quarta-feira, 2 de abril de 2025

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - k)

em busca do tempo perdido


volume II
À Sombra das Moças em Flor

Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar


(k)

continuando...

      Pensei que, ao convidar-nos assim para o apartamento de sua tia, sem dúvida a prevenira de nossa visita, o Sr. de Charles teria desejado reparar a descortesia com que me tratara no passeio daquela manhã. Mas, quando entramos o sobrinho estava no salão da Sra. Villeparisis; quis cumprimentá-lo, porém por mais voltas que desse a seu redor, não pude atrair o seu olhar, pois ele contava, em voz aguda, uma história bem malévola sobre um de seus parentes; quis cumprimentá-lo com voz bem forte, para adverti-lo de minha presença, mas, compreendi que havia reparado nela, pois, antes mesmo que meus lábios dissesse uma só palavra, no momento em que me inclinava, vi seus dois dedos estendidos para que os apertasse, sem que ele tivesse desviado os olhos ou interrompido a conversa. Evidentemente me vira, mas sem dá-lo a perceber, e só então verifiquei que seus olhos, que jamais se fixavam no interlocutor, passeavam permanentemente em todas as direções, como os de certos animais assustados, ou os desses vendedores ambulantes que, enquanto declamam seu palavreado e exibem mercadoria ilícita, perscrutam, sem todavia virar a cabeça, os diferentes pontos no horizonte de onde poderia vir a polícia. Com a nossa chegada, parecia surpresa por nos ver a Sra. de Villeparisis; parecia não estar prevenida; e fiquei mais assombrado ainda ao ouvir o Sr. de Charles dizer à minha avó:

- É encantador, não é mesmo? Disse à tia. "Ah, foi uma ideia muito boa a que tiveram.'' Sem dúvida havia reparado na surpresa de sua tia; e que lhe bastaria para transformar, homem acostumado a dar o tom, como esta surpresa em alegria, indicando que também se achava surpreso e que esse calculava bem, o efeito do sentimento que a nossa chegada deveria causar. Levava em muita consideração o seu sobrinho, e a Sra. de Villeparisis, sabia quanto era difícil contentá-lo, pareceu de súbito achar novas qualidades em minha avó. Não podia compreender que o Sr. de Charles não cessou de agradá-la. Mas eu não entendia que aparentemente se esquecesse, em poucas horas, o convite tão breve que nos fez naquela manhã – denominava tão premeditado, que me parecia que fizera aquilo intencionalmente parecer a ideia de minha avó, uma ideia que era somente sua. Disse com um escrúpulo de precisão que até certa idade, foi que percebi que a gente não se certifica que se conserve verdadeiras intenções de uma pessoa pelo simples fato de lhe fazer uma pergunta e que é menor o risco de um mal entendido que certamente passará em brancas nuvens, do que insistir ingenuamente:
- Mas, senhor - disse-lhe -, deve estar lembrado de que me pediu que viéssemos esta noite, não é? - Nenhum movimento, nenhum som revelou que o Sr. de Charles tivesse ouvido minha pergunta. De modo que a repeti, como os diplomatas ou os jovens que estão brigados e que, com inútil e incansável boa vontade, procuram obter esclarecimentos que o adversário decidiu não dar. Pareceu-me ver flutuar em seus lábios o sorriso dos que, de muito alto, julgam o caráter e a educação dos outros. Já que ele se recusava a uma explicação, tentei elaborar uma, e apenas cheguei a hesitar entre várias, nenhuma das quais podia ser a verdadeira. Talvez não se lembrasse, ou então fora eu quem não compreendera bem o que me havia dito pela manhã... Mais provavelmente por orgulho, não queria dar a impressão de ter procurado atrair pessoas que desdenhava, e preferia lançar sobre elas a iniciativa de sua vinda. Mas então, se nos desdenhava, por que fizera questão que viéssemos, ou melhor, que minha avó viesse, pois de nós dois foi somente a ela que o Sr. de Charles dirigiu a palavra naquela noite, e nem uma só vez a mim? Conversando com ela na maior animação, assim como com a Sra. de Villeparisis, de algum modo escondido atrás delas como se estivesse no fundo de um camarote, contentava-se apenas em desviar por vezes o olhar inquiridor de seus olhos penetrantes e pousá-lo em meu rosto, com a mesma seriedade e o mesmo ar de preocupação que teria se estivesse lendo um manuscrito difícil de entender. Sem dúvida, a não ser por esses olhos, o rosto do Sr. de Charles seria idêntico ao de muitos homens bonitos. E, quando Saint-Loup, falando-me de outros Guermantes, disse mais tarde:
- "Ora, eles não têm esse ar de raça, de grão-senhor até a ponta dos dedos, como o tio Palamede", confirmando que o ar de raça e a distinção aristocrática não continham nada de novo e misterioso, mas eram constituídos de elementos que eu facilmente reconhecia sem que me causassem maior impressão. Percebi que se dissipava uma de minhas ilusões. Mas naquele rosto, que se parecia um pouco ao rosto de um ator devido à leve camada de pó-de-arroz que o recobria, por mais que o Sr. de Charles lhe fechasse hermeticamente a expressão, seus olhos eram como uma fenda, uma seteira que não pudera tapar e por onde, segundo a posição que a gente ocupava quanto a ele, saíam reflexos que bruscamente nos atravessavam, provindos de alguma arma interior que parecia assustadora até para aquele que, sem dominá-la, carregava-a dentro de si em estado de equilíbrio instável e sempre a ponto de explodir; e a expressão circunspecta e constantemente intranquila desses olhos, com todo o cansaço que provocava no rosto, por mais composto e arrumado que estivesse, expresso nas olheiras muito caídas, fazia pensar num incógnito, num homem poderoso que corresse perigo e por isso se disfarçasse, ou pelo menos num sujeito perigoso, porém trágico. Gostaria de adivinhar que segredo era aquele que os outros homens não possuíam e que tornara tão enigmático o olhar do Sr. de Charles; quando o havia visto de manhã, perto do cassino. Mas agora, que já sabia a que família pertencia, não mais continuara crer que fosse o olhar de um ladrão, nem, já que o ouvira, o de um louco. Se se mostrava frio para comigo, enquanto era tão amável à minha avó, isto talvez não se devesse a uma antipatia pessoal, pois de um modo geral era benevolente para com as mulheres, de cujos defeitos falava habitualmente com muita indulgência; mas, quanto aos homens, principalmente os rapazes, tratava com um ódio violento que lembrava o de certos misóginos pelas mulheres, dois ou três gigolôs, que eram da família ou da intimidade de Saint-Loup, e cujos nomes este citara casualmente, disse: 
- São uns pequenos canalhas.- com a expressão quase feroz que contrastava com sua frieza costumeira. Compreendi o que censurava acima de tudo nos jovens de hoje era o serem muito efeminados.
- São verdadeiras mulheres - dizia com desprezo. Mas qual vida não teria parecido efeminada em comparação com a que ele desejava que levasse um homem, e ainda assim lhe parecia pouco enérgica e viril? (Ele mesmo, em suas viagens, depois de horas de caminhada, todo afogueado, lançava-se em rios gelados.) Nem sequer admitia que um homem usasse anel. Porém esse preconceito da virilidade não o impedia de possuir as mais finas qualidades de homem sensível. A Sra. de Villeparisis, que lhe pedia descrevesse para minha avó um castelo onde a marquesa da Sévigné passara um dia, acrescentando que achava um pouco literário o seu gênero de se ver separada de uma pessoa tão aborrecida como sua filha, a Srta. Grignan, respondeu:
- Pelo contrário, a mim me parece bastante verdadeiro. Aliás, era uma época em que esses sentimentos eram muito bem compreendidos. O habitante de Monomotapa, de La Fontaine, correndo à casa do amigo porque em sonho pareceu triste, o pombo achando que o maior dos males é a ausência de pombo, talvez lhe pareçam, minha tia, tão exagerados como a Sra. de Sévigné, não podia aguardar o momento em que estaria a sós com a filha. E é tão belo ela diz quando se separam: "Esta separação me faz doer tanto a alma que é como se fosse dor no corpo. Durante a ausência não poupamos horas. Adiava por um tempo que é a nossa aspiração." 

     Minha avó ficou encantada de ouvir as cartas da Sra. de Sévigné da mesma forma como o teria feito. Assombra que um homem pudesse compreendê-las tão bem. Encontrava no Sr. de Charles delicadezas e sensibilidade femininas. Mais tarde, quando estávamos a sós, avó e eu falamos dele, concordando em que devia ter sofrido a influência de uma mulher, sua mãe, ou, mais tarde, de sua filha se tinha filhos. Quanto pensava: "Uma amante", reportando-me à influência que a de Saint-Loup pudesse ter sobre ele, o que me fazia notar até que ponto pode requintar um homem à uma mulher com quem ele convive.

- E, uma vez junto da filha, ela provavelmente nada teria a dizer. - respondeu a Sra. de Villeparisis.
- Claro que sim; mesmo que fossem aquelas coisas que dizia serem "tão insignificantes que só tu e eu sabemos apreciar". E, em todo caso, estava ao lado dela. E La Bruyere diz que isso é tudo: "Se estamos junto dos seres queridos, tanto faz falar-lhes ou não." 
- Tem razão; é a única felicidade - acrescentou o Sr. de Charles com voz melancólica-, e infelizmente a vida é tão mal arranjada que essa felicidade muito raramente podemos desfrutá-la. A Sra. de Sévigné é muito menos digna de compaixão que os outros, pois passou grande parte de sua vida junto de quem amava.
- Esqueces que não se trata de amor e sim da filha.
- O importante na vida, entretanto, não é o que se ama e sim sentir o amor, -replicou ele num tom peremptório, compenetrado e quase categórico.- O que a Sra. de Sévigné sentia pela filha pode parecer-se, com maior propriedade, à paixão que Racine pintou em Andrômaca ou na Pedra e não às frívolas relações do jovem Sévigné com suas amantes. Da mesma forma, o amor de alguns místicos por Deus. Os limites muito exíguos que traçamos em torno do amor decorrem apenas da nossa grande ignorância da vida.
- Gosta muito da Andrômaca e da Fedra? - perguntou Saint-Loup ao tio, num tom levemente desdenhoso.
- Há mais verdade numa tragédia de Racine do que em todos os dramas de Victor Hugo. respondeu o Sr. de Charles.- 
- A sociedade é absolutamente medonha. - sussurrou-me Saint-Loup ao ouvido. - Preferir Racine a Victor Hugo, afinal, é terrível! - 

     Estava sinceramente entristecido com as palavras do tio, mas o prazer de dizer "afinal" e sobretudo "terrível" o consolava.
     Nessas reflexões sobre a tristeza de viver separado daquilo que se ama (reflexões que fizeram minha avó dizer que o sobrinho da Sra. de Villeparisis compreendia certas obras bem melhor que a tia, e principalmente que estava em nível muito superior ao da maioria das pessoas da sociedade), o Sr. de Charles não deixava apenas transparecer uma finura de sentimento que, de fato, os homens raramente mostram; sua própria voz, semelhante a certas vozes de contralto em que não está suficientemente cultivado o registro médio, e cujo canto parece o dueto alternado de um rapaz e de uma mulher, colocava-se nas notas altas no momento em que exprimia estes pensamentos tão delicados, adquirindo uma doçura imprevista, como se contivesse coros de vozes de noivas, de irmãs, que disseminassem a sua ternura. Mas o bando de donzelas que o Sr. de Charles, com todo o seu horror por qualquer tipo de efeminamento, ficaria tão aflito de abrigar em sua voz, não se limitava à interpretação, à modulação dessas passagens sentimentais. Muitas vezes, enquanto conversava, o Sr. de Charles deixava ouvir o seu riso agudo e fresco de colegiais de pensionato ou de moças coquetes, que troçavam do próximo com malícias de pícaras e espertalhonas.
      Contou que uma casa que pertencera à família, onde uma vez dormiu Maria Antonieta, e cujo parque fora desenhado por Le Nôtre, era propriedade - dos ricos financistas Israel, que o tinham comprado.

- Israel é, pelo menos, o nome que usam essas pessoas, e me parece um vocábulo genérico, étnico, em nome próprio. Não se sabe; talvez essa casta de gente nem tenha nome é designada apenas pela coletividade a que pertencem. Dá no mesmo! Ter sido a moradia dos Guermantes e ser propriedade dos Israel!!! - gritou. - Isto me lembra aquele quarto do castelo de Blois, do qual me dizia o guarda que me guiava, visita: - Era aqui que Maria Stuart rezava; e agora é onde guardo minhas vassoura - Naturalmente, nunca mais quero saber dessa casa, que está desonrada, como não quero saber da minha prima, Clara de Chimay, que largou o marido. Mas conservo a fotografia da casa quando ainda estava intacta, como a da princesa num quartel, seus grandes olhos só viviam para meu primo. A fotografia ganha um pouco a dignidade que lhe falta quando deixa de ser reprodução da realidade e nos mostra coisas que já não existem. Poderia lhe dar uma, visto que esse tipo de arquitetura lhe interessa - disse à minha avó. Nesse momento, percebendo que o lenço bordado que trazia no bolso deixava entrever a orla colorida, empurrou-o mais para dentro, com o rosto assustado de uma mulher pudica, mas não inocente, que dissimula atrativos físicos que, por excesso de escrúpulo, julga indecentes. - Imagine a senhora continuou que tais pessoas começaram por destruir o parque do Nôtre, o que é tão criminoso quanto estraçalhar um quadro de Poussin. Por esse motivo, esses Israel deveriam estar na cadeia. É verdade - acrescentou com sorriso, após um momento de silêncio - que sem dúvida há muitos outros motivos para que devessem ser presos! Em todo caso, imagine o efeito que faz desses prédios um jardim à inglesa.

- Mas a casa é do mesmo estilo do Petit Trianon - disse a Sra. de Villeparisis -, e Maria Antonieta mandou fazer ali um jardim inglês.
- Que, da mesma forma, põe a perder a fachada de Gabriel. - respondeu o Sr. de Charles. - Evidentemente, seria um ato de selvageria mandar desmanchar agora o Hameau. Mas, sejam quais forem os gostos de hoje, duvido muito esse respeito, um capricho da Sra. Israel tenha o mesmo prestígio que a lembrança da rainha.

     Nesse meio tempo, minha avó me fizera sinal para que subisse para deitar, apesar da insistência de Saint-Loup que, para grande vergonha minha, dissera, diante do Sr. de Charles, à tristeza que eu sentia muitas vezes de noite, antes de dormir, e que seu tio deveria considerar algo bem pouco viril. Demorei ainda instantes, depois saí; e fiquei muito espantado quando, logo após, tendo ouvido bater a porta do quarto e perguntado quem era, percebi a voz do Sr. de Charles que dizia em tom seco:

- É Charles. Posso entrar, senhor? Senhor continuou no mesmo tom, tão logo fechou a porta -, há pouco meu sobrinho contava que o senhor estaria um tanto aborrecido antes de dormir, e, por outro lado, que é admirador dos livros de Bergotte. Como tenho na mala um deles, que o senhor provavelmente não conhece, estou trazendo-o para que o ajude a passar esses momentos em que não se sente feliz.

     Agradeci ao Sr. de Charles, emocionado, e lhe disse que, pelo contrário, receara que o que Saint-Loup havia dito acerca do meu mal-estar com a aproximação da noite me tivesse feito parecer a seus olhos mais estúpido ainda do que era.

- Claro que não respondeu ele num tom mais suave. - O senhor talvez não tenha méritos pessoais, tão poucas pessoas o têm! Mas, ao menos por algum tempo, será jovem, o que e sempre uma sedução. Além disso, senhor, a maior das asneiras é achar ridículos ou censuráveis os sentimentos que não se tem. Gosto da noite e o senhor me diz que ela o atemoriza; gosto do aroma das rosas e tenho um amigo a quem o seu cheiro provoca febre. Julga que, por isso, acho que ele valha menos que eu? Esforço-me por compreender tudo, e evito condenar seja o que for. Enfim, não se lamente muito, não digo que essa tristeza não seja penosa; sei o que se pode sofrer por determinadas coisas que os outros não compreenderiam. Mas pelo menos o senhor empregou bem o seu afeto em sua avó. Sempre a vê. E, depois, é uma afeição lícita, isto é, bem correspondida. E há tantas outras de que não se pode dizer o mesmo!

     Andava de um lado para o outro, no quarto, olhando um objeto, pegando outro para examiná-lo. Tinha a impressão de que desejava anunciar-me algo e não sabia em que termos fazê-lo.

- Tenho um outro livro de Bergotte aqui, vou mandar buscá-lo - acrescentou, tocando a campainha. Apareceu um groom dentro de instantes. - Vá chamar o mordomo. Só ele é capaz de cumprir um recado com inteligência - disse o Sr. De Charles com altivez. 
- O senhor Aimé, senhor? indagou o groom. 
- Não sei o seu nome, mas sim, lembro-me de ter ouvido que o chamavam de Aimé. Vá depressa, não tenho tempo a perder.
- Num instante ele estará aqui, senhor; acabei de vê-lo lá embaixo. - respondeu o groom, que desejava mostrar-se a par de tudo. Passou-se algum tempo. O groom voltou. 
- O Sr. Aimé já está deitado, senhor. Mas posso me encarregar do recado. 
- Não, o que tem a fazer é acordá-lo. 
- Não posso, senhor, ele não dorme aqui. 
- Então, deixe-nos em paz. 
- Mas, senhor. - disse eu quando o groom se retirou-, é muito amável comigo; é suficiente um livro de Bergotte.
- Sim, tem razão. 

     O Sr. de Charles continuava a andar pelo quarto. Passaram-se alguns minutos desse modo. Depois, após uns instantes de hesitação, recomeçando várias vezes o ato interrompido, girou sobre si mesmo, lançou-me um:

- Boa-noite, senhor. - Num tom novamente áspero, e foi embora.

     Na manhã seguinte, o Sr. De Charles, que deveria partir nesse mesmo dia, aproximou-se de mim na praia num momento em que eu ia tomar meu banho, a fim de me dizer, da parte de minha avó que ela me esperava tão logo saísse da água; e, depois dos nobres sentimentos - o ouvira expressar na noite anterior, fiquei muito espantado ao ouvi-lo dizer beliscando-me o pescoço com uma familiaridade e um riso bem vulgares:

- Afinal, você está se lixando para a velha vovó, hein, malandrão!
- Como, senhor, eu a adoro!
- O Senhor. - replicou, recuando um passo e com ar glacial - é jovem ainda deve aproveitar para aprender duas coisas: a primeira é abster-se de expressar sentimentos muito naturais, por serem subentendidos; a segunda é não responder de pronto ao que lhe dizem sem ter penetrado bem o seu sentido. Se tomasse cuidados há pouco, teria evitado dar a impressão de falar a torto e a direito como um surdo e, com isso, acrescentar um ridículo a mais ao ridículo de usar âncoras bordadas no seu traje de banho. Emprestei-lhe um livro de Bergotte o qual estou precisando. Mande-o trazer dentro de uma hora por esse mordomo, nome risível que tão mal lhe assenta; suponho que a estas horas já não esteja deitado. Lembro-me que ontem à noite, cedo demais talvez, lhe falei das seduções da juventude, e lhe teria prestado maior favor se lhe apontasse a leviandade; as inconsequências e incompreensão. Espero, senhor, que esta pequena ducha seja mais salutar que o seu banho. Mas não fique aí parado, pois poderia sentir frio. Adeus, senhor.
  
      Com certeza se arrependeu dessas palavras, pois logo depois recebi numa encadernação em marroquim em cuja capa trazia embutida uma placa de couro que representava, em meio relevo, um ramo de miosótis o livro que emprestara e que lhe fizera chegarás mãos não por Aimé, que se achava de férias, mas pelo ascensorista.
     Tendo partido o Sr. de Charles, Robert e eu pudemos enfim ir jantar à casa dos Bloch. Durante essa pequena recepção, compreendi que aquelas histórias que Bloch julgava tão engraçadas sem o serem, e as pessoas a quem considerava "curiosíssimas", eram histórias e amigos do Sr. Bloch pai, que os julgava desse modo. Há um certo número de pessoas a quem admiramos na infância: um mais inteligente que o resto da família, um professor que exalta a nossos olhos a metafísica que nos revela, um colega mais velho que nós (o que Bloch foi para mim) que despreza o Musset da Esperança em Deus quando ainda a aprecia que, em compensação, quando tivermos chegado ao bom Leconte ou a Claude se extasiará como em:

A Saint-Claise, na Zuecca, 
Vós estareis, vós estareis bem à vontade...acrescentando: 
Pádua é um lugar bem bonito onde insignes doutores em Direito... Porém prefiro a polenta 
Passa em seu dominó preto 
A Toppatelle e de todas as "Noites" só retém: 
No Havre, em frente ao Atlântico, 
Em Veneza, no horrível Lido, 
Onde vem, na grama de um túmulo, 
Morrer o pálido Adriático. 

     Ora, dessas pessoas a quem admiramos sem hesitar, se recolhem e citam coisas bastante inferiores a outras que recusaríamos severamente caso nos deixássemos guiar pelo nosso próprio gosto, assim como um escritor emprega num romance, sob a alegação de que são verdadeiras, "frases" e personagens que, num conjunto vivo, são um peso morto, parcela medíocre. Os retratos de Saint-Simon, que ele escreveu sem admirar-se, são sem dúvida admiráveis; mas os rasgos, que considera deliciosos, das pessoas de espírito que conheceu hoje em dia nos parecem medíocres ou ininteligíveis. Ele teria desdenhado inventar coisas, que registra como sendo tão finas ou pitorescas, da Sra. Comuel ou de Luís XIV, o que afinal é fato que se observar em outros escritores e comporta diversas interpretações, das quais basta neste momento a seguinte; que, quando o escritor se acha no estado de espírito daquele que "observa", encontra-se no estado de espírito de nível muito inferior ao daquele que cria.
      Portanto, havia, encravado dentro do meu colega Bloch, um pai Bloch que se atrasava 40 anos em relação ao filho, contava anedotas insossas das quais ria, no fundo do filho, assim como fazia o pai Bloch exterior e verdadeiro, pois ao riso que este último soltava, não sem repetir duas ou três vezes à última frase para que o público saboreasse bem a história, acrescentava-se a gargalhada ruidosa com que o filho, à mesa, não deixava de saudar as anedotas do pai. Assim é que, depois de haver dito coisas muito inteligentes, o jovem Bloch, manifestando a herança recebida da família, nos contava pela trigésima vez alguns desses gracejos que o pai dava a luz (juntamente com a casaca) somente nos dias solenes em que o filho trazia alguém que valia a pena deslumbrar: um de seus professores, um colega que obtinha todos os prêmios, ou, naquela noite, Saint-Loup e eu. Por exemplo: "Um militar muito culto, que deduzira sabiamente, com base em provas, por que motivos infalíveis os japoneses, na guerra russo-japonesa, seriam vencidos e os russos vitoriosos", ou então: "É um homem eminente que passa por ser grande financista nos meios políticos e por um grande político nos meios financeiros." Essas histórias eram intercambiáveis com uma anedota relativa ao barão de Rothschild e referente a sir Rufus Israel, personagens postos em evidência de forma equívoca, que podia dar a entender que o Sr. Bloch os conhecera pessoalmente.
      Também caí na armadilha e, pela maneira que o Sr. Bloch pai falava, Bergotte, julguei que era um de seus velhos amigos. Ora, Bloch pai só conhecia pessoas célebres "sem conhecê-las", por tê-las visto de longe no teatro, nos bulevares. Aliás, imaginava que seu rosto, seu nome e sua personalidade não eram estranhos a elas, e que, ao vê-lo, eram muitas vezes obrigadas a reprimir um profundo desejo de saudá-lo. As pessoas da aristocracia conhecem diretamente os homens de talento, levam-nos para jantar, e nem por isso os compreendem melhor. Quando se viveu nesse ambiente, a estupidez das pessoas que o constituem inspira desejos de frequentar círculos mais modestos, onde se conhecem homens de talento "sem conhecê-los", e os supomos mais inteligentes que são. Eu acabara de comprová-lo, falando de Bergotte. O Sr. Bloch pai não era o único a obter êxito na casa. Meu colega ainda mais o obtinha com as irmãs; não cessava de as entreter em tom resmungão, metendo o nariz no prato; assim, as fazia rir até às lágrimas. Além do mais, elas haviam adotado a língua do irmão, que falavam correntemente como se fosse obrigatória e o único objetivo de pessoas inteligentes. Quando chegamos, a mais velha disse a uma das menores:

- Vai avisar nosso sábio pai e nossa mãe venerável.
- Cadelas - disse-lhes Bloch - Apresento-lhes o cavalheiro Saint-Loup, o de dardos rápidos, que veio por uns dias de Boncieres, a de casa de pedra polida, fecunda em cavalos.

     Como era tão vulgar como letrado, o discurso terminava habitualmente com um gracejo menos homérico:

- Vamos, feches um pouco mais esses belos broches. Que escândalo é esse? Afinal, não sei o que querem com isso.

     E as senhoritas Bloch se estorciam numa tempestade de risos. Disse à elas quantas alegrias o irmão me havia proporcionado ao me recomendara a leitura de Bergotte, cujos livros adorava.

continua na página 150...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - k)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

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