domingo, 30 de março de 2025

crônica - um mulherão e cinco homens

um mulherão e cinco homens

baitasar

Maurooooooo! – o chamado do portão repetido uma duas três vezes, Por onde andam esses meninos? – não tinha como saber, Rogeeeeerio! Ricaaaardo! – silêncio, nenhuma resposta, desistir não desistia, mas por ora, precisava entrar na sua casa, seguir nas tarefas solitárias de uma boa dona-de-casa, personagem escrita para as mulheres do seu tempo, desde muito tempo, rainha do lar

tinha tarefa rotineira cuidar dos filhos e da casa, junto com um mundo de sentimentos que se chocavam, se entrecruzavam, às vezes, raramente, se expressavam e não eram compreendidos

as conversas com vizinhas donas-de-casa, talvez, pudessem amenizar sua dança silenciosa de lavar e estender as roupas ao sol entre o arvoredo do pátio, todos os dias, nublados ou ensolarados; nos dias chuvosos a rouparia acumulava, até que na urgência algumas eram lavadas no tanque e colocadas penduradas para secarem atrás da geladeira, nestes dias de necessidade imediata precisava reinventar cada canto e fresta da casa

mais um dia todos os dias feito de grandes sentimentos de amor, era preciso lutar todos esses dias para que esse amor não se transformasse em cansaço frio e isolado

ao perfume do café passado o aroma do pão fresco se misturava ao tilintar das xícaras sendo colocadas à mesa, todos os dias – eu esperando o leite ferver na leiteira, a chama azul brilhando o leite borbulhando –, Mauro, não deixa o leite derramar – aviso inútil, sempre ferveu e derramou, Mãe, eu tava cuidando, E como foi que derramou, Não sei, não sei, foi um descuido, Chega, Mauro, senta e toma o café. – restava limpar o leite derramado no fogão e na leiteira, os resmungos dos outros filhos preenchiam o meu silêncio culpado, aquela sinfonia de tarefas começava a tomar forma, vida real e concreta, sacrifício consciente, acreditava que era o quinhão que tinha que pagar pela família que defendia e protegia com unhas e dentes, éramos a ventania do seu amor que ela transformava em brisa acalmava as tempestades transfigurava a realidade, dona de uma família real com cinco homens

dona-de-casa, um título que carregou como um manto pesado, mas que vestia todos os dias solitariamente, sem resmungos de desapreço ou descontentamento, as paredes eram testemunhas das suas lutas e vitórias silenciosas, lágrimas que nunca vi brotarem em seus olhos, entregava a própria pele para demonstrar o amor interior a ela, naqueles dias, jamais me dei conta do seu esforço diário isolado, a vontade de sacrificar toda uma vida, eu achava que deveria ser assim mesmo, os meninos jogando bola e as meninas cuidando da casa

quatro filhos, cada um com seus próprios desatinos desafios convencimentos, organizava um balé sem nenhum ensaio, conforme a música soando a coreografia tomava forma, um precisava de ajuda para se arrumar, outro queria sempre um lanche especial, aquele lá só desejava um colo, até que o alemão acordava no berço, gritava pela teta

depois de espalhar beijos e conselhos ao vento, seguíamos à escola, ela se dedicava à limpeza da casa – arrumação que nunca acabava, um exército de cinco homens embolados nas próprias pernas e deseducados em disciplinas domésticas -, colocava em ordem os brinquedos que se multiplicavam à noite, as roupas jogadas no chão, Um dia tudo ficará ajeitado, murmurava enquanto corria atrás do caçula engatinhando pela casa

quando nosso pai – o quinto homem da casa – chegava do trabalho de consertar balanças, na fábrica de balanças Santo Antônio, ela respirava e sorria, já estávamos de banho tomado e em nossas camas esperando a janta, mais recomendações, Não incomodem o pai de vocês, ele está cansado, preparava a janta junto ao fogão, mais um bocado do seu tempo e do seu amor, quase um ritual, mas agora com um sorriso cansado, Venham comer, servia a comida e escutava as histórias do dia, acredito que era quando seus pensamentos vagavam, imaginando mundos além das paredes da cozinha, em meio as risadas e vozerio daquela infantaria

muitos anos se passaram até perceber o eco vazio que ela sentia em sua rotina, lavar cozinhar passar limpar cuidar amar, tudo isso se refletia sobre suas próprias ambições, sonhos que foram deixados para trás no altar maternidade dedicação familiar

queria ser mais que uma sombra que passava pelas tarefas diárias – nunca notadas nem elogiadas, tarefas secretas –, uma mulher forte e realizada, uma mulher realizando suas próprias aspirações, não apenas a mãe esposa que estava sempre ali, presa em uma dança diária repetitiva, onde cada passo batia nos mesmos compassos, foi uma revolucionária, nos permitiu graduar como homens, li em algum lugar que quando o extraordinário se torna cotidiano, é a revolução

sabia que não estava sozinha nessa jornada, muitas mulheres dançavam – e dançam, posso estar equivocado, mas acredito que não estou mentindo – a mesma coreografia, entregando-se aos seus papéis, e, embora quisesse algo mais, havia também um conforto na repetição, nas pequenas conquistas do dia a dia: um filho aprendia a ler, uma refeição feita com carinho, um olhar cúmplice com seu homem no final de um dia cansativo, Aqui ninguém se rende.

entre altos e baixos, mamãe continuava sua dança, cheia de carinho e desafios, em cada tarefa havia uma semente do que ela era e do que poderia ser, florescendo timidamente sob a luz dos nossos olhares, em cada risada encontrava esperança, mesmo na solidão daqueles dias iguais

tempo demais se passou até compreender sua força e sua história, sinto o vazio das palavras que não disse para essa mulher repleta de risos e chamados urgentes

sozinha com seu sorriso gentil no rosto, entre a bagunça das manhãs dos seus cinco homens, as folhas das árvores, a sequência das tarefas, o chão para ser limpo, a nossa roupa suja para lavar no tanque, esfregando torcendo escutando o rádio de pilha, o almoço, depois os pratos empilhados na pia, a manhã rapidamente se dissolvendo em tardes intermináveis, o relógio avançando, silêncio, escapamos para a outra vida lá fora

a casa respirava entre as paredes

a solidão das horas pode ser uma visitante constante, o som da vida lá fora, o zumbindo do ônibus subindo a lomba – quando estava lotado, vez que outra, empacava no meio da subida, os passageiros e passageiras desciam e caminhavam até o topo, o ônibus se arrastava para cima, quando também chegava no topo as pessoas subiam e a viagem seguia –, as vozes da vizinhança, o mundo gira, mas dentro da casa tudo parecia imutável

acho que mamãe também conversou com as paredes, creio que conheciam seu toque e sua voz, isso não me traz conforto, mas melancolia, não enxerguei tantas amarras que a prenderam em sua vida, amarras de amor, por certo, quero acreditar, mas também de solidão

preciso acreditar que quando voltávamos da escola, a casa ganhava vida, nossas vozes misturavam-se aos cheiros da comida já preparada, depois, saíamos para jogar bola nas várzeas da vila, por toda à tarde, não escutávamos seus chamados, Maurooooo, Rogeeeeerio, Ricaaaaardo!

não sei se havia beleza nos detalhes ou pequenas vitórias, mas ainda sinto o amor que foi construído dia após dia, entre a solidão inevitável daqueles dias e as alegrias compartilhadas

lembro mamãe com as mãos sempre ocupadas, hoje sei que seus pensamentos voavam muito longe das tarefas exaustivas e da solidão que a acompanhou, culpo-me por não ter querido perceber isso tudo, bem antes de hoje, minha mãe

as suas risadas se misturam com suas lágrimas em mim, preciso acreditar que nunca a tratamos como parte da mobília, sem perceber seus olhos cansados, ansiosos por mais que as tarefas diárias de dona da casa

as roupas amontoadas para dobrar a louça suja na pia a vassoura o pano de pó a mãe a esposa a mulher

um mulherão

em meio aos meus dias repetidos sem minha mãe, descobri sua história, olho para o quadro à minha frente, vocês dois sorrindo abraçados, ensinando que até podemos viver separados uns dos outros, é uma escolha, mas pode não ser o melhor jeito de viver, demorei demais para dizer, Minha mãe, eu te amo.

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