segunda-feira, 21 de abril de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Terceira Parte (7c) - É difícil descrever a cena

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Terceira Parte
7.

continuando...
.
      É difícil descrever a cena tragicômica que se seguiu. O pasmo geral no primeiro momento foi instantaneamente segui do por uma gargalhada. E uma boa parte do grupo não pôde conter um acesso de hilaridade ante aquela situação grotesca.
     Ippolít soluçava com repelões que pareciam histéricos, torcendo as mãos, voltando-se para este, para aquele, até mesmo para Ferdichtchénko de quem acabou por segurar ambas as mãos jurando que se tinha esquecido, “sim, esquecido completamente e não de propósito”, de meter a cápsula; que “estava com todas elas ali no bolso do colete, mais de uma dúzia (mostrou-as a todos, voltando-se bem). Mas que não as colocara antes receando uma possível explosão na algibeira”.
     Investiu para Keller, pediu ao príncipe e a Evguénii Pávlovitch que fizessem com que aquele lhe devolvesse a pistola, pois haveria de lhes mostrar a todos, sim, a todos que “tinha honra, honra...”, que não era um desavergonhado, não! E acabou caindo exangue, sendo levado para o escritório de Míchkin.
     Liébediev, cuja bebedeira passara instantaneamente com o choque, tratou de mandar vir um médico, permanecendo ele em pessoa ao lado do paciente, com a filha, o filho, Burdóvskii e o general. Vendo Ippolít ser carregado completamente sem sentidos, Keller, estatelado no meio da varanda, posição que repetiu daí a segundos no meio do escritório, fez a seguinte declaração, muito exaltado, destacando palavra por palavra, com um timbre que ninguém poderia deixar de ouvir:

- Senhores, se alguém se atrever na minha presença a insinuar sequer que a cápsula foi esquecida intencionalmente, dando assim a entender que tudo não passou de uma farsa deste infeliz moço, tem de se haver comigo!

     Tal desafio não mereceu resposta. Já agora os convivas tinham mais era pressa de ir embora. Ptítsin, Gánia e Rogójin saíram juntos. O príncipe ficou muito surpreendido de Evguénii Pávlovitch. ou por esquecimento, ou deliberadamente, se retirar sem o colóquio marcado para depois de tudo. 

- Mas o senhor não pretendia conversar comigo depois que todos se fossem? 
- De fato, de fato - disse Evguénii Pávlovitch sentando-se já agora e fazendo o príncipe se sentar ao seu lado. - Mas prefiro adiar nossa conversa. Confesso-lhe que toda esta cena me pôs indisposto, e o mesmo lhe deve ter acontecido. Estou com a cabeça confusa. De mais a mais, o que desejo conversar é assunto muitíssimo importante para qualquer de nós dois. E que, príncipe, pela primeira vez na vida quero agir de modo estritamente correto, isto é, agir sem nenhum motivo subentendido. Ora, neste momento, depois de tudo quanto se passou, me sinto incapaz de fazer direito seja o que for; e o mesmo decerto há de lhe acontecer... Assim pois... conversaremos mais tarde. Quem sabe até se ao tratarmos do assunto após estes três dias que preciso ficar em Petersburgo, ele já não estará muito mais fácil para nós ambos? 

     Feito o quê, tornou a se levantar, ficando assim esquisito se haver sentado pouco antes. O príncipe achou mesmo que Radómskii estava irritado, com uma expressão hostil no olhar, coisa que não havia antes.

- Naturalmente vai para perto do rapaz, agora?... 
- Vou sim... Fiquei apreensivo. 
- Ora! De quê? Ele viverá não três semanas, mas o dobro; poderá mesmo melhorar muito, aqui. Mas a melhor coisa a fazer é descartar-se dele. 
- Quem sabe se eu próprio não o induzi a esse gesto tresloucado, deixando de lhe dar conselhos?... Não vá ele julgar que eu não acredite que tenha querido se matar, mesmo... E, a propósito, Evguénii Pávlovitch, que acha? 
- Não pense nisso. Só mesmo um bom coração como o seu se pode inquietar. Pode ser que haja casos destes, mas na vida real jamais soube de quem se matasse somente com o propósito de receber aplausos ou por despeito de não os ter recebido. Tampouco creio que se trate de uma exibição de pusilanimidade. Seja o que for, o melhor é o príncipe se livrar dele assim que puder, ainda hoje. 
- Acha que tornará a tentar contra a vida? 
- Não, já agora não o fará. Mas fique em guarda contra esses nossos Lacenaires de segunda mão. Não se esqueça de que o crime é, via de regra, a válvula de escapamento desses indivíduos nulos. revoltados, ávidos e impetuosos. 
- Será ele um Lacenaire? 
- A essência é a mesma, embora o empolado seja diferente, talvez. Não tenha dúvidas de que esse indivíduo não seja capaz de dar cabo de uma dúzia de pessoas simplesmente como uma ..façanha” conforme ele próprio o disse durante a leitura da tal “Explicação”. Essa espécie de ameaça contida em tais palavras, vai me obrigar a andar de olho atento, doravante. Perdi o sono...
- Não terá o senhor ficado nervoso em excesso? 
- Ora, príncipe, o senhor é uma criatura formidável. Então não o julga, depois de tudo isso, capaz de matar uma dúzia de pessoas? 
- Francamente, não sei responder. Tudo isso é muito estranho; mas... 
- Está bem, como queira, como queira! - concluiu Evguénii Pávlovitch, contrafeito.
- Aliás, o senhor não é criatura que se deixe atemorizar. O que importa é que não seja uma das doze! 
- Não me parece que ele venha a matar ninguém - disse Míchkin olhando para Evguénii Pávlovitch, mas com o pensamento longe.

     Evguénii Pávlovitch deu uma risada significativa, - Adeus. Já é tempo de ir embora. Chegou a reparar que ele legou a Agláia Ivánovna uma cópia, ou o original da “Explicação”?

- Reparei, sim. Fez-me espécie... 
- Tanta como no caso dos doze candidatos à morte?...

     E, rindo outra vez, Evguénii Pávlovitch se retirou.
     Uma hora depois disso, isto é, entre três e quatro da madrugada, o príncipe resolveu dar uma volta pelo parque. Tentara dormir, mas as violentas pancadas do coração não haviam deixado. A casa já voltara à tranquilidade. O pobre rapaz pegara no sono. O médico que o examinou declarara não haver perigo nenhum. Liébediev, Kólia e Burdóvskii se tinham deitado no mesmo quarto para se revezarem em guarda. Portanto, não havia nada a temer. Mas a intranquilidade de Míchkin crescia sempre. Percorreu o parque, olhando distraído para tudo quanto o rodeava. Espantou-se quando viu que havia chegado à rotunda existente diante da estação. E só reconheceu o local pelo coreto de música e pelos bancos encarreirados diante das estantes. Aquele cenário lívido o impressionou. Regressando, tomou o atalho por onde viera na véspera com as Epantchiná, até que chegou perto do banco verde marcado como local do encontro. Sentou-se e imediatamente deu uma gargalhada, logo ficando indignado consigo mesmo. Invadiu-o de novo a tristeza. Que vontade de ir embora! Mas, para onde? Em uma árvore, por cima da sua cabeça, um passarinho chilreava: começou a procurá-lo por entre as folhas. Nisto o passarinho voou e o príncipe, por analogia, se recordou da música no “ardente raio de sol” sobre que escrevera Ippolít, “e que sabia que tinha direito a comparticipar do festival da vida e tomava parte no coro geral, só ele sendo um banido de tudo”. Antes, ao ouvir a frase, se impressionara; e agora se estava lembrando dela.
     Repentinamente, evocações de coisas antigas, já desde muito sedimentadas, começaram a tumultuar dentro dele logo se pondo a rodeá-lo. Sim, fora na Suíça, no primeiro ano, logo no começo. Não passava então de um idiota. Não sabia sequer falar direito... muitas vezes ficando apatetado diante das pessoas.
      Certa vez subia pelo flanco de uma montanha, por um dia claro e ensolarado. E caminhou horas e horas, com o espírito avassalado por uma ideia difusa e pertinaz. Diante dele, o céu como um esmalte; embaixo, o lago; e, em toda a volta, o horizonte luminoso e ilimitado parecendo não ter fim. Pusera-se a contemplá-lo demoradamente, tomado de angústia. E agora se lembrava muito bem que havia estendido as mãos para aquele azul infinito e radioso, derramando lágrimas. O que o torturava então era sentir-se totalmente fora de tudo aquilo. Que festival era aquele? Que significava aquele imenso e eterno espetáculo sempre renovado e que o atraíra sempre, desde a mais longínqua infância, mas no qual jamais pudera tomar parte? Cada manhã o mesmo sol deslumbrante! Todos os dias o mesmo arco-íris como um diadema sobre a cascata! Todas as tardes a geleira fulgurando envolta em púrpura ao fundo do horizonte! “Cada diminuta mosca que zunia ao redor dele no ardente raio do sol tinha a sua parte no coro, sabia o seu lugar, gostava, e era feliz!” Cada folha de relva cresce e é feliz. Tudo tem a sua trajetória, cada coisa sabe que possui um itinerário e por ele adiante envereda por entre hosanas! Não há quem não saia de manhã com uma canção e não volte ao crepúsculo, cantando... Só ele não sabe nada, não compreende nada, nem homens, nem sons. Não comparticipa de nada, é um banido. Oh! Naturalmente que não dissera se servindo de palavras, sua interrogação tendo sido apenas mental. Era um sofrimento mudo de quem não atina com um enigma; mas agora lhe parecia que havia dito tudo aquilo com as mesmas palavras de Ippolít, a ponto da frase relativa à mosca parecer sua, Ippolít o havendo plagiado, tomando-a das suas lágrimas e dos seus pensamentos de então. Tamanha certeza teve disso que enquanto refletia, seu coração acelerava o ritmo.
     Sentado naquele banco, adormeceu, com o queixo sobre o peito: mas a agitação perdurava. Já no limiar do sono o envolveu a noção de que Ippolít mataria uma dúzia de pessoas; e sorriu ante o absurdo dessa hipótese. Circundava-o uma claridade deslumbrante: em toda a volta só havia sossego quebrado apenas pelo sussurro das folhas que tomavam a solidão e a luminosidade maiores. Sonhou uma porção de coisas. Sonhos agitados que de momento a momento lhe produziam estremeções. Por último lhe apareceu uma mulher. Reconheceu-a. E reconhecê-la era torturante. Sabia o seu nome. Reconhecê-la-ia em qualquer lugar; mas - que coisa estranha – o seu rosto de agora não era o mesmo que conhecia antes, e isso lhe ocasionava uma relutância perturbadora em reconhecê-la como sendo a mesma. O rosto dessa criatura deixava transparecer tal remorso, tamanho pavor que parecia uma criminosa cruel correndo depois de haver cometido um crime hediondo. Pelas faces brancas lhe deslizavam lágrimas. Passando por ele pôs o dedo na boca advertindo-o que não dissesse nada e a seguisse com a maior precaução. Vê-la, assim, fez gelar seu coração. Nada, nada, absolutamente nada sobre a face da terra o induziria a acreditar que ela fosse uma criminosa. Mas percebeu que estava para suceder algo de terrível que lhe iria arruinar a vida para sempre. Aquela mulher ansiava por lhe mostrar qualquer coisa no parque, não longe dali. Ergueu-se para a seguir. E repentinamente escutou, bem próximo, o som alegre de uma risada cristalina, ao mesmo tempo que certa mão o tocava. Segurou essa mão, apertou-a com força... e acordou. Diante dele, rindo, estava Agláia.

O Idiota: Terceira Parte (7c) - É difícil descrever a cena
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