido, retirava-se da conversa para se "rebaixar" aos olhos do estudante.
Entretanto, se havia um motivo especial como, por exemplo, quando seu filho foi aprovado no
exame de agrégation, o Bloch acrescentava à série costumeira de anedotas esta reflexão
reservada de preferência aos amigos íntimos, de que o jovem Bloch se mostrou extremamente
orgulhoso por vê-la trazida à luz para seus amigos:
- O Governo mostrou-se imperdível. Não consultou o Sr. Coquelin! O Sr. Coquelin fez
saber que está muito descontente. (Pois o pai de Bloch se fazia de reacionário e aparentava
desprezo pessoas de teatro.)
Mas as senhoritas Bloch e seu irmão enrubesceram até as orelhas de emoção, quando
Bloch pai, para se mostrar sinceramente régio para com os companheiros do filho, mandou trazer
champanha e anunciou, como quem não quer nada, que, para nos regalar, adquirira três poltronas
de primeira para a representação que uma companhia de operetas dava aquela mesma noite no
cassino. Lamentava não ter conseguido camarote. Estavam todos reservados. Além disso, sabia
por experiência própria que ficariam melhor perto da orquestra. Unicamente, se o defeito do filho,
isto é, que seu filho julgava invisível aos outros, era a grosseria, o do pai era a avareza. Assim,
serviu numa jarra o que chamava de champanha e não passava de um vinhozinho espumante; e
as poltronas de primeira se transformaram de fato em assentos comuns da plateia que custavam
a metade; e, milagrosamente convencido pela intervenção divina de seu defeito, achava que nem
à mesa nem no teatro (onde todos os camarotes estavam vazios) nenhum de nós perceberia a
diferença. Quando o Sr. Bloch nos deixou molhar os lábios nas taças de champanha que o filho
adornara com o apelido de "crateras de flancos profundamente abertos", nos fez admirar um
quadro que apreciava tanto que o trouxera consigo a Balbec. Disse que era um Rubens. Saint
Loup, ingenuamente, perguntou se estava assinado. O Sr. Bloch respondeu, enrubescendo, que
mandara cortar a assinatura do pintor por causa do encaixe da moldura, o que aliás não tinha
importância, visto que não desejava vendê-lo. E logo se despediu de nós para mergulhar na
leitura do Diário Oficial, cujos números enchiam a casa e cuja leitura lhe era necessária, disse
nos, "por causa de sua situação parlamentar", e de cuja natureza não nos deu explicações.
- Vou pegar um lenço para o pescoço - disse Bloch, pois Zéfiro e Bóreas lutam
furiosamente pelo mar piscoso, e por pouco que nos atrasemos após o espetáculo, só voltaremos
aos primeiros clarões de Eos, a de dedos cor de púrpura.
- A propósito - perguntou a Saint-Loup quando saímos (e eu tremia, pois compreendi logo
que era do Sr. de Charles que Bloch falava em tom irônico) quem é aquele excelente fantoche, de
roupa escura, com quem você passeava pela praia anteontem de manhã?
- Meu tio - respondeu Saint-Loup irrita.
Infelizmente, uma gafe era algo que Bloch nem sonhava impedir. Torceu-se de riso:
- Meus cumprimentos, deveria ter adivinhado; é muito chique; tem uma impagável cara de
bobo da mais alta linhagem.
- Você se engana de ponta a ponta. - retrucou Saint-Loup furioso -; ele é muito inteligente. - - Lamento-o, pois então é menos completo. De resto, gostaria muito de conhecê-lo; estou certo
que escreveria coisas adequadas sobre esse tipo de gente. Quanto a ele, só o vê-lo passar é de
morrer de riso. Mas deixaria de lado a parte caricata, no fundo bem desprezível para um artista
apaixonado pela beleza plástica das frases, dessa cara ridícula, desculpe, que me fez rir a
bandeiras despregadas, e poria em destaque o lado aristocrático de seu tio, que em suma produz
um efeito incrível, e, passado o primeiro instante de riso, impressiona pelo grande estilo. Porém
continuou, desta vez dirigindo-se a mim o que eu desejava lhe perguntar era algo inteiramente
diverso, e, sempre que nos encontramos, algum deus, venturoso habitante do Olimpo, me varre
da cabeça a ideia, e esqueço totalmente de pedir essa informação que já teria podido ser certa
ainda me será útil. Quem é aquela senhora tão bonita com quem o encontrara no Jardim da
Aclimação e que estava acompanhada de um senhor que julgo conhecer de vista, e de uma
mocinha de cabelos compridos?
Naquela ocasião, eu não havia percebido que a Sra. Swann não se lembrara do nome de
Bloch, visto que dissera um outro nome e havia caracterizado o meu companheiro como adidos
ao ministério, dado esse que jamais pensei em verificar se era exato. Mas como era Bloch, que,
segundo a Sra. Swann me dissera então, se fizera apresentar a ela, podia ignorar seu nome?
Fiquei tão espantado que estive um momento sem responder.
- De qualquer maneira, meus parabéns - disse Bloch ; certamente não se aborrece com
ela. Eu a encontrara alguns dias antes no trem do Contorno. Ela houve por bem ser amável com
este seu criado aqui; nunca passei tão bons momentos; e já estamos combinando tudo para um
novo encontro, quando alguém que ela conhece teve o mau gosto de subir para o nosso
compartimento na antepenúltima estação.
Meu silêncio parece não ter sido muito agradável a Bloch.
- Graças a você, esperava obter o endereço dela e ir gozar, várias vezes por semana, em
sua casa os prazeres de Eros, grato aos deuses. Mas não insisto, pois queres bancar o discreto
quanto a uma profissional, que se entregou a mim três vezes seguidas e de modo refinadíssimo,
entre Paris e o Point-du-Jour. Hei de encontrá-la uma noite dessas.
Fui visitar Bloch depois desse jantar, e ele me fez também uma visita também, só que eu
havia saído e, perguntando por mim no hotel, foi avistado por Françoise que, por acaso, nunca o
vira até então, embora ele tivesse ido muitas vezes a Combray. De modo que ela sabia apenas
que "um dos senhores" que eu conhecia havia passado para me ver, ignorando "com que
objetivo", vestido de forma comum e sem causar maior impressão. Por mais que soubesse que
certas ideias sociais de Françoise seriam sempre impenetráveis para mim, pois talvez se
baseassem, em parte, nas confusões que fazia entre palavras ou nomes que trocava sempre, que
pude evitar, eu que há muito deixara de me preocupar com esse tipo de coisa perguntar a mim
mesmo, aliás em vão, que coisa enorme o nome de Bloch poderia significar para Françoise. Pois
mal lhe disse que aquele rapaz que avistara era o Sr.Bloch, ela recuou alguns passos, tão grande
tinham sido seu espanto e sua admiração.
- Como, aquilo é que é o Sr. Bloch! - exclamou com ar apavorado, como, uma
personalidade de tanto prestígio devesse ter uma aparência que "deste conhecer" de imediato a
presença de um grande homem; e, como alguém um personagem histórico não está à altura de
sua fama, ela repetia, num tom impressionado que revelava germes de um ceticismo universal:
- Como, é aqui Sr. Bloch! Ah, na verdade ninguém diria ao vê-lo! -Dava a impressão de me
guardar rancor como se eu tivesse "falsificado" Bloch. No entanto, teve a bondade de acrescentar: - Pois bem, por mais Sr. Bloch que ele seja, o senhor pode estar certo que não é tão distinto
quanto ele.
Em breve, a respeito de Saint-Loup a quem adorava, teve uma desilusão de outra espécie,
e que durou menos: descobriu que era republicano. Ora, ainda que, ao falar por exemplo da
rainha de Portugal, dissesse: "Amélia, a irmã de Filipe", com o desrespeito que, para o povo, é o
maior respeito, Françoise era monarquista. Mas que, acima de tudo, um marquês, e um marquês
que a deixara deslumbrada, fosse republicano, isso para ela era algo inconcebível. E a punha de
mau humor, exatamente como se eu lhe houvesse feito presente de uma caixa supostamente de
ouro e que ela a seguir, depois de me haver agradecido com efusão, descobrisse, por meio de um
joalheiro, que era apenas folheada. Retirou sua estima a Saint-Loup, porém logo voltou a
concedê-la, pois refletiu que ele, sendo marquês de Saint-Loup, não podia ser republicano, estava
apenas fingindo, por interesse, pois, com o governo atual, assim tiraria maior proveito. Desde
então cessaram a sua frieza em relação a ele e o seu despeito para comigo. E, quando falava de
Saint-Loup, dizia:
"É um hipócrita" com um grande e generoso sorriso que dava a entender que o
"considerava" de novo tanto quanto no primeiro dia, e que o havia perdoado.
Ora, pelo contrário, a sinceridade e o desinteresse de Saint-Loup eram absolutos; e era
essa grande pureza moral que, não podendo satisfazer-se inteiramente em um sentimento egoísta
como o amor, e que, por outro lado, não se achava na impossibilidade, como, por exemplo,
ocorria comigo, de encontrar alimento espiritual fora de si próprio, tornava-o verdadeiramente
capaz de amizade, tanto quanto eu era incapaz desse sentimento.
Françoise também se enganava sobre Saint-Loup quando dizia que ele dava impressão de
não desdenhar o povo, mas que aquilo não era verdade, e bastava vê-lo quando se encolerizava
com o seu cocheiro. De fato, ocorrera às vezes a Robert ralhar asperamente com ele, coisa que,
no seu caso, indicava antes o sentimento de igualdade que de diferença entre as classes. - Mas
disse-me em resposta às censuras que lhe fiz por ter tratado o cocheiro com certa rudeza - por
que motivo irei fingir cortesia com ele? Não é meu igual? Não está à mesma distância de mim que
meus tios e primos? Você parece achar que eu deveria tratá-lo com considerações, como se fosse
um ser inferior. Está falando como se fosse um aristocrata - concluiu com desprezo.
Com efeito, se havia uma classe contra a qual mostrava prevenção e parcialidade, essa
era a aristocracia, a ponto de só dificilmente admitir a superioridade de um homem da sociedade,
superioridade que mais facilmente atribuiria a um homem do povo. Como lhe falasse da princesa
de Luxemburgo, a quem encontrara com sua tia:
- É uma tola - disse -, como todas as suas iguais. Aliás, é minha prima distante.
Tendo prevenção contra as pessoas que frequentavam a sociedade, Saint-Loup raramente
ia às reuniões aristocráticas e, quando comparecia, adotava uma atitude desdenhosa ou hostil, o
que aumentava ainda mais, na família, o desgosto provocado por sua ligação com uma mulher
"de teatro", ligação que diziam lhe ser fatal e, principalmente, de ser responsável por haver
desenvolvido nele aquele espírito de difamação, aquela má tendência que já o tinha "desviado" e
que iria levá-lo a "se afastar" inteiramente de sua classe. Desse modo, alguns levianos do
faubourg Saint-Germain eram impiedosos ao falarem da amante de Robert.
"As meretrizes fazem o seu ofício. - diziam -, valem tanto quanto as outras; mas esta, não!
Não lhe perdoaremos! Fez muito mal a alguém que é nosso amigo."
continua na página 155...
________________
Leia também:
Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - l)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
Nenhum comentário:
Postar um comentário