em busca do tempo perdido
volume II
À Sombra das Moças em Flor
Segunda Parte
Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar
(q)
continuando...
A partir daquela tarde, eu, que nos dias anteriores havia pensado principalmente na maior delas, foi a dos tacos de golfe, presumível Srta. Simonet, que recomeçou a me preocupar. No meio das outras, ela muitas vezes parava, forçando as amigas, que pareciam respeitá-la muito, a também interromper a caminhada. É assim, fazendo alto, os olhos brilhantes sob o seu boné preto, que a revejo ainda agora, silhuetada contra a tela que o mar lhe faz, ao fundo, e separada de mim por um espaço transparente e azulado - o tempo transcorrido desde então-, primeira imagem, bem pequenina na minha memória, desejada, perseguida, depois esquecida, depois reencontrada, de um rosto que desde então com frequência projetei no passado para poder dizer comigo acerca de uma moça que estava em meu quarto:
"É ela!"
Porém, era talvez ainda a de pele de gerânio e olhos verdes a que mais desejaria
conhecer. Aliás, fosse qual fosse a que preferia avistar num determinado dia, as outras, sem ela,
bastavam para excitar-me; meu desejo, mesmo se inclinando ora por uma, ora por outra,
continuava - como a minha visão confusa do primeiro dia a reuni-las, a fazer delas o pequeno
mundo à parte, animado de uma vida comum, que de resto elas sem dúvida tinham a pretensão
de constituir; tornando-me amigo de uma delas, teria penetrado como um pagão requintado ou um
cristão escrupuloso entre os bárbaros em uma sociedade rejuvenescedora onde reinavam a
saúde, a inconsciência, a volúpia, a crueldade, a falta de intelectualidade e a alegria.
Minha avó, a quem havia contado minha conversa com Elstir e que se alegrava com todo
lucro intelectual que eu pudesse extrair de sua amizade, achava absurdo e pouco amável que eu
ainda não tivesse ido lhe fazer uma visita. Mas eu só pensava no pequeno grupo e, incerto quanto
à hora em que as moças passariam pelo molhe, não ousava afastar-me. Minha avó também se
espantava com a minha elegância, pois eu me lembrara de repente de roupas que até então
deixara no fundo da mala. Todo dia punha uma roupa diferente e chegara a escrever a Paris para
que me enviassem novos chapéus e gravatas. É um grande encanto que se acrescenta à vida
numa estância balneária como Balbec, que o rosto de uma linda moça, uma vendedora de
conchinhas, de doces, ou de flores, pintada em cores vivas no nosso pensamento, seja
diariamente para nós, desde a manhã, a finalidade de cada um desses dias ociosos e brilhante á
que a gente passa na praia. São então, e por isso mesmo, embora desocupados-alertas como
dias de trabalho, espicaçados, imantados, levemente tendentes a um momento próximo, aquele
em que, sempre comprando sablés, rosas, amonitás nos deleitaremos em ver, num rosto
feminino, as cores expostas tão puramente como numa flor. Mas pelo menos pode-se primeiro
falar com essas pequena vendedoras, o que evita construir com a imaginação as outras facetas
diversas que nos fornece a simples percepção visual, e recriar-lhes a vida, exagerar o seu
encanto, como diante de um retrato; principalmente, justo porque lhes falamos; podemos ficar
sabendo onde e a que horas voltara encontrá-las. Ora, não acontecia absolutamente o mesmo
comigo no que se referia às moças do pequeno grupo; visto que seus hábitos me eram
desconhecidos, quando não as via em certos dias ignorando o motivo de sua ausência, procurava
descobrir se se tratava de algo fixo, se só eram vistas de dois em dois dias, ou quando fazia
determinado tempo, ou se havia dias em que nunca apareciam. Imaginava-me previamente amigo
dela dizendo-lhes:
"Mas não estavam aqui em tal dia? -Ah, sim, é porque era sábados nós nunca vimos no
sábado porque..."
Ainda se fosse tão simples saber que no triste sábado era inútil insistir, que se poderia
percorrer a praia em todos os sentidos, sentar-se à frente da confeitaria, fingir comer um doce,
entrar na loja de curiosidades, esperar a hora de tomar banho, de ir ao concerto, a chegada da
maré, sentir o pôr-do-sol, a noite, sem ver o pequeno grupo desejado. Mas o dia fatal talvez não
voltasse uma vez por semana. Pode ser que não caísse forçosamente num sábado. Talvez certas
condições atmosféricas influíssem nele, ou talvez lhe fossem inteiramente alheias. Quantas
observações pacientes, mas não tranquilas, é necessário recolher sobre os movimentos
aparentemente irregulares desses mundos desconhecidos antes que possamos estar seguros que
não nos deixamos levar por coincidências, que nossas previsões não serão traídas, antes de
deduzirmos as leis corretas, adquiridas ao custo de cruéis experiências, dessa astronomia
apaixonado. Lembrando-me que não as vira no mesmo dia da semana que hoje, dizia comigo que
elas não viriam, que era inútil ficar na praia. E justamente as avistava. Era a compensação, um dia
que, assim como pudera supor que havia leis regulando retorno dessas constelações, calculara
ser um dia nefasto, elas não apareciam. Mesmo essa primeira incerteza, se as veria ou não no
mesmo dia, vinha acrescentar-se outra, mais grave, a de que jamais voltasse a vê-las, pois afinal
ignorava se deveriam partir para a América ou voltar a Paris. Isto era suficiente para me fazer com
que arriá-las. Podemos ter inclinação por uma pessoa. Mas, para desencadear essa tristeza, esse
sentimento do irreparável, essas angústias que preparam o amor, é necessário-e é talvez isto, e
não uma pessoa, o próprio objeto que a paixão deseja ansiosamente estreitar o risco de uma
impossibilidade. Assim já iam atuando essas influências que se repetem no decurso de amores
sucessivos (podendo, aliás, se produzir, mas então de preferência na vida das grandes cidades, a
respeito de operárias das quais não sabemos o dia de folga e nos assustamos ao não vê-las à
saída do trabalho), ou, pelo menos, que se renovaram no transcurso dos meus. Talvez sejam
inseparáveis do amor; talvez tudo o que formou uma particularidade do primeiro venha ajuntar-se
aos seguintes por lembrança, sugestão, hábito e, através dos períodos sucessivos de nossa vida,
dar a seus diferentes aspectos um caráter geral.
Eu usava de todos os pretextos para ir à praia às horas em que esperava poder encontrá-las. Tendo-as avistado uma vez durante o nosso almoço, só chegava atrasado à mesa, esperando
indefinidamente no molhe que elas passassem; ficando o pouco de tempo em que estava sentado
na sala de jantar a interrogar com os olhos o azul da vidraça; levantando-me bem antes da
sobremesa para não perdê-las, caso estivessem passeando em outra hora e irritando-me com
minha avó, inconscientemente má, quando ela me fazia ficar em sua companhia além da hora que
me parecia favorável. Tentava prolongar o horizonte, colocando transversalmente a minha cadeira;
se por acaso avistava qualquer uma das moças, como participavam todas da mesma essência
especial, era como se tivesse visto, projetado à minha frente numa alucinação diabólica e móvel,
um pouco do sonho inimigo e, no entanto, passionalmente cobiçado que ainda um momento antes
só existia em meu cérebro, aliás ali estagnando de modo permanente.
Não amava a nenhuma delas, amando-as todas; entretanto, o seu possível encontro era,
para os meus dias, o único elemento delicioso, e sozinho fazia nascer em mim essas esperanças
onde se dobrariam todos os obstáculos, esperanças muitas vezes seguidas de raiva, quando não
as via. Neste momento, essas moças eclipsavam a minha avó; uma viagem teria me sorrido se
fosse para ir a um lugar onde elas se achassem. Era a elas que meu pensamento agradavelmente
se prendia quando julgava pensar em outra coisa, ou em nada. Mas, quando pensava nelas,
mesmo sem o saber, mais inconscientemente ainda, dava-se que eram, para mim, as ondulações
montanhosas e azuis do mar, o perfil de um desfiladeiro em frente ao mar. Era o mar o que eu
esperava encontrar, se fosse a uma cidade onde elas estivessem. O amor mais exclusivo por uma
pessoa é sempre o amor de outra coisa.
Porque agora eu me interessava demais pelo golfe e pelo tênis, deixando fugir a ocasião
de ver trabalhar e ouvir falar um artista que ela sabia ser dos maiores, minha avó me
testemunhava um desprezo que me parecia provir de uma visão um pouco estreita das coisas.
Antigamente eu havia entrevisto nos Champs-Élysées melhor o verificaria desde então, que, ao
nos apaixonarmos por uma mulher, simplesmente projetamos nela um estado de nossa alma; que,
por conseguinte importante não é o valor da mulher mas a profundeza desse estado; e que as
emoções que uma moça medíocre nos proporciona podem fazer com que subam à consciência as
partes mais íntimas de nós mesmos, as mais pessoais, mais longínquas, mais essenciais, o que
não faria o prazer que nos dá a convergição de um homem superior ou até a contemplação
admirativa de suas obras.
Acabei por obedecer à minha avó, com tanto mais aborrecimento já que Elstir morava
muito longe do molhe, numa das mais novas avenidas de Balbec. O calor do dia obrigou-me a
pegar o bonde que passava pela Rua da Praia, e me esforcei para pensar que estava no antigo
reino dos cimérios, talvez na terra dominadas por Marcos ou no lugar em que houve a floresta da
Brocelianda, em não olhar só luxo grosseiro das construções que se desenvolviam à minha frente
e entre as quais vivenda de Elstir era talvez a mais suntuosamente feia, e apesar disso alugada
por ele porque, de todas as que existiam em Balbec, era a única que poderia lhe oferecer um
amplo ateliê. Foi assim, desviando os olhos, que atravessei o jardim, que tinha relvado-como uma
miniatura de qualquer residência burguesa nas vizinhanças de Paris-, uma pequena estatueta de
galante jardineiro, bolas de vidro onde a gente se olhava, cercaduras de begônias e um pequeno
caramanchão sob o qual alongavam-se cadeiras de balanço diante de uma mesa de ferro. Mas,
depois de todos esses sinais de feiura citadina, não mais prestei atenção às molduras cor de
chocolate dos plintos quando estava no ateliê; senti-me absolutamente feliz, por todos os estudos
que me rodeavam, imaginava a possibilidade de me darem um conhecimento poético, fecundo em
alegrias, de muitas formas que até então não havia isolado do espetáculo geral da realidade. E o
ateliê de Elstir me surgiu como um laboratório de uma espécie de nova criação do mundo, onde,
do caos que são todas as coisas que vemos, ele havia tirado, pintando-os sobre vários retângulos
de tela que estavam colocados em todos os sentidos, aqui uma onda do mar arrebentando
colérica de encontro à areia com sua espuma lilás, ali um jovem de terno de brim branco, apoiado
no convés de um barco. O casaco do jovem e a onda espumejante tinha adquirido uma dignidade
nova pelo fato de que continuava a existir, ainda que desprovidos daquilo que aparentemente os
constituía, visto onda já não podia molhar, nem o casaco vestir pessoa alguma.
No momento em que entrei, o criador estava a ponto de terminar, com pincel que tinha na
mão, a forma do sol poente. Os estores se achavam descidos de quase todos os lados, o ateliê
era bem refrescado e obscuro, salvo num ponto em que a claridade do dia colava à parede sua
decoração deslumbrante e efêmera. Só estava aberta uma pequena janela retangular enquadrada
de madressilvas que, depois de um pedaço do jardim, dava para uma avenida; de modo que a
atmosfera da maior parte do ateliê estava sombria, transparente e compacta na sua massa, mais
úmida e brilhante nas fraturas onde a luz lhe colocava engastes, como um bloco de cristal de
rocha, uma de cujas faces, já talhada e polida, aqui e ali, reluz e se irisa como um espelho.
Enquanto Elstir, a meu pedido, continuava a pintar, eu circulava por esse claro-escuro,
parando diante de um quadro e depois diante de outro. A maioria dos que me rodeavam não eram
dos que mais desejaria ver de Elstir; eram pinturas pertencentes às suas duas primeiras formas,
como dizia uma revista inglesa de arte atirada na mesa do salão do Grande Hotel, a maneira
mitológica e aquela em que ele sofrera a influência do Japão, ambas admiravelmente
representadas, segundo se dizia, na coleção da Sra. de Guermantes. Naturalmente, o que havia
no seu ateliê eram só marinhas pintadas aqui em Balbec. Mas eu podia distinguir que o encanto
de cada uma delas consistia numa espécie de metamorfose das coisas representadas, fenômeno
análogo ao que em poesia se denomina metáfora e que, se Deus Pai havia criado as coisas
nomeando-as, era tirando-lhes os nomes ou dando-lhes outros que Elstir as recriava. Os nomes
que designam as coisas correspondem sempre a uma noção da inteligência, estranha às nossas
impressões verdadeiras e que nos obriga a eliminar delas tudo o que não se refira a essa noção.
Às vezes, da minha janela, no hotel de Balbec, de manhã, quando Françoise abria as
cortinas que ocultavam a luz de tarde, quando eu esperava o momento de partir com Saint-Loup,
ocorrera-me, graças a um efeito de sol, tomar uma parte mais sombria do mar por uma costa
afastada, ou olhar com alegria uma região azul e fluida sem saber se pertencia ao céu ou ao mar.
Bem depressa a minha inteligência restabelecia, entre os elementos, a separação que minha
impressão abolira. Era assim que me acontecia em Paris, no meu quarto, ouvir uma discussão,
quase um motim, até que tivesse transferido à sua causa, por exemplo um carro cujo rodar se
aproximava, esse barulho do qual então eliminava essas vociferações agudas e discordantes que
meu ouvido de fato percebera, mas que minha inteligência sabia que as rodas não produzem.
Mas os raros momentos em que se vê a natureza tal como é, poeticamente, era desses
momentos que se compunha a obra de Elstir. Uma de suas metáforas mais frequentes nas
marinhas que tinha ali naquele momento era justamente aquela que, comparando a terra ao mar,
suprimia toda demarcação entre eles. Era esta comparação, tácita e infatigavelmente repetida
numa mesma tela, que aí introduzia essa unidade poderosa e multiforme, causa, às vezes não
percebida claramente por eles, do entusiasmo que excitava em certos amadores a pintura de
Elstir.
Era, por exemplo, para uma metáfora deste gênero num quadro que retratava o porto de
Carquethuit, quadro que terminara há poucos dias e que contemplei longamente que Elstir
preparara o espírito do espectador, só utilizava para o lugarejo termos marinhos, e vocábulos
urbanos para o mar. Fosse porque casas escondessem uma parte do porto ou uma doca de
calafetagem ou talvez o próprio mar, abrindo-se em golfo nas terras como acontecia
constantemente na região de Balbec, do outro lado da ponte avançada onde se erguia a
cidadezinha com telhados que eram ultrapassados (como se o fossem por chaminés ou
acompanhados por mastros, os quais pareciam fazer, dos barcos a que pertenciam, algo
construído em terra, impressão que era aumentada por outros barcos, afundados ao longo do
cais, mas em fileiras tão apertadas que os homens ali corseavam de um para o outro sem que se
pudesse distinguir sua separação e o interstício da água, e assim, aquela flotilha de pesqueiros
dava menos ideia de pertencer ao mar que, por exemplo, as igrejas de Criquebec, as quais, ao
longe, cercadas por todos os lados, por serem vistas sem a cidade, numa pulverização de sol;
casas vagas, pareciam sair do mar, feitas de espuma ou de alabastro e, fechadas na ode um
arco-íris furta-cor, formar um quadro místico e irreal. No primeiro plano da praia, o pintor soubera
acostumar os olhos a não reconhecerem fronteiras: - demarcações absolutas, entre a terra e o
oceano. Homens que empurravam barcaça para o mar corriam tanto nas ondas como sobre a
areia, que, molhada, já refletiam cascos como se fosse água. O próprio mar não subia com
regularidade, mas seguia os acidentes da costa, que a perspectiva ainda mais recortava, de
maneira que um navio em alto-mar, meio oculto pelas obras avançadas do arsenal, parecia vagar
no meio da cidade; mulheres que apanhavam mariscos nas rochas pareciam, pontos por se
verem cercadas de água e devido à depressão que, após a barreira circular das rochas, abaixava
o nível da praia (dos dois lados mais próximos das terras) o mar, estar numa gruta marinha
coberta de barcos e ondas, aberta e protegida no meio das vagas miraculosamente afastadas. Se
o quadro todo proporcionava - impressão de portos onde o mar entra terra a dentro, onde a terra
já é marinha população anfíbia, a força do elemento marinho surgia de todas as partes; e - dos
rochedos, à entrada do molhe, onde o mar estava agitado, sentia-se os esforços dos marinheiros
e pela obliquidade dos barcos inclinados em agudo diante da tranquila verticalidade do
entreposto, da igreja e das casas do lugar, aonde uns voltavam, de onde outros saíam para a
pesca, que trotavam somente n'água como sobre um animal fogoso e veloz, cujos sobressaltos,
na sua habilidade, os teriam jogado em terra. Um grupo saía alegremente a num barco
sacolejante como uma carriola; um marinheiro alegre, mas atento, governava-o como se estivesse
com rédeas, dirigindo a vela fogosa; um se mantinha bem no seu lugar para não fazer peso
demais de um lado e virar; e assim corriam pelos campos ensolarados, nos locais despenhando
se pelas ladeiras. Era uma bela manhã apesar da tempestade que ocorrera. E até sentiam-se
ainda as ações potentes que tinham neutralizá-las pelo equilíbrio dos barcos imóveis, desfrutando
do sol e do frescor, nas partes em que o mar estava tão calmo que os reflexos quase mostravam
mais solidez e realidade que os cascos vaporizados por um efeito de sol, e que a perspectiva
confundia uns com os outros. Ou antes, não se deveria dizer outras partes do mar. Pois entre
essas partes havia tanta diferença como entre uma delas e a igreja que saía das águas, e os
barcos por detrás da cidadezinha. A inteligência fazia a seguir um só elemento daquilo que era,
aqui negro devido à tempestade, mais longe de uma cor única com o céu e tão lustroso como ele,
e acolá tão branco de sol, de névoa e de espuma, tão compacto, tão terreno, tão circundado de
casas, que se poderia pensar num calçamento de pedras ou num campo de neve, sobre o qual a
gente se assombrava ao ver um navio erguer-se em subida vertical, e a seco, como um carro a
resfolegar ao sair de um vau, mas que, após um momento, vendo barcos vacilantes sobre a
extensão alta e desigual do platô sólido, se compreendia ser ainda o mar, idêntico em todos esses
aspectos diferentes.
Ainda que se diga, com razão, que não há progresso nem descobertas na arte, mas
unicamente nas ciências, e que cada artista recomeçando por conta própria um esforço individual
não pode ser ajudado nem estorvado pelos esforços alheios, é preciso no entanto reconhecer
que, na medida em que a arte põe em relevo certas leis, uma vez que uma indústria as vulgarizou,
a arte anterior perde, retrospectivamente, um pouco de sua originalidade. Desde os tempos em
que Elstir se iniciou na pintura, temos conhecido o que se denomina "admiráveis" fotografias de
paisagens e cidades. Se procuramos precisar o que os amadores designam nesse caso por este
epíteto, veremos que ele se aplica em geral a uma imagem singular de coisa conhecida, imagem
diversa das que temos o costume de ver, singular e entretanto verdadeira, e que por esse motivo
é para nós duplamente surpreendente porque nos assombra, faz que saiamos de nossos hábitos
e, ao mesmo tempo, faz-nos entrar em nós mesmos ao nos recordar uma impressão. Por
exemplo, determinada dessas fotografias "magníficas" ilustrará uma lei da perspectiva, nos
mostrará uma certa catedral que temos o costume de ver em plena cidade, pregada, ao contrário,
de um ponto escolhido de onde dará a impressão de ser trinta vezes mais alta que as casas e
formando quebra-mar à beira do rio do qual na verdade está bem distante. Ora, os esforços de
Elstir para não expor as coisas tais como sabia que eram, mas segundo essas ilusões de ótica de
que a nossa primeira vista é composta, o haviam conduzido precisamente a realçar algumas
destas leis de perspectiva, então mais espantosas, pois a arte era a primeira a revelá-las. Um rio,
devido à sinuosidade de seu curso, um golfo, por causa da aparente proximidade dos barrancos,
tinham o aspecto de escavar, no meio da planície ou das montanhas, um lago absolutamente
fechado de todos os lados. Num quadro feito em Balbec durante um tórrido dia de verão, uma
reentrância do mar parecia, encerrada em paredes de granito cor-de-rosa, não ser o mar, o qual
principiava mais ao longe. A continuidade do oceano só era sugerida pelas gaivotas que,
revoluteando sobre o que ao espectador parecia pedra, ao contrário aspiravam a umidade da
onda. Outras leis se desprendiam da mesma tela como, no sopé das imensas falésias, a graça
liliputiana das velas brancas sobre o espelho azul onde elas pareciam borboletas adormecidas, e
certos contrastes entre a profundeza das sombras e o calor da luz. Estes jogos de sombra,
também banalizados pela fotografia, haviam despertado o interesse de Elstir, a tal ponto que
antigamente ele sé comprazera em pintar verdadeiras miragens, onde um castelo ornado de uma
torre surgia como um castelo inteiramente circular, prolongado no alto por uma torre - e embaixo,
por uma torre invertida, ou porque a pureza extraordinária de um bom tempo desse à sombra que
se refletia na água a dureza e o brilho da pedra, ou porque as brumas da manhã fizessem a pedra
tão vaporosa como a sombra. Da mesma forma, para lá do mar, atrás de uma fila de árvores, um
outro mar principiava, rosado pelo pôr-do-sol, e que era o céu. A luz, como que inventando novos
sólidos, impelia o casco do barco onde incidia, em detrimento da parte que permanecia na
sombra, e arrumava, como se fossem degraus de uma escadaria de cristal a superfície,
materialmente plana, mas partida pela iluminação do mar da manhã. Um rio que corre por sob as
pontes de uma cidade fora apanhado de um tal ponto de vista que parecia totalmente deslocado,
aqui desdobrando-se num lago, adelgaçando-se ali num filete de água, mais adiante interrompido
pela interposição, de uma colina coroada de árvores, onde à noitinha a gente da cidade vai
espairecer e o próprio ritmo dessa cidade transtornada só era assegurado pela vertical inflexível
dos campanários que não subiam, ou antes, conforme o peso do fio de prumo marcando a
cadência como numa marcha triunfal, pareciam conter em suspenso, acima deles toda a massa
mais confusa das casas sobrepostas na névoa, ao longo do rio esmagado e desfeito.
E (como as primeiras obras de Elstir datavam da época em que se enfeitavam as
paisagens com a presença de um personagem), sobre falésia ou na montanha, a estrada, essa
porção meio humana da natureza, sofrida como o rio ou o oceano, os eclipses da perspectiva. E,
se uma aresta montanhosa, ou a bruma de uma cascata, ou o mar impedissem a continuidade do
caminho visível para o passeante mas não para nós, o minúsculo personagem humano, com
roupa fora de moda, perdido naquelas solidões, parecia muitas vezes estar diante de um abismo,
ali terminando a trilha que seguia, ao passo que, treze - metros acima, naqueles bosques de
pinheiros, víamos emocionados e de coração tranquilizado reaparecer a delgada brancura da
areia hospitaleira aos passos de viajante, daquela estrada cujas curvas intermediárias, que
contornavam a casca ou o golfo, nos tinham sido ocultas pela vertente da montanha.
O esforço que Elstir fazia para, em presença da realidade, se despojar de todas as noções
da inteligência era tanto mais admirável porque este homem antes de pintar se fazia ignorante,
esquecia tudo por probidade, pois a que sabemos não é da gente-era dotado de uma inteligência
excepcionalmente cultivada. Como lhe confessasse a decepção que sentira diante da igreja de
Balbec:
- Como disse-me, ficou decepcionado com aquele pórtico? Mas é a mais linda Bíblia
historiada que o povo já pôde ler. Aquela Virgem e todos os baixos-relevos que contam a sua vida
são a expressão mais terna, mais inspirada desse longo poema de adoração e louvores que a
Idade Média foi desenvolvendo à glória da Madona. Se soubessem, ao lado da exatidão mais
minuciosa em traduzir o texto santo, quantos achados de delicadeza teve o velho escultor,
quantos pensamentos profundos, quanta poesia deliciosa!
continua na página 180...
________________
Leia também:
Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - q)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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