sexta-feira, 18 de abril de 2025

Marcel Proust - A Prisioneira (Já não me admirava)

em busca do tempo perdido

volume V
A Prisioneira

continuando...

      Já não me admirava de que Albertine ali se encontrasse e só devesse sair no dia seguinte comigo ou sob a proteção de Andrée. Tais hábitos de vida em comum, essas grandes linhas que delimitavam a minha existência e em cujo interior não podia penetrar ninguém exceto Albertine, e também (no plano futuro, ainda desconhecido de mim, de minha vida ulterior, como o que é traçado por um arquiteto quanto aos monumentos que só se erguerão bem mais tarde) as linhas distantes, paralelas a essas, e mais amplas, com as quais se esboçava em mim, como uma ermida isolada, a fórmula um tanto rígida e monótona de meus amores futuros, na verdade tinham sido traçadas naquela noite em Balbec, onde, depois que Albertine me revelara, no trenzinho, quem a havia educado, eu desejara a todo preço subtraí la a certas influências e impedi-la de estar longe da minha presença durante alguns dias. Os dias tinham se sucedido uns aos outros, os hábitos tornaram-se maquinais, mas, como esses ritos de que a História busca descobrir o significado, eu poderia dizer (e não o desejaria) a quem me houvesse perguntado o que significava essa vida de retiro na qual me sequestrava, a ponto de não ir mais ao teatro, que ela se originava na ansiedade de uma noite e na necessidade de provas a mim mesmo, nos dias seguintes, que a moça cuja infância deplorável eu acabara de conhecer, não teria a possibilidade, se o quisesse, de se expor às mesmas tentações. Não pensava senão muito raramente nessas possibilidades, mas elas deviam entretanto permanecer vagamente presentes na minha consciência. O fato de destruí-las-ou de tentá-lo -dia após dia era sem dúvida o motivo pelo qual era-me tão doce beijar aquelas faces que não eram mais bonitas que muitas outras; sob toda doçura carnal um pouco profunda, existe a permanência de um perigo.
     Eu havia prometido a Albertine que, se não saísse com ela, haveria de entregar-me ao trabalho. Mas, no dia seguinte, como se aproveitando de nosso sono a casa tivesse miraculosamente viajado, despertei num tempo diferente, sob diverso clima. Não se trabalha no momento de desembarcar num novo país, a cujas condições é preciso adaptar-se.
      Ora, todo dia era para mim um país diferente. Minha própria preguiça, sob as formas novas de que se revestia, como a teria eu reconhecido? Logo, dir-se-á que, em dias de mau tempo irremediável, somente a residência na casa, situada no meio de uma chuva igual e contínua, tinha a deslizante doçura, o silêncio calmante, o interesse de uma navegação; noutra ocasião, em um dia claro, ficando imóvel na cama, era deixar rodar as sombras em torno a mim, como à volta de um tronco de árvore. De outras vezes ainda, aos primeiros toques dos sinos de um convento próximo, raros como as devotas matinais, mal embranquecendo o céu sombrio com sua saraiva incerta que o vento morno fundia e dispersava, eu discernira um desses dias tempestuosos, desordenados e agradáveis, em que os telhados, batidos por pancadas intermitentes que uma brisa ou um raio de sol logo secam, deixam deslizar, aos arrulhos, uma gota de chuva e, enquanto o vento não recomeça a rodopiar, alisam ao sol momentâneo, que as irisa, suas ardósias furta-cor; um desses dias cheios de tantas mudanças de tempo, de incidentes aéreos, de tempestades, que o preguiçoso não os dá por perdidos, pois se interessou pela atividade que a atmosfera tem desenvolvido em vez dele, agindo de certo modo em seu lugar; dias semelhantes a esses tempos de rebelião ou de guerra que não parecem vazios ao estudante que não vai à escola, porque, nos arredores do Palácio da Justiça ou lendo os jornais, tem a ilusão de achar, nos acontecimentos ocorridos, à falta da tarefa que não pôde cumprir, um proveito para a sua inteligência e uma desculpa para sua ociosidade; enfim, dias aos quais se podem comparar aqueles em que ocorre, na nossa vida, uma crise excepcional e da qual o que nunca fez nada pensa que vai extrair, se tudo termina bem, hábitos de trabalho: por exemplo, a manhã em que ele sai para um duelo que vai se dar em condições especialmente perigosas; então lhe aparece, de súbito, no momento em que talvez lhe vá ser tirada, o preço de uma existência de que poderia ter aproveitado para iniciar uma obra ou simplesmente desfrutar prazeres, e da qual não soube gozar nada. "Se pudesse escapar com vida" pensa ele, "como começaria logo a trabalhar e também como haveria de me divertir!". De fato, a vida assumiu de repente, a seus olhos, um valor bem maior, pois ele põe nela tudo o que lhe parece que ela pode lhe oferecer, e não o pouco que ele lhe faz dar habitualmente. Vê-a segundo o seu desejo, não como sua experiência lhe ensinou que ele sabia torná-la, isto é, tão medíocre. Num instante, sua vida se encheu de labores, de viagens, de excursões a montanhas, de todas as belas coisas que ele imagina poderão ficar impossíveis com o desfecho funesto desse duelo, sem pensar que já o eram antes que se tratasse do duelo, devido aos maus hábitos que, mesmo sem duelo, teriam permanecido. Ele volta para casa sem sequer ter sofrido um ferimento. Mas encontra os mesmos obstáculos aos prazeres, às excursões, às viagens, a tudo de que há pouco receara por um momento ficar despojado para sempre pela morte; basta para isso a vida. Quanto ao trabalho tendo as circunstâncias excepcionais por efeito exaltar o que de antemão existia no homem, no trabalhador o trabalho e no preguiçoso a preguiça-, resolve tirar férias.
      Eu fazia como ele e como sempre fizera desde que tomara resolução de me pôr, a escrever, assumida outrora, mas que me parecia datar de ontem, porque havia considerado cada dia, um após outro, como não tendo chegado. Procedia da mesma forma com este, deixando passar, sem nada fazer, seus aguaceiros e estiadas, e prometendo a mim mesmo começar a trabalhar no dia seguinte. Porém, nele eu já não era mais o mesmo sob um céu sem nuvens; o som dourado dos sinos não continha somente luz, como o mel, mas a sensação de luz (e também o sabor enjoativo dos doces, porque em Combray muitas vezes ele se demorava, como uma vespa, sobre nossa mesa depois de retirados os pratos, talheres e toalha). Nesse dia de sol deslumbrante, ficar o dia inteiro de olhos fechados era uma coisa permitida, comum, salubre, agradável e própria da estação, como manter as janelas fechadas devido ao calor. Eram em dias assim que, no começo da minha segunda temporada em Balbec, eu ouvia os violinos da orquestra por entre as massas de água azuladas da maré montante. Como eu possuía mais Albertine hoje! Dias havia em que o rumor de um sino que dava as horas trazia sobre a esfera de sua sonoridade uma placa tão fresca, tão poderosamente cortada de umidade ou luz, que era como uma tradução para cegos, ou, se quiserem, como uma tradução musical do encanto da chuva ou do encanto do sol. De modo que, nesse momento, de olhos fechados em meu leito, eu dizia comigo que tudo pode ser transposto, e que um universo somente audível poderia ser tão variado como o outro. Remontando preguiçosamente o correr do tempo como numa barca, e vendo sempre aparecer à minha frente novas recordações encantadas, que eu não escolhia, que no instante anterior me eram invisíveis e que minha memória me apresentava, uma após outra, sem que pudesse escolhê-las, eu prosseguia preguiçosamente, naqueles espaços uniformes, o meu passeio ao sol.
      Aqueles concertos matinais de Balbec não eram antigos. E, no entanto, naquele momento relativamente próximo, eu pouco me importava com Albertine. Mesmo nos primeiros dias após a chegada, não tivera conhecimento de sua presença em Balbec. Por quem o soubera então? Ah, sim! Por Aimé. Fazia um dia lindo como este. Bom Aimé! Estava contente de me rever. Mas ele não gosta de Albertine. Nem todos podem gostar dela. Sim, foi ele quem me informou que ela estava em Balbec. Como sabia disso? Ah, ele a tinha encontrado, e lhe achara umas maneiras estranhas. Neste momento, abordando o relato de Aimé por outro ângulo que não o que ele me apresentara no instante em que o fizera, meu pensamento, que até então navegara sorridente sobre aquelas águas bem-aventuradas, estourava de súbito, como se houvesse dado de encontro a uma mina invisível e perigosa, insidiosamente colocada naquele ponto da minha memória. Ele me dissera que a tinha encontrado, que lhe achara umas maneiras estranhas. Que pretendera dizer com maneiras estranhas? Eu tinha entendido maneiras vulgares, pois, para antecipadamente contradizê-lo, havia declarado que ela possuía distinção. Mas não, talvez ele quisesse dizer maneiras de Gomorra. Ela estava com uma amiga, talvez se abraçassem pela cintura e olhassem para outras mulheres, talvez de fato tivessem um "jeito" que eu jamais vira em Albertine na minha presença. Quem seria a amiga? Onde Aimé tinha encontrado essa odiosa Albertine? Eu tentava lembrar-me exatamente do que Aimé havia dito, para ver se aquilo podia se referir ao que imaginava, ou se ele quisera falar apenas de maneiras vulgares. Porém, por mais que indagasse, a pessoa que fazia a pergunta e aquela que podia oferecer a lembrança eram infelizmente uma só e a mesma pessoa, eu, que momentaneamente me duplicava, mas sem nada acrescentar. Eu questionava debalde, era eu quem respondia, não ficava sabendo mais nada. Já não pensava na Srta. Vinteuil. Nascido de uma suspeita nova, o acesso de ciúme que me assaltava era igualmente novo, ou melhor, não passava do prolongamento, da extensão de tal suspeita; tinha o mesmo cenário, que já não era Montjouvain, mas o caminho em que Aimé havia encontrado Albertine; e, por objeto, algumas amigas, das quais uma ou outra poderia ser a que estava com Albertine naquele dia. Talvez fosse uma certa Élisabeth, ou então, as duas moças que Albertine olhara pelo espelho no cassino, quando parecia não vê-las. Sem dúvida, mantinha relações com elas, e aliás também com Esther, a prima de Bloch. Tais relações, caso me fossem reveladas por um terceiro, teriam bastado para que eu ficasse meio morto, mas como era eu que as imaginava, tinha o cuidado de acrescentar bastante incerteza para amortecer o sofrimento. Sob a forma de suspeitas, chega-se a observar diariamente, em doses enormes, essa mesma ideia de que se é traído, de que uma quantidade bem pequena poderia ser mortal, inoculada pelo pico de uma palavra lancinante. E é por isso, sem dúvida, e por um derivado do instinto de conservação, que o mesmo ciumento não hesita em formular suspeitas atrozes acerca de fatos inocentes, com a condição, diante da primeira prova que lhe tragam, de se recusar à evidência. Além disso, o amor é um mal incurável, como essas diáteses em que o reumatismo só dá um pequeno descanso para ceder lugar a enxaquecas epileptiformes. Serenada a suspeita ciumenta, eu ficava agastado com Albertine por não ter sido carinhosa, quem sabe por ter zombado de mim com Andrée. Pensava com terror no juízo que ela formaria se Andrée lhe repetisse todas as nossas conversas; o futuro me parecia atroz. Essas tristezas só me deixavam se uma nova suspeita ciumenta me lançava em outras buscas, ou ia se, pelo contrário, as manifestações de ternura de Albertine tornassem insignificante a minha felicidade. Quem poderia ser essa moça? Era necessário que eu escrevesse a Aimé, que procurasse vê-lo, e a seguir verificaria suas palavras conversando com Albertine, pondo-a em confissão. Enquanto esperava, julgando que se tratasse da prima de Bloch, pedi a este, que absolutamente não entendeu com que objetivo, que me mostrasse uma só fotografia dela, ou, bem mais, que me fizesse encontrá-la casualmente.
     Quantas pessoas, cidades, estradas, o ciúme assim nos faz tão ávido para conhecê-las! Ele é uma sede de saber graças à qual, sobre pontos isolados uns dos outros, acabamos por ter sucessivamente, todas as noções possíveis, salvo a que desejaríamos. Não se sabe nunca se uma suspeita não nascerá, pois de repente a gente se recorda de uma frase que não era clara, de um álibi que não fora dado sem segundas intenções. No entanto, não voltamos a ver a pessoa, porém existe um ciúme posterior que nasce apenas depois que a deixamos, um ciúme retardatário. Talvez o hábito de guardar no fundo de mim mesmo alguns desejos que eu adquirira, desejo de uma moça da sociedade como as que eu via passar da minha janela seguidas da sua governanta, e mais particularmente daquela de que me falara Saint-Loup, que frequentava os bordéis, desejo das belas camareiras e especialmente daquela da Sra. Putbus, desejo de ir ao campo, no começo da primavera, a fim de rever os espinheiros alvos, as macieiras em flor, as tempestades, desejo de Veneza, desejo de me pôr, a trabalhar, desejo de levar a vida de toda a gente, talvez o hábito de conservar em mim, insaciavelmente, todos esses desejos, contentando-me com a promessa feita a mim mesmo de não me esquecer de satisfazê-los um dia, talvez esse hábito, antigo de tantos anos, do adiamento perpétuo, daquilo que o Sr. de Charlus estigmatizava com o nome de procrastinação, se tivesse tornado tão geral em mim que também se apropriava de minhas suspeitas ciumentas e, fazendo-me tomar nota mentalmente de um dia não deixar de ter uma explicação com Albertine a respeito da moça (talvez das moças, esta parte da narrativa era confusa, apagada, quer dizer, indecifrável, na minha memória) com a qual ou as quais - Aimé a encontrara, fazia me atrasar essa explicação. Em todo caso, não falaria disso naquela noite com a minha amiga, para não me arriscar a parecer ciumento e aborrecê-la. Todavia, quando, no dia seguinte, Bloch me enviou a fotografia de sua prima Esther, eu me apressei a fazê-la chegar às mãos de Aimé. E no mesmo instante, lembrei-me que Albertine recusara-me, de manhã, um prazer que de fato poderia tê-la cansado. Seria então para reservá-lo para outrem, talvez naquela tarde? A quem? Assim é que é interminável o ciúme, pois mesmo que o ser amado, por exemplo estando morto, não pode mais provocá-lo com seus atos, ocorre que as lembranças, posteriormente a todo acontecimento, comportam-se de repente em nossa memória como outros tantos acontecimentos, lembranças que não tínhamos esclarecido até então, que nos tinham parecido insignificantes, e às quais basta a nossa própria reflexão sobre elas, sem nenhum fato exterior, para conferir um sentido novo e terrível. Não precisamos ser dois, basta estarmos sozinhos no quarto, pensando, para que se produzam novas traições de nossa amante, mesmo que esteja morta. Assim, não se deve temer no amor, como na vida comum, apenas o futuro, mas também o passado, que muitas vezes só se realiza para nós depois do futuro; e não falamos somente do passado de que ficamos sabendo muito tarde, mas daquele que conservamos desde longo tempo em nós e que de súbito aprendemos a decifrar.
      Não importa, eu me sentia bem feliz, a tarde findava, e já não tardava a hora em que ia pedir a Albertine o sossego de que precisava. Infelizmente, a noitada que chegou foi uma dessas em que tal sossego não me foi trazido, em que o beijo que Albertine me daria, ao me deixar, bem diferente do beijo habitual, não me acalmaria mais do que outrora o de minha mãe quando estava zangada, e quando eu não tinha coragem de chamá-la de novo, mas sentia que não poderia adormecer. Essas noites agora eram aquelas em que Albertine formara, para o dia seguinte, algum projeto que não queria que eu conhecesse. Se me houvesse confiado, eu teria posto em assegurar a sua realização um ardor que ninguém senão Albertine poderia me inspirar. Mas ela não me dizia nada e, aliás, não tinha necessidade de dizer coisa alguma: logo que regressava, mesmo à porta do quarto, como ainda estivesse de chapéu ou de gorro, eu já vira o desejo desconhecido, rebelde, encarniçado, indomável. Ora, era muitas vezes nas noites em que eu havia esperado o seu regresso com os mais ternos pensamentos, em que contava saltar-lhe ao pescoço com a maior ternura. Ai de mim, como tivera tantas vezes esses desentendimentos com meus pais, a quem achava frios ou irritados no momento em que corria para junto deles transbordando de ternura; não era nada diante dos desentendimentos que ocorrem entre dois amantes. O sofrimento neste caso é bem menos superficial, é bem mais difícil de suportar, tem por sede uma camada bem mais profunda do coração. Naquela noite, Albertine no entanto foi obrigada a me dizer uma palavra acerca do projeto que havia formado; compreendi imediatamente que ela, no dia seguinte, queria ir fazer uma visita à Sra. Verdurin, visita que, em si mesma, absolutamente não teria me contrariado. Mas com certeza era para ter lá algum encontro, preparar algum prazer. Se não fosse isto, não faria tanta questão dessa visita. Quer dizer, não teria repetido que não se empenhava por ela. Em minha existência, eu havia seguido um caminho inverso ao dos povos que só se utilizam da escrita fonética depois de terem considerado os caracteres apenas como uma sequência de símbolos; eu, que durante tantos anos só buscara a vida e o pensamento reais das pessoas no enunciado direto que deles me forneciam elas voluntariamente, chegara pelo contrário, por culpa delas, a só dar importância aos testemunhos que não são expressão racional e analítica da verdade; as próprias palavras só me informam sob a condição de serem interpretadas como um afluxo de sangue ao rosto de uma pessoa que se perturba, ou ainda, à maneira de um súbito silêncio. Determinado advérbio (por exemplo, empregado pelo Sr. de Cambremer quando ele julgava que eu era "escritor" e que, não tendo ainda me falado, ao contar uma visita que havia feito aos Verdurin, voltara-se para mim, dizendo:

- Estava lá justamente Borrelli - lançado numa conflagração pela proximidade involuntária, por vezes perigosa, de duas ideias que o interlocutor não exprimia, e da qual eu podia extraí-las por certos métodos de análise ou de eletrólise apropriados, dizia-me mais coisas que um discurso. Às vezes Albertine deixava escapar, em suas frases, um ou outro desses preciosos amálgamas que eu me apressava a "tratar" para transformá-los em ideias claras.

     De resto, é uma das coisas mais terríveis para o enamorado que, se os fatos particulares que só a experiência, a espionagem, entre tantas realizações possíveis, fariam conhecer - são tão difíceis de achar, em compensação, a verdade seja tão fácil de perceber ou apenas de pressentir. Muitas vezes eu a vira, em Balbec, fixar sobre as moças que passavam um olhar brusco e prolongado, semelhante a um contato, e após o qual, se eu as conhecia, indagava-me: 

- E se as convidássemos? Gostaria de lhes dizer uns desaforos. -

     E desde algum tempo, desde que sem dúvida me adivinhara o pensamento, nenhum pedido para convidar ninguém, nenhuma palavra, nem mesmo um desvio de olhar, que se tornara silencioso e sem finalidade, e com a fisionomia distraída e vaga de que eram acompanhados, tão revelador como outrora a sua magnetização. Pois bem, não me era possível censurá-la ou fazer perguntas a propósito de coisas que ela teria declarado ser tão ínfimas, tão insignificantes, que eu conservara na memória só pelo prazer de "esmiuçar". Já é difícil dizer "por que olhou para aquela moça?" e mais ainda "por que não olhou para ela?" E no entanto eu bem sabia, ou pelo menos teria sabido, se tivesse desejado acreditar, não nas afirmações de Albertine, mas em todos os nadas incluídos em um olhar, provados por ele e por tal ou qual contradição nas palavras, contradição da qual muitas vezes só me dava conta muito tempo depois de tê-la deixado, que me fazia sofrer a noite inteira, na qual não tinha mais coragem de voltar a falar, mas que nem por isso deixava de honrar minha memória de vez em quando com suas visitas periódicas. Muitas vezes, naqueles simples olhares furtivos ou desviados na praia de Balbec, ou nas ruas de Paris, eu podia indagar-me se a pessoa que os provocava não era somente um objeto de desejos no momento em que passava, mas uma conhecida antiga, ou então uma moça de quem lhe haviam falado e da qual, quando eu vinha a sabê-lo, ficava estupefato de que lhe houvessem falado, de tão fora que a julgava de todos os conhecimentos possíveis de Albertine. Mas a Gomorra é um puzzle feito de pedaços que vêm de onde menos se espera. Foi assim que, em Rivebelle, compareci a um grande jantar, onde por acaso conhecia, ao menos de nome, as dez convidadas, tão dissemelhantes quanto possível, e todavia perfeitamente ajustadas, de forma que jamais vi um jantar tão homogêneo, muito embora tão composto.

continua na página 36...

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