quinta-feira, 24 de abril de 2025

A Montanha Mágica - “Deus meu, eu vejo!” (a)

Thomas Mann

A Montanha Mágica 


Capítulo V

“Deus meu, eu vejo!” 

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     Passou-se uma semana antes que Hans Castorp fosse convidado, por intermédio da Superiora, a Srta. von Mylendonk, a apresentar-se no gabinete de radiologia. Não quisera apressar o curso das coisas. Reinava grande azáfama no Berghof. Os médicos e o pessoal tinham, evidentemente, muito que fazer. Nos últimos dias haviam chegado novos pensionistas: dois estudantes russos com bastas cabeleiras e com camisas negras, fechadas, que não deixavam a descoberto a menor parte da roupa-branca; um casal holandês, que recebera lugares à mesa de Settembrini; um mexicano corcunda, que assustava os comensais com seus espantosos ataques de dispnéia, durante os quais se agarrava, com mãos de ferro, aos vizinhos, homem ou mulher, forçando-os, apesar de toda a resistência horripilada que lhe opusessem, e dos gritos de socorro que lançassem, a participarem da sua própria angústia. Numa palavra, a sala de refeições estava quase repleta, se bem que a temporada de inverno não começasse antes de outubro. E a pouca gravidade do caso de Hans Castorp, seu grau de enfermidade, mal lhe davam o direito de exigir atenção especial. A Srª. Stöhr, por exemplo, por mais estúpida e inculta que fosse, estava indubitavelmente muito mais enferma do que ele, e nem era bom falar do Dr. Blumenkohl. Seria faltar a todo senso de hierarquia e de distância não observar, no caso de Hans Castorp, uma reserva modesta, tendo-se ainda em conta que tal mentalidade estava de acordo com o espírito da casa. Os doentes leves não gozavam de muita consideração, como Hans Castorp deduzira de conversas que ouvira. Falava-se deles com desdém, conforme a escala de valores ali usada; eram olhados de través, não só por parte dos doentes graves e gravíssimos, senão também por aqueles que eram igualmente “leves”. Agindo assim, menosprezavam na verdade a si próprios, mas ao mesmo tempo salvaguardavam sua dignidade, por se submeterem à referida escala de valores. Isso é apenas humano. “Bah, esse sujeito!”, diziam um do outro. “Ele não sofre de nada, no fundo. Mal tem o direito de achar-se aqui. Não tem sequer uma caverna...” Tal era o espírito que reinava no sanatório; era, em certo sentido, aristocrático, e Hans Castorp inclinava-se diante dele, por um inato respeito à lei e à ordem, fosse qual fosse a sua natureza. Cada terra com seu uso, reza o provérbio. Manifestam pouca cultura os viajantes que zombam dos costumes e dos conceitos dos povos que os acolhem; há muitos tipos de qualidades suscetíveis de conferir honra a quem as possui. Mesmo em relação a Joachim, Hans Castorp observava um certo respeito e um quê de cerimônia, não só por ser o primo paciente mais antigo e seu guia e cicerone nesse mundo novo, mas antes de tudo por se tratar, sem a menor dúvida, do caso mais grave. Assim sendo, era compreensível a tendência de todos de tirar o maior efeito possível das particularidades do seu caso, até mesmo exagerando sua gravidade, na intenção de pertencer à aristocracia ou de se avizinhar dela. O próprio Hans Castorp, quando interrogado à mesa, acrescentava alguns décimos à temperatura verificada”, e não deixava de se sentir lisonjeado quando o advertiam com o dedo, como a um grande espertalhão. Mas, não obstante essa pequena gabolice, ainda continuava sendo personagem secundária, de maneira que paciência e discrição constituíam a atitude que lhe convinha.
     Reassumira, ao lado de Joachim, o estilo de vida das três primeiras semanas, aquele estilo já familiar, monótono e estritamente regulamentado; e tudo corria à maravilha desde o primeiro dia, como se jamais tivesse sofrido uma interrupção. Com efeito, esta fora insignificante, como Hans Castorp notou logo por ocasião do seu reaparecimento à mesa. Verdade é que Joachim, ligando deliberadamente uma importância especial a esse tipo de fatos marcantes, empenhara-se em adornar com algumas flores a mesa do primo ressuscitado. Mas a recepção por parte dos comensais foi pouco festiva e não se distinguiu quase em nada de outras, anteriores, precedidas de uma separação de três horas e não de outras tantas semanas. Não porque sentissem indiferença para com a sua pessoa singela e simpática, nem porque estivessem por demais ocupados consigo próprios, isto é, com seus tão interessantes corpos, mas somente pelo fato de não terem consciência do intervalo. E Hans Castorp podia segui-los sem esforço por esse caminho, já que se encontrava no seu lugar à extremidade da mesa, entre a professora e Miss Robinson, da mesma forma como se aí tivesse comido pela última vez na véspera.
     Se em sua própria mesa não se fazia grande caso do fim do seu retiro, como poderia preocupar-se com ele o resto da sala? Ali absolutamente ninguém o percebera, com a única exceção de Settembrini, que ao final da refeição se aproximara para uma saudação amistosa e brincalhona. Hans Castorp sentia-se, na verdade, inclinado a ver ainda uma exceção, a cujo respeito não nos arriscamos a opinar. Afirmava de si para si que Clávdia Chauchat dera pelo seu reaparecimento, logo quando entrara, atrasada como sempre, após ter batido a porta envidraçada; tinha certeza de que os olhos estreitos da russa o haviam fitado com um olhar ao qual ele respondera com outro; apenas se sentara, Mme. Chauchat voltara-se de novo para o lado dele, sorrindo por cima do ombro, como fizera três semanas atrás, antes de ele ter ido ao exame médico. E esse gesto fora tão pouco dissimulado, tão desprovido de consideração – tanto de consideração para com ele quanto para com os demais pensionistas –, que Hans Castorp vacilava sobre se devia sentir-se deliciado ou tomar essa atitude por um sinal de desprezo e irritar-se por causa dela. Fosse como fosse, seu coração contraíra-se convulsivamente sob a influência desses olhares, que de um modo fantástico e inebriante tinham negado e desmentido as conveniências segundo as quais se ignoravam mutuamente; contraíra-se quase que dolorosamente, já no momento em que se fechara com estrondo a porta envidraçada, momento esse que Hans Castorp aguardara com respiração ofegante.
     Para completarmos o nosso relato, convém acrescentar que as relações interiores entre Hans Castorp e a enferma da mesa dos “russos distintos”, a parte que seus sentidos e seu espírito modesto tomavam nessa pessoa de estatura média, de andar felino e de olhos de quirguiz, numa palavra, sua paixão -seja permitido o emprego dessa palavra, embora ela constitua um termo lá de baixo, da planície, e possa despertar a idéia de ser aplicável ao nosso caso aquela cançãozinha “No fundo de minha alma ecoa...” –, convém acrescentar, pois, que as referidas relações haviam feito grandes progressos durante o seu retiro. A imagem de Mme. Chauchat pairara diante dos olhos do jovem, quando, acordado de madrugada, contemplara o quarto que lentamente se delineava, ou quando, de tardezinha, fixara o olhar no crepúsculo cada vez mais denso – no próprio momento em que Settembrini entrara ali, acendendo subitamente a luz, flutuara essa imagem à sua frente com a mais absoluta nitidez, e fora por isso que Hans Castorp corara ao ver o humanista. Durante as diversas horas do dia subdividido, os pensamentos do enfermo haviam girado em torno da boca de Mme. Chauchat, das maçãs de seu rosto, de seus olhos, cuja cor, forma e posição lhe laceravam a alma, de suas costas lânguidas, da vértebra da nuca, que ressaltava no decote da blusa, dos braços aureolados pela finíssima gaze – e se silenciamos sobre o fato de ele se ter servido desse meio para fazer as horas passar tão depressa, foi porque participamos, simpaticamente, do desassossego de consciência que assomava em meio à assustadora felicidade causada por essas imagens e visões. Sim, existiam mesclados com ela o susto, o abalo psíquico, a esperança que se perdia no infinito, no vago, na mera aventura, existiam alegria e medo, um medo indefinível, mas que, às vezes, comprimia o coração do jovem – o coração no sentido próprio e fisiológico –, fazendo com que ele levasse uma das mãos à altura desse órgão e a outra à testa, qual uma viseira por cima dos olhos, e murmurasse:

– Deus meu!

     Pois, por trás da fronte havia pensamentos ou semi-pensamentos, aos quais as ditas imagens e visões deviam, na realidade, sua excessiva doçura, e que se referiam à negligência e à desconsideração de Mme. Chauchat, à sua situação de enferma, ao relevo e à acentuação que seu corpo recebia em virtude da doença, à corporificação de todo o seu ser, igualmente produzida pela enfermidade. E Hans Castorp, por decisão do médico, ia daí em diante participar desse efeito corporificador. Compreendia, por trás de sua fronte, a liberdade aventurosa com que Mme. Chauchat, ao voltar-se e sorrir para ele, ignorava o fato de eles não terem sido apresentados um ao outro, segundo as conveniências sociais, como se ambos não fossem seres sociais e não sentissem necessidade de se falar... Era precisamente isso que o assustava, que o apavorava da mesma forma como naquele instante quando, no gabinete de consultas, tirara os olhos do torso de Joachim e buscara os do primo; mas então foram a compaixão e a solicitude que lhe haviam causado esse susto, ao passo que agora experimentava emoções muito diferentes. 
     Assim, a vida do Berghof, tão confortável e tão bem regulamentada, recobrara o seu curso monótono, em seus estreitos limites. Hans Castorp, à espera da radiografia, continuava compartilhando-a com o bom Joachim e fazendo, hora por hora, as mesmas coisas que o primo, cuja vizinhança poderia ser considerada favorável ao nosso herói. Pois, embora se tratasse apenas de uma afinidade de enfermos, havia nela uma boa parte de honradez militar; uma honradez, na verdade, que despercebidamente já estava a ponto de achar satisfação no serviço representado pelo tratamento, de modo que esse serviço se tornava, por assim dizer, um sucedâneo do cumprimento do dever lá de baixo, e uma profissão substituta. Hans Castorp não era tão estúpido que não notasse claramente essa evolução. Mas sentia muito bem o efeito refreador que ela exercia sobre sua mentalidade de civil. Talvez fosse até essa vizinhança – o exemplo que dava e o controle que exercia – o que o livrava de passos imprudentes e de empresas precipitadas. Não lhe escapava o quanto o correto Joachim sofria por causa de determinado perfume de flor de laranjeira que o envolvia diariamente, e cuja atmosfera abrangia um par de olhos castanhos, redondinhos, um pequeno rubi, muita alegria risonha, pouco justificada, e uns seios exteriormente bem-formados. E a preocupação da honra e da razão, que fazia com que Joachim temesse e evitasse a influência dessa atmosfera, comovia Hans Castorp, impunha-lhe certa disciplina e certa ordem, e impedia-o, por assim dizer, de pedir à mulher de olhos estreitos que “lhe emprestasse um lápis”. Sem o corretivo dessa vizinhança – assim o indica a experiência – talvez se houvesse disposto a fazer o contrário.
     Joachim nunca falava da risonha Marusja, e esse fato proibia a Hans Castorp falar de Clávdia Chauchat na presença dele. Achava compensação à mesa, trocando secretamente opiniões com a professora sentada à sua direita; esforçava-se por corar as faces da solteirona, mediante algumas piadas a respeito do seu fraco pela graciosa enferma, e ao fazê-lo imitava aquela atitude com que o velho Castorp apoiava dignamente o queixo no nó da gravata. Insistia também com ela para que o inteirasse de novos e interessantes pormenores relativos à situação particular de Mme. Chauchat, à sua origem, ao seu marido, à sua idade e ao caráter da sua doença. Queria saber se ela tinha filhos. Não, senhor, não tinha. Que faria com filhos uma mulher como essa? Provavelmente estava proibida de tê-los, e por outro lado, que espécie de filhos teria? Hans Castorp teve que lhe dar razão. Opinou com uma objetividade forçada que agora já era um pouco tarde. Às vezes, o perfil de Mme. Chauchat lhe parecia um pouco rígido. Já teria ela passado dos trinta anos? A Srta. Engelhart protestou violentamente. Clávdia, trinta anos? Quando muito, vinte e oito. E no que se referia a seu perfil, como podia o vizinho dizer uma coisa dessas? O perfil de Clávdia era de uma delicadeza e de uma suavidade puramente juvenis, se bem que fosse um perfil interessante e não o de qualquer pequena sadia. E para castigá-lo, a Srta. Engelhart acrescentou sem transição que Mme. Chauchat recebia freqüentemente visitas de senhores, em particular de um patrício dela que morava em Davos-Platz e entrava à tarde no quarto dela. 
     Essas palavras acertaram no alvo. O rosto de Hans Castorp crispou-se apesar de todo o seu esforço, e também era forçada a maneira como proferiu as frases “Imaginem” e “Vejam só”, para passar por cima da novidade. Incapaz de dar pouca importância à existência desse compatriota, como fingira no começo, voltou a falar dele sem cessar, de lábios trêmulos. Era um homem moço?

– Moço e bem-apessoado, segundo ouvi dizer – respondeu a professora. – Não tive ocasião de julgar com meus próprios olhos. 
– Doente? 
– Quando muito, ligeiramente. 
– Tomara –disse Hans Castorp sarcasticamente – que ele mostre um pouco mais da roupa-branca do que os seus patrícios da mesa dos “russos ordinários”. – E a Srta. Engelhart, ainda para castigá-lo, respondeu que podia garantir o contrário. Hans Castorp, terminando por admitir que esse era um assunto que merecia exame cuidadoso, encarregou-a seriamente de se informar sobre aquele compatriota que com tanta frequência visitava Mme. Chauchat. Mas, ao invés de trazer notícias a respeito desse ponto, ela comunicou-lhe alguns dias após um fato completamente diverso. 
 
     Havia a Srta. Engelhart descoberto que alguém pintava Cláudia Chauchat, que ela se deixava retratar, e perguntou a Hans Castorp se ele sabia. Podia estar certo de que a notícia procedia de fonte fidedigna. Desde algum tempo já, Mme. Chauchat posava no próprio Berghof, e quem era que lhe fazia o retrato? O conselheiro áulico! O Dr. Behrens recebia-a, para esse fim, quase diariamente no seu apartamento particular.
     Essa novidade emocionou Hans Castorp ainda mais que as anteriores. Daí por diante passou a fazer a seu respeito uma porção de pilhérias forçadas. Ora, ninguém ignorava que o doutor pintava a óleo. Que queria a professora? Não era coisa proibida, e todo mundo podia fazê-lo. E isso se passava nos aposentos do viúvo? Era de esperar que, pelo menos, a Srta. von Mylendonk assistisse às sessões.

– Ela não tem tempo para isso. 
– Mas o Behrens não deveria ter mais tempo que a Superiora – ponderou Hans Castorp com severidade. Essa observação soava definitiva, mas ele estava longe de abandonar o assunto. Fez toda uma série de perguntas, para saber pormenores acerca do retrato. Quis saber-lhe as dimensões, se era de meio corpo ou de corpo inteiro. A que horas posava Mme. Chauchat? Também nesse ponto a Srta. Engelhart mostrou-se incapaz de lhe oferecer outras particularidades e pediu-lhe que esperasse com paciência os resultados das investigações ulteriores. 

     Depois de se ter inteirado dessa notícia, Hans Castorp teve 37,7. Muito mais do que as visitas que Mme. Chauchat recebia, atormentavam-no e inquietavam-no as que ela fazia. A própria existência particular e pessoal de Mme. Chauchat, independentemente do seu conteúdo, já começara a causar-lhe sofrimento e desassossego, e quanto não se intensificariam essas sensações no momento em que ficasse sabendo de circunstâncias duvidosas relacionadas com esse conteúdo? Ainda que parecesse perfeitamente possível que as relações entre o visitante russo e a sua compatriota fossem de natureza banal e inocente, Hans Castorp sentia-se desde algum tempo inclinado a considerar a banalidade e a inocência como “lero-lero”. E tampouco podia decidir-se a formar uma opinião diferente quanto à pintura a óleo como base de relação entre um viúvo de vocabulário robusto e uma moça de olhos rasgados e andar felino. O gosto que o médico manifestara na escolha do seu modelo correspondia por demais ao seu próprio para que pudesse acreditar no caráter desinteressado da relação, e a recordação das faces azuladas e dos olhos proeminentes, estriados de vermelho, do conselheiro áulico, nada contribuía para diminuir o seu ceticismo.
     Um fato que Hans Castorp observou nesses dias, casualmente e por conta própria, exerceu sobre ele um efeito diferente, posto que novamente se tratasse de uma confirmação do seu gosto. À mesa colocada transversalmente à da Srª. Salomon e do colegial voraz de óculos, à esquerda da mesa dos primos e nas proximidades da porta lateral, havia um enfermo natural de Mannheim, como Hans Castorp ouvira dizer. Era um moço de trinta anos mais ou menos, com cabelos ralos e dentadura cariada, e que falava acanhadamente, o mesmo que de vez em quando tocava piano durante a reunião noturna, e quase sempre a marcha nupcial do Sonho de uma noite de verão. Diziam que era muito devoto – espírito que, por motivos óbvios, se encontrava frequentemente ali em cima. Hans Castorp soubera também que o moço assistia todos os domingos ao serviço religioso em Davos-Platz e lia durante o repouso livros edificantes, com um cálice ou um ramo de palmeira na capa. E esse rapaz – foi o que Hans Castorp notou um belo dia – dirigia seus olhares ao mesmo ponto que ele próprio; cravava-os na pessoa flexível de Mme. Chauchat, e isso de um modo entre tímido e indiscreto que tocava as raias do canino. Hans Castorp, após ter observado essa atitude pela primeira vez, não pôde deixar de verificá-la com muita frequência. Via o moço pela noite, na sala de jogo, entre os pensionistas, melancólico e absorto pelo aspecto da mulher formosa, apesar de contaminada, que se achava sentada ali, no sofá do pequeno salão, a conversar com Tamara (assim se chamava a moça extravagante de cabelos lanosos), com o Dr. Blumenkohl e com os cavalheiros de peito para dentro e ombros caídos da sua mesa. Via-o voltar-se, ir à toa de cá para lá, e virar de novo a cabeça lentamente por cima do ombro, em direção a Mme. Chauchat, olhando-a de esguelha, com uma contração lamentável do lábio superior. Via-o empalidecer e baixar os olhos, que imediatamente depois levantava outra vez, sempre que se cerrava a porta envidraçada e Mme. Chauchat deslizava até seu lugar. E observou diversas vezes como o coitado se plantava, após a refeição, entre a saída e a mesa dos “russos distintos”, para deixar que Mme. Chauchat passasse bem perto dele e para devorar, com os olhos cheios de tristeza até o fundo da alma, a mulher que nem dava pela sua presença.
     Também essa descoberta impressionou consideravelmente o jovem Hans Castorp, embora a mísera indiscrição do rapaz de Mannheim não o pudesse inquietar da mesma forma como as relações particulares entre Clávdia Chauchat e o Dr. Behrens, esse homem que lhe era tão claramente superior em anos, em personalidade e na posição que ocupava na vida. Clávdia absolutamente não se preocupava com o moço de Mannheim. Se fosse diferente, o fato não teria escapado à atenção aguçada de Hans Castorp. Não era, portanto, a pontada antipática do ciúme que ele sentia no coração. Mas o jovem experimentava todas as sensações que costuma experimentar um homem ébrio e apaixonado quando descobre no mundo exterior sua própria imagem, sentimento que formam a estranha mescla de repugnância e solidariedade. É impossível analisar e estudar tudo isso, se é que desejamos levar avante a nossa narrativa. Seja como for, aquilo que a observação do moço de Mannheim dava a pensar ao pobre Hans Castorp era muito forte para o seu estado de alma.
     Assim se passaram os oito dias até o da radioscopia de Hans Castorp. Ele não soubera que este seria o prazo, mas quando, certa manhã, na hora do café, a Superiora – ela outra vez tinha um terçol, que não podia ser o mesmo; parecia que esse mal inofensivo, mas desfigurador, tinha origem na sua constituição – deu-lhe ordem de se apresentar à tarde no laboratório, haviam decorrido precisamente oito dias. Hans Castorp devia comparecer em companhia do primo, meia hora antes do chá, pois ao mesmo tempo se tiraria um novo retrato do interior de Joachim, visto a última radiografia dele ter sido tirada havia muito tempo.
     Cortaram, pois, nesse dia, uns trinta minutos do repouso principal e desceram às três e meia em ponto pela escadaria de pedra até o porão fictício. Lado a lado, estavam sentados na pequena sala de espera que separava o gabinete de consultas do laboratório de radioscopia. Joachim, para quem essas coisas não representavam nada de novo, parecia completamente calmo; Hans Castorp, porém, achava-se numa expectativa um tanto febril, já que, até esse momento, nunca haviam lançado olhares à vida interior do seu organismo. Não estavam sós. Quando entraram, já se encontravam na peça alguns pensionistas, com revistas surradas sobre os joelhos, e que esperavam como eles; havia lá um jovem gigante sueco, que na sala de refeições tinha o seu lugar à mesa de Settembrini, e do qual se dizia que, na época da sua chegada, em abril, estivera tão doente que haviam hesitado em admiti-lo; desde então, porém, engordara trinta e seis quilos e estava a ponto de receber alta como totalmente curado; além dele, estava lá uma senhora da mesa dos “russos ordinários”, uma mãe de mísero aspecto, com seu filho ainda mais mísero, um garoto feio e narigudo de nome Sacha. Essas pessoas esperavam havia mais tempo do que os primos. Evidentemente, entrariam antes deles. Decerto se produzira algum atraso no gabinete de radioscopia, e disso resultaria chá frio para os primos.
     No gabinete estavam ocupados. Ouvia-se a voz do Dr. Behrens, que dava ordens. Já haviam passado as três e meia, quando a porta foi aberta – quem a abriu foi um assistente técnico que trabalhava nessa seção. Mandaram entrar o gigante sueco, aquele felizardo. Sem dúvida, seu antecessor fora-se por outra porta. Desse momento em diante, as coisas desenrolaram-se mais depressa. Ao cabo de dez minutos já se ouviam os vigorosos passos do escandinavo completamente curado, essa publicidade ambulante do lugar e do sanatório, que se afastava pelo corredor. Foi, então, recebida a mãe russa com Sacha. Mais uma vez, como por ocasião da entrada do sueco, notou Hans Castorp que na sala de radioscopia reinava penumbra, isto é, uma meia-luz artificial, exatamente como do outro lado, no gabinete analítico do Dr. Krokowski. As janelas estavam cobertas de cortinas; a luz do dia estava excluída, e luziam apenas algumas lâmpadas elétricas. Enquanto eram introduzidos Sacha e sua mãe e Hans Castorp os acompanhava com os olhos, descerrou-se, nesse preciso momento, a porta do corredor, e o enfermo seguinte entrou na sala de espera. Chegava muito cedo, em vista do atraso dos exames. Era Mme. Chauchat.
     Era mesmo Clávdia Chauchat que, de repente, se achava na exígua peça. Hans Castorp, de olhos arregalados, reconheceu-a, e sentiu perfeitamente como o sangue lhe fugia do rosto e o maxilar inferior se lhe afrouxava, a ponto de forçá-lo a abrir a boca. A entrada de Clávdia efetuara-se de modo despercebido, inopinado, e de chofre compartilhava ela com os primos aquele recinto, onde um segundo antes não estivera ainda. Joachim lançou um olhar rápido para Hans Castorp, e logo após não somente baixou os olhos, mas tornou a tirar da mesa a revista ilustrada que depusera ali pouco antes, e escondeu o rosto atrás das folhas desdobradas. Hans Castorp não teve bastante energia para fazer o mesmo. Depois de empalidecer, corou violentamente, e o coração pulsava-lhe descompassado.

continua pág 138...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
“Deus meu, eu vejo!” (a)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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