O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Terceira Parte
7.continuando...
.
É difícil descrever a cena
tragicômica que se seguiu. O pasmo geral no primeiro momento foi
instantaneamente segui do por uma gargalhada. E uma
boa parte do grupo não pôde conter um acesso de hilaridade ante aquela
situação grotesca.
Ippolít soluçava com repelões que pareciam histéricos, torcendo as mãos,
voltando-se para este, para aquele, até mesmo para Ferdichtchénko de quem
acabou por segurar ambas as mãos jurando que se tinha esquecido, “sim,
esquecido completamente e não de propósito”, de meter a cápsula; que “estava
com todas elas ali no bolso do colete, mais de uma dúzia (mostrou-as a todos,
voltando-se bem). Mas que não as colocara antes receando uma possível
explosão na algibeira”.
Investiu para Keller, pediu ao príncipe e a Evguénii
Pávlovitch que fizessem com que aquele lhe devolvesse a pistola, pois haveria de
lhes mostrar a todos, sim, a todos que “tinha honra, honra...”, que não era um
desavergonhado, não! E acabou caindo exangue, sendo levado para o escritório de Míchkin.
Liébediev,
cuja bebedeira passara instantaneamente com o choque, tratou de mandar vir
um médico, permanecendo ele em pessoa ao lado do paciente, com a filha, o
filho, Burdóvskii e o general. Vendo Ippolít ser carregado completamente sem
sentidos, Keller, estatelado no meio da varanda, posição que repetiu daí a
segundos no meio do escritório, fez a seguinte declaração, muito exaltado,
destacando palavra por palavra, com um timbre que ninguém poderia deixar de
ouvir:
- Senhores, se alguém se atrever na minha presença a insinuar sequer que a
cápsula foi esquecida intencionalmente, dando assim a entender que tudo não
passou de uma farsa deste infeliz moço, tem de se haver comigo!
Tal desafio não
mereceu resposta. Já agora os convivas tinham mais era pressa de ir embora.
Ptítsin, Gánia e Rogójin saíram juntos. O príncipe ficou muito surpreendido de
Evguénii Pávlovitch. ou por esquecimento, ou deliberadamente, se retirar sem o
colóquio marcado para depois de tudo.
- Mas o senhor não pretendia conversar comigo depois que todos se fossem?
- De fato, de fato - disse Evguénii Pávlovitch sentando-se já agora e fazendo o
príncipe se sentar ao seu lado. - Mas prefiro adiar nossa conversa. Confesso-lhe
que toda esta cena me pôs indisposto, e o mesmo lhe deve ter acontecido. Estou
com a cabeça confusa. De mais a mais, o que desejo conversar é assunto
muitíssimo importante para qualquer de nós dois. E que, príncipe, pela primeira
vez na vida quero agir de modo estritamente correto, isto é, agir sem nenhum
motivo subentendido. Ora, neste momento, depois de tudo
quanto se passou, me sinto incapaz de fazer direito seja o que for; e o mesmo
decerto há de lhe acontecer... Assim pois... conversaremos mais tarde. Quem
sabe até se ao tratarmos do assunto após estes três dias que preciso ficar em
Petersburgo, ele já não estará muito mais fácil para nós ambos?
Feito o quê,
tornou a se levantar, ficando assim esquisito se haver sentado pouco antes. O
príncipe achou mesmo que Radómskii estava irritado, com uma expressão hostil
no olhar, coisa que não havia antes.
- Naturalmente vai para perto do rapaz,
agora?...
- Vou sim... Fiquei apreensivo.
- Ora! De quê? Ele viverá não três semanas, mas o dobro; poderá mesmo
melhorar muito, aqui. Mas a melhor coisa a fazer é descartar-se dele.
- Quem
sabe se eu próprio não o induzi a esse gesto tresloucado, deixando de lhe dar
conselhos?... Não vá ele julgar que eu não acredite que tenha querido se matar,
mesmo... E, a propósito, Evguénii Pávlovitch, que acha?
- Não pense nisso. Só
mesmo um bom coração como o seu se pode inquietar. Pode ser que haja casos
destes, mas na vida real jamais soube de quem se matasse somente com o
propósito de receber aplausos ou por despeito de não os ter recebido. Tampouco
creio que se trate de uma exibição de pusilanimidade. Seja o que for, o melhor é
o príncipe se livrar dele assim que puder, ainda hoje.
- Acha que tornará a tentar contra a vida?
- Não, já agora não o fará. Mas fique
em guarda contra esses nossos Lacenaires de segunda mão. Não se esqueça de
que o crime é, via de regra, a válvula de escapamento desses indivíduos nulos.
revoltados, ávidos e impetuosos.
- Será ele um Lacenaire?
- A essência é a mesma, embora o empolado seja diferente, talvez. Não tenha
dúvidas de que esse indivíduo não seja capaz de dar cabo de uma dúzia de
pessoas simplesmente como uma ..façanha” conforme ele próprio o disse
durante a leitura da tal “Explicação”. Essa espécie de ameaça contida em tais
palavras, vai me obrigar a andar de olho atento, doravante. Perdi o sono...
- Não
terá o senhor ficado nervoso em excesso?
- Ora, príncipe, o senhor é uma
criatura formidável. Então não o julga, depois de tudo isso, capaz de matar uma
dúzia de pessoas?
- Francamente, não sei responder. Tudo isso é muito estranho;
mas...
- Está bem, como queira, como queira! - concluiu Evguénii Pávlovitch,
contrafeito.
- Aliás, o senhor não é criatura que se deixe atemorizar. O que importa é
que não seja uma das doze!
- Não me parece que ele venha a matar ninguém - disse Míchkin olhando para
Evguénii Pávlovitch, mas com o pensamento longe.
Evguénii Pávlovitch deu uma risada
significativa, - Adeus. Já é tempo de ir embora. Chegou a reparar que ele legou a Agláia
Ivánovna uma cópia, ou o original da “Explicação”?
- Reparei, sim. Fez-me
espécie...
- Tanta como no caso dos doze candidatos à morte?...
E, rindo outra vez, Evguénii
Pávlovitch se retirou.
Uma hora depois disso, isto é, entre três e quatro da
madrugada, o príncipe resolveu dar uma volta pelo parque. Tentara dormir, mas
as violentas pancadas do coração não haviam deixado. A casa já voltara à
tranquilidade. O pobre rapaz pegara no sono. O médico que o examinou
declarara não haver perigo nenhum.
Liébediev, Kólia e Burdóvskii se tinham deitado no mesmo quarto para se
revezarem em guarda. Portanto, não havia nada a temer. Mas a intranquilidade
de Míchkin crescia sempre. Percorreu o parque, olhando distraído para tudo
quanto o rodeava. Espantou-se quando viu que havia chegado à rotunda existente
diante da estação. E só reconheceu o local pelo coreto de música e pelos bancos
encarreirados diante das estantes. Aquele cenário lívido o impressionou.
Regressando, tomou o atalho por onde viera na véspera com as Epantchiná, até
que chegou perto do banco verde marcado como local do encontro. Sentou-se e
imediatamente deu uma gargalhada, logo ficando indignado consigo mesmo.
Invadiu-o de novo a tristeza. Que vontade de ir embora! Mas, para onde? Em
uma árvore, por cima da sua cabeça, um passarinho chilreava: começou a
procurá-lo por entre as folhas. Nisto o passarinho voou e o príncipe, por analogia,
se recordou da música no “ardente raio de sol” sobre que escrevera Ippolít, “e que
sabia que tinha direito a comparticipar do festival da vida e tomava parte no coro
geral, só ele sendo um banido de tudo”. Antes, ao ouvir a frase, se impressionara;
e agora se estava lembrando dela.
Repentinamente, evocações de coisas antigas, já desde muito sedimentadas,
começaram a tumultuar dentro dele logo se pondo a rodeá-lo. Sim, fora na Suíça,
no primeiro ano, logo no começo. Não passava então de um idiota. Não sabia
sequer falar direito... muitas vezes ficando apatetado diante das pessoas. Certa vez subia pelo flanco de uma montanha, por um dia claro e
ensolarado. E caminhou horas e horas, com o espírito avassalado por uma ideia
difusa e pertinaz. Diante dele, o céu como um esmalte; embaixo, o lago; e, em
toda a volta, o horizonte luminoso e ilimitado parecendo não ter fim. Pusera-se a
contemplá-lo demoradamente, tomado de angústia. E agora se lembrava muito
bem que havia estendido as mãos para aquele azul infinito e radioso, derramando
lágrimas. O que o torturava então era sentir-se totalmente fora de tudo aquilo.
Que festival era aquele? Que significava aquele imenso e eterno espetáculo
sempre renovado e que o atraíra sempre, desde a mais longínqua infância, mas
no qual jamais pudera tomar parte? Cada manhã o mesmo sol deslumbrante!
Todos os dias o mesmo arco-íris como um diadema sobre a cascata! Todas as
tardes a geleira fulgurando envolta em púrpura ao fundo do horizonte! “Cada
diminuta mosca que zunia ao redor dele no ardente raio do sol tinha a sua parte
no coro, sabia o seu lugar, gostava, e era feliz!” Cada folha de relva cresce e é
feliz. Tudo tem a sua trajetória, cada coisa sabe que possui um itinerário e por ele
adiante envereda por entre hosanas! Não há quem não saia de manhã com uma
canção e não volte ao crepúsculo, cantando... Só ele não sabe nada, não
compreende nada, nem homens, nem sons. Não comparticipa de nada, é um
banido. Oh! Naturalmente que não dissera se servindo de palavras, sua
interrogação tendo sido apenas mental. Era um sofrimento mudo de quem não
atina com um enigma; mas agora lhe parecia que havia dito tudo aquilo com as
mesmas palavras de Ippolít, a ponto da frase relativa à mosca parecer sua,
Ippolít o havendo plagiado, tomando-a das suas lágrimas e dos seus pensamentos
de então. Tamanha certeza teve disso que enquanto refletia, seu coração
acelerava o ritmo.
Sentado naquele banco, adormeceu, com o queixo sobre o peito: mas a agitação
perdurava. Já no limiar do sono o envolveu a noção de que Ippolít mataria uma
dúzia de pessoas; e sorriu ante o absurdo dessa hipótese. Circundava-o uma
claridade deslumbrante: em toda a volta só havia sossego quebrado apenas pelo
sussurro das folhas que tomavam a solidão e a luminosidade maiores. Sonhou
uma porção de coisas. Sonhos agitados que de momento a momento lhe
produziam estremeções. Por último lhe apareceu uma mulher. Reconheceu-a. E
reconhecê-la era torturante. Sabia o seu nome. Reconhecê-la-ia em qualquer
lugar; mas - que coisa estranha – o seu rosto de agora não era o mesmo que
conhecia antes, e isso lhe ocasionava uma relutância perturbadora em
reconhecê-la como sendo a mesma. O rosto dessa criatura
deixava transparecer tal remorso, tamanho pavor que parecia uma criminosa
cruel correndo depois de haver cometido um crime hediondo. Pelas faces
brancas lhe deslizavam lágrimas. Passando por ele pôs o dedo na boca
advertindo-o que não dissesse nada e a seguisse com a maior precaução. Vê-la,
assim, fez gelar seu coração. Nada, nada, absolutamente nada sobre a face da
terra o induziria a acreditar que ela fosse uma criminosa. Mas percebeu que
estava para suceder algo de terrível que lhe iria arruinar a vida para sempre.
Aquela mulher ansiava por lhe mostrar qualquer coisa no parque, não longe dali.
Ergueu-se para a seguir. E repentinamente escutou, bem próximo, o som alegre
de uma risada cristalina, ao mesmo tempo que certa mão o tocava. Segurou essa
mão, apertou-a com força... e acordou. Diante dele, rindo, estava Agláia.
continua página 383...
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