terça-feira, 15 de abril de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Quinto - Para Caçada Tenebrosa Matilha Silenciosa / III - Veja-se a planta de Paris em 1827

Victor Hugo - Os Miseráveis

Segunda Parte - Cosette

Livro Quinto — Para Caçada Tenebrosa Matilha Silenciosa

III - Veja-se a planta de Paris em 1827
     
      Ao cabo de trezentos passos, chegou a um lugar em que a rua se bifurcava, dividindo se em duas, uma que ladeava à esquerda, outra à direita. Jean Valjean tinha diante de si como que as duas hastes de um Y. Qual delas escolher? 
     Tomou pela direita sem hesitações. 
     Por quê?
     Porque a ramificação esquerda conduzia para o arrabalde, isto é, para os lugares habitados, e a direita para o campo, para os lugares desertos.
     A este tempo, porém, já não caminhavam com tanta rapidez. O passo de Cosette fazia afrouxar o de Jean Valjean, o que o obrigou a pegar nela ao colo outra vez.
     Cosette apoiava a cabeça no ombro do velho, sem dizer palavra.
     De tempos a tempos, ele voltava-se e olhava, tendo sempre o cuidado de se conservar do lado escuro da rua. Até ao ponto em que ele se achava, a rua não fazia curvas. Das duas ou três primeiras vezes que se voltou não viu nada, era profundo o silêncio, e por isso continuou o seu caminho um tanto mais tranquilizado. De repente, em certa ocasião em que se voltou, pareceu-lhe ver ao longe, na parte da rua por onde acabava de passar, uma coisa a mover-se no meio da escuridão.
      Jean Valjean não andou, precipitou-se para a frente, esperando encontrar algum beco transversal para onde se evadisse e que lhe perdessem o rasto mais uma vez.
     Foi dar ao pé de um muro.
     Este muro, contudo, não impedia que se passasse além: orlava um beco transversal no qual terminava a rua por onde tomara Jean Valjean.
     Ainda aqui foi-lhe necessária uma resolução: tomar pela esquerda ou pela direita.
      Olhou para a direita. O beco prolongava-se tortuoso por entre casas, que eram cocheiras ou celeiros, mas não tinha saída. Via-se distintamente a parede que o fechava.
     Olhou para a esquerda. O beco deste lado era aberto e ao cabo de uns duzentos passos desembocava numa rua de que era afluente. Era deste lado que estava a salvação.
     No momento em que Jean Valjean se decidiu a voltar para a esquerda, para alcançar a rua que entrevia no extremo do beco, avistou na esquina que ele formava para aquela rua, uma espécie de estátua negra e imóvel.
     Era um homem que evidentemente acabava de ali ser postado e que estava à espera, impedindo a passagem.
      Jean Valjean recuou.
     O ponto de Paris em que Jean Valjean se achava, situado entre o arrabalde de Santo António e a Rapée, é do número dos que os trabalhos recentes transformaram completamente, afeando-os, segundo uns, segundo outros transfigurando-os. Os campos, as estâncias de madeira, as casas velhas, desapareceram para dar lugar a grandes ruas novas, a arenas, circos e hipódromos, a estações de caminhos de ferro, a uma prisão, Mazas; finalmente, como se vê, ao progresso com o seu corretivo.
     Há meio século, nessa linguagem popular, toda formada de tradições, que teima em chamar ao Ins tuto as Quatro Nações e Faydeau à Ópera-Cómica, o sí o a que Jean Valjean chegara chamava-se o Petit-Picpus. Porta de S. Tiago, porta de Paris, barreira dos sargentos, Porcherons, Galeota, Celes nos, Capuchinhos, Mail, Bourbe, a Árvore de Cracóvia, Pequena Polónia, Petit-Picpus, são os nomes, do velho Paris sobrenadando no novo. A memória do povo flutua sobre estes fragmentos do passado.
      O Petit-Picpus, que mal existiu, pois nunca passou do esboço de um bairro, tinha quase o aspecto monacal de uma cidade espanhola. Os caminhos eram mal nivelados, as ruas mal calçadas. Excetuando as três ruas de que vamos falar, tudo o mais eram paredes e solidão. Nem uma loja, nem uma carruagem; apenas alguma luz a uma janela ou outra, porém tudo apagado passadas as dez horas. Jardins, conventos, estâncias de madeira, pântanos; raras casas baixas e grandes paredes da altura das casas.
     Eis o que este bairro era no século passado. A revolução já o havia maltratado bastante, A municipalidade republicana demolira-o, esburacara-o, desmoronara-o. Há trinta anos este bairro, ultimamente convertido em depósitos de entulho, desaparecia sob os borrões das novas construções. Hoje o traço que lhe passaram por cima escondeu-o totalmente.
     O Petit-Picpus, de que em planta nenhuma atual restam vestígios, está claramente indicado na planta de 1827, impressa em Paris na oficina de Diniz Thierry, rua de S. Tiago, defronte da rua do Gesso, e em Lyon na de Jean Girin, rua dos Capelistas, à Prudência. O Petit-Picpus era o que acima chamamos um Y de ruas, formado pelo Caminho Verde de Santo António, que se apartava em duas ramificações, das quais a esquerda tomava o nome de viela do Picpus e a direita o de rua de Polonceau. As duas hastes do Y eram reunidas no seu ápice como que por uma barra, que se chamava a rua do Muro Direito, onde vinha terminar a rua de Polonceau.
     Quanto à viela do Picpus, passava adiante, subindo em direção ao mercado de Lenoir.
     Quem, ao vir do Sena, chegava à extremidade da rua de Polonceau, encontrava à esquerda a rua do Muro Direito, que fazia rapidamente volta em ângulo reto, em frente à parede desta rua e à direita um prolongamento truncado da rua do Muro Direito, sem saída, chamado o beco de Genrot.
      Era onde estava Jean Valjean.
     Como acabamos de dizer, este, ao descobrir o perfil negro, de vigia à esquina da rua do Muro Direito e da viela do Picpus, recuou. Não restava dúvida nenhuma. Era espiado por aquele fantasma.
     Que fazer?
      Já não era tempo de retroceder. O que ele pouco antes vira por trás de si agitar-se na sombra a alguma distância era, sem dúvida, Javert e a sua escolta. Javert já de certo estava no princípio da rua, em cuja extremidade se achava Jean Valjean. Javert, que, segundo todas as aparências, conhecia aquele pequeno dédalo, tomara as suas precauções, mandando guardar a saída dele por um dos seus homens. Estas conjecturas, tão parecidas a evidências, tumultuaram logo como um punhado de pó arrebatado por uma súbita rajada de vento no doloroso cérebro de Jean Valjean. Examinou, portanto, o beco de Genrot; deste lado, a passagem tapada. Examinou a viela do Picpus; deste lado, uma sentinela, cuja figura escura ele via destacar-se em negro sobre o pavimento inundado pela luz branca da Lua. Avançar, era cair nas mãos daquele homem; recuar, era lançar-se nas de Javert. Ao sentir-se como que apanhado numa rede, que se ia lentamente apertando, Jean Valjean fitou os olhos no céu com uma expressão de angústia desesperada.

continua na página 348...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Quinto - III - Veja-se a planta de Paris em 1827
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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