sexta-feira, 4 de abril de 2025

Stendhal - O Vermelho e o Negro: (XLII)

Livro II 


Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve

Capítulo XLII


     AO SER LEVADO DE VOLTA À PRISÃO, Julien foi introduzido numa peça destinada aos condenados à morte. Ele que, de costume, observava até as menores circunstâncias, não percebera que não o faziam subir até o torreão. Pensava no que diria à sra. de Rênal se, antes do último momento, tivesse a felicidade de vê-la. Pensava que ela o interromperia, e ele queria desde a primeira palavra manifestar-lhe todo o seu arrependimento. Depois de tal ação, como convencê-la de que a amo exclusivamente? Pois, afinal, quis matá-la por ambição ou por amor a Mathilde.
     Ao deitar na cama, sentiu que os lençóis eram de um tecido grosseiro. Seus olhos entreabriram-se. Ah! Estou na masmorra, pensou, como condenado à morte. É justo.
      O conde Altamira contou-me que, na véspera de sua morte, Danton dizia com sua voz grossa: É estranho, o verbo guilhotinar não pode se conjugar em todos os tempos; pode-se dizer: serei guilhotinado, serás guilhotinado, mas não se diz: fui guilhotinado.
      Por que não, continuou Julien, se há uma outra vida?... Mas, se encontro o Deus dos cristãos, estou perdido: é um déspota e, como tal, está cheio de ideias de vingança; sua Bíblia fala apenas de punições cruéis. Nunca o amei; nunca pude sequer acreditar que o amassem sinceramente. Ele é impiedoso (e Julien lembrou-se de várias passagens da Bíblia), irá punir-me de uma forma abominável...
     Mas se eu encontrasse o Deus de Fénelon? Talvez ele me dissesse: muito te será perdoado, porque amaste muito...
     Amei muito? Ah! Amei a sra. de Rênal, mas minha conduta foi atroz. Nisso, como em tudo, o mérito simples e modesto foi abandonado em troca do que é brilhante...
     Mas também, que perspectiva!... Coronel dos hussardos, em caso de guerra; secretário diplomático em tempos de paz; depois embaixador... pois logo conheceria os assuntos do Estado... e, mesmo que eu fosse apenas um tolo, o genro do marquês de La Mole teria alguma rivalidade a temer? Todas as minhas tolices teriam sido perdoadas, ou melhor, vistas como méritos. Homem de mérito, e desfrutando da mais bela existência em Viena ou em Londres...

– Não exatamente, senhor, guilhotinado daqui a três dias.

     Julien riu de bom grado desse gracejo de seu espírito. Em verdade, o homem possui duas criaturas dentro dele, pensou. Que diabo lhe soprava essa reflexão maligna?
     Sim, meu amigo, guilhotinado daqui a três dias, ele respondeu ao interruptor. O sr. de Cholin alugará uma janela, em sociedade com o padre Maslon. Pois bem, pelo preço do aluguel dessa janela, qual dessas duas dignas figuras roubará a outra?
     Uma passagem do Venceslau, de Rotrou, veio-lhe de repente à memória.
     LADISLAU – ...Minha alma está preparada.
     O REI, pai de Ladislau – O cadafalso também; leve até lá sua cabeça.
     Bela resposta!, pensou, e adormeceu. Foi despertado de manhã por alguém que o apertava com força.

– O quê! já?, disse Julien, abrindo os olhos, apavorado. Julgava-se entre as mãos do carrasco. 

    Era Mathilde. Felizmente ela não me compreendeu. Essa reflexão devolveu-lhe todo o sangue-frio. Achou Mathilde mudada, como que por seis meses de doença; de fato, ela estava irreconhecível.

– Aquele infame Frilair traiu-me, ela dizia, torcendo as mãos; a fúria a impedia de chorar.
– Não foi bonito ontem quando tomei a palavra?, disse Julien. Eu improvisava, e pela primeira vez na vida! Mas receio que tenha sido também a última.

    Naquele momento, Julien brincava com o caráter de Mathilde com toda a frieza de um hábil pianista ante o teclado... A vantagem de um nascimento ilustre me falta, é verdade. Mas a grande alma de Mathilde, ele acrescentou, elevou seu amante até ela. Imagina que Boniface de La Mole tenha agido melhor diante de seus juízes?
    Mathilde, naquele dia, estava comovida sem nenhuma afetação, como uma pobre criada que habita um quinto andar; mas ela não pôde obter dele palavras mais simples. Ele devolvia lhe, sem que o soubesse, o tormento que ela com frequência lhe infligira.
    Não se conhecem as nascentes do Nilo, pensava Julien; não foi dado aos olhos humanos ver o rei dos rios no estado de simples riacho: assim, nenhum olho humano verá Julien fraco, primeiro porque ele não o é. Mas meu coração é fácil de comover; a palavra mais comum, se for dita com um acento verdadeiro, pode embargar minha voz e mesmo fazer correr minhas lágrimas. Quantas vezes os corações secos não me desprezaram por esse defeito? Acreditavam que eu pedia misericórdia: eis o que não devo admitir.
    Dizem que a lembrança de sua mulher comoveu Danton ao pé do cadafalso; mas Danton havia dado força a uma nação de homens frívolos, e impedira que o inimigo chegasse a Paris... Quanto a mim, só eu sei o que teria podido fazer... Para os outros, não sou senão, quando muito, um TALVEZ.
    Se a sra. de Rênal estivesse aqui neste cárcere, em vez de Mathilde, teria eu podido responder por mim? O excesso de meu desespero e de meu arrependimento seriam vistos, pelos Valenod e os patrícios da região, como o ignóbil medo da morte; são tão orgulhosos esses corações fracos, cuja situação pecuniária os coloca acima das tentações! Vejam o que é nascer filho de um carpinteiro! Diriam os srs. de Moirod e de Cholin, que acabam de condenar-me à morte. É possível tornar-se sábio, fino, mas a coragem... a coragem não se aprende. Mesmo com esta pobre Mathilde que agora chora, ou melhor, que não consegue mais chorar, disse a si mesmo, vendo os olhos vermelhos dela... e a estreitou nos braços: o aspecto de uma dor verdadeira o fez esquecer seu silogismo... Ela chorou a noite inteira, talvez; mas um dia, pensou, que vergonha não lhe causará esta lembrança! Ela se verá como tendo sido desencaminhada, em sua primeira juventude, pela maneira baixa de pensar de um plebeu... O Croisenois é bastante fraco para desposá-la, e acho que faz bem. Ela o fará desempenhar um papel,

Pelo direito que um espírito firme e vasto em seus propósitos 
Tem sobre sobre o espírito grosseiro dos vulgares humanos.

    Ah! como é curioso! Desde que devo morrer, todos os versos que eu nunca soube na vida voltam-me à memória. Deve ser um sinal de decadência...
    Mathilde repetia-lhe com uma voz apagada: Ele está aí, na peça ao lado. Finalmente, Julien prestou atenção a essas palavras. Sua voz é fraca, pensou, mas o caráter imperioso ainda está presente no acento. Ela baixa a voz para não se irritar.

– E quem está aí?, ele disse de um modo suave.
– O advogado, para fazê-lo assinar a apelação.
– Não apelarei.
– Como não apelará?, disse ela, erguendo-se e com os olhos faiscando de cólera. Pode me dizer por quê?
– Porque neste momento sinto a coragem de morrer sem fazer com que riam à minha custa. E quem me diz que dentro de dois meses, após uma longa temporada neste cárcere úmido, estarei assim tão bem-disposto? Prevejo conversas com padres, com meu pai... Nada no mundo seria tão desagradável. Morramos.

     Essa contrariedade imprevista despertou toda a parte orgulhosa do caráter de Mathilde. Ela não pudera ver o abade de Frilair antes do horário de visita à prisão de Besançon; sua fúria recaiu sobre Julien. Ela o adorava, mas durante um bom quarto de hora reencontrou, em suas imprecações contra o caráter dele, em seus lamentos de tê-lo amado, toda aquela alma altaneira que outrora o acabrunhara de injúrias tão dolorosas, na biblioteca da mansão de La Mole.

– O céu devia à glória de tua raça ter feito nasceres homem, disse ele.

     Mas quanto a mim, ele pensava, seria uma tolice viver mais dois meses neste lugar repulsivo, exposto a tudo o que a facção patrícia pode inventar de infame e de humilhante, e tendo por único consolo as imprecações desta louca... Pois bem, depois de amanhã bato-me em duelo com um homem conhecido por seu sangue-frio e sua habilidade notável... Muito notável, diz o partido mefistofélico; ele nunca erra o golpe. Que assim seja, e bem depressa (Mathilde prosseguia com sua eloquência). Está decidido, disse a si mesmo, não apelarei.
    Tomada essa resolução, ele entrou num devaneio... O entregador trará o jornal às seis horas da manhã, como de costume; às oito, depois que o sr. de Rênal o tiver lido, Elisa, andando na ponta dos pés, o depositará sobre o leito dela. Mais tarde, ela despertará: ao ler, ficará de repente abalada; sua linda mão irá tremer; lerá até estas palavras... Às dez horas e cinco minutos, ele deixou de existir.
    Ela chorará copiosamente, eu a conheço; em vão quis assassiná-la, tudo será esquecido. E a pessoa a quem quis tirar a vida será a única que sinceramente irá chorar minha morte.
    Ah! Isso é uma antítese!, disse a si mesmo, e durante o quarto de hora que durou a cena que lhe fazia Mathilde, só pensou na sra. de Rênal. Contra sua vontade, e embora respondendo com frequência ao que Mathilde lhe dizia, ele não conseguia afastar sua alma da lembrança do quarto de dormir de Verrières. Via a gazeta de Besançon sobre a colcha de tafetá cor de laranja. Via aquela mão tão delicada que a apertava com um movimento convulsivo; via a sra. de Rênal chorar... Seguia o trajeto de cada lágrima naquele rosto encantador.
     Nada podendo obter de Julien, a srta. de La Mole mandou entrar o advogado. Era, felizmente, um ex-capitão do exército da campanha da Itália, de 1796, quando fora companheiro de Manuel.
    Por formalidade, ele combateu a resolução do condenado. Julien, querendo tratá-lo com estima, expôs-lhe minuciosamente suas razões.

– De fato, pode-se pensar como o senhor, acabou por dizer-lhe o sr. Félix Vaneau, era o nome do advogado. Mas o senhor tem três dias para apelar, e é meu dever voltar diariamente. O senhor estaria salvo se um vulcão se abrisse sob a prisão daqui a dois meses. Ou poderia morrer de doença, disse, olhando para Julien.

    Julien apertou-lhe a mão. – Agradeço-lhe, o senhor é um homem de valor. Pensarei nisso.
    E, quando Mathilde saiu finalmente com o advogado, ele sentia muito mais amizade pelo advogado do que por ela.

continua página 341...

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Leia também:

O Vermelho e o Negro: Uma Hora da Madrugada (XVI)
O Vermelho e o Negro: Uma Velha Espada (XVII)
O Vermelho e o Negro:  (XLII)
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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.

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Henri-Marie Beylemais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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