quarta-feira, 16 de abril de 2025

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - p)

em busca do tempo perdido


volume II
À Sombra das Moças em Flor

Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar


(p)

continuando...

      Voltando a Balbec, a respeito de uma dessas desconhecidas a quem ele me apresentara, repetia comigo sem cessar um segundo e, no entanto, sem notar quase: "Que mulher deliciosa!" como se canta um estribilho. De certo, essas palavras eram antes ditadas por disposições nervosas que por um julgamento perdurável. Não é menos verdade que, se eu tivesse mil francos comigo e ainda houvesse joalheiros abertos àquela hora, teria comprado um anel para a desconhecida. Quando as horas da nossa vida se desenrolam assim em planos bem diversos, ocorre darmos muito de nós mesmos para diferentes pessoas que, no dia seguinte, nos parecem destituídas de interesse. Mas sentimo-nos responsáveis pelo que lhes dissemos na véspera e desejamos cumprir nossa palavra.
      Como naquelas noites eu entrasse bem tarde no hotel, reencontrava com prazer em meu quarto, que já não me era hostil, a minha cama onde, no dia da minha chegada, achara que seria sempre impossível repousar e onde agora os meus membros, tão cansados, buscavam apoio; de modo que, sucessivamente, minhas coxas, meus quadris, meus ombros tentavam aderir em todos os seus pontos aos lençóis que envolviam o colchão, como se minha fadiga assemelhasse a um escultor, tivesse desejado tirar o molde total de um corpo humano - não conseguia adormecer; sentia a manhã aproximar-se; o sossego e a boa saúde estavam mais em mim. Na minha aflição, tive a ideia de que nunca mais os encontraria. Teria de dormir por muito tempo para atingi-los. Ora, ainda que cochilasse, de qualquer modo seria acordado duas horas depois pelo concerto sinfônico. De repente adormecia, caía nesse sono pesado onde se desvelam para nós o regresso à juventude, a retomada dos anos passados, sentimentos perdidos, a desencarnação a transmigração das almas, a evocação dos mortos, as ilusões da loucura, a regressarem, são aos reinos mais elementares da natureza (pois diz-se que muitas vezes veem animais em sonhos, mas esquece-se que quase sempre nós mesmos somos; no sonho, um animal privado dessa razão que projeta sobre as coisas um lampejo de certeza; aí, pelo contrário, só oferecemos uma visão duvidosa ao espetáculo da vida e, a cada minuto apagado pelo esquecimento, a realidade precedente se desfiada diante da que lhe sucede, como uma projeção de lanterna mágica diante da seguinte, quando se troca o vidro), todos esses mistérios que julgamos não conhecer nos quais, na verdade, somos iniciados quase todas as noites, assim como outro grande mistério do aniquilamento e da ressurreição. Tornada mais vagabunda pela digestão difícil do jantar de Rivebelle, a iluminação sucessiva e errante das zonas ensombrecidas do meu passado fazia de mim uma criatura cuja suprema felicidade seria encontrar Legrandin, com quem acabava de conversar em sonho. Depois, mesmo a minha própria vida era-me inteiramente oculta por novo cenário, como o que se coloca bem na frente do palco e diante do qual, enquanto atrás se trocam os quadros, atores representam um entreato. Aquele em que eu então desempenhava o meu papel era ao gosto dos contos orientais; nele eu nada sabia de meu passado nem de mim mesmo, devido àquela grande proximidade de um cenário interposto; não passava de um personagem que levava e sofria castigos variados por uma falta que não notava, mas que era a de ter bebido muito vinho do Porto. De súbito despertava, percebia que, graças a um longo sono não tinha ouvido o concerto sinfônico. Já era meio-dia; certifiquei-me disso pelo relógio de pulso, após alguns esforços para me levantar, esforços a princípio esbaldados e interrompidos por quedas sobre o travesseiro, mas dessas quedas curtas se seguem ao sono como a outras tonteiras, sejam causadas pelo vinho ou pela convalescença; além do mais, mesmo antes de ter olhado a hora, estava certo que já era mais de meio-dia. Ontem à tardinha, eu não passava de um ser vazio, sem peso e (como é preciso ter estado deitado para ser capaz de sentar-se e de estar dormido para conseguir calar-se) não podia deixar de me mexer nem de falar; já não possuía consistência nem centro de gravidade, achava-me como que lança parecia-me poder continuar aquele sombrio percurso até a lua. Ora, se alguns dos meus olhos não tinham visto a hora, meu corpo soubera calculá-la, havia medido o tempo não sobre um quadrante superficialmente representado, mas pelo peso progressivo de todas as minhas forças refeitas que ele, como um possante relógio, deixara descer ponto a ponto do meu cérebro para o resto do corpo, onde agora ajuntavam, até acima de meus joelhos, a abundância intacta de suas provisões. Se é verdade que o mar outrora foi o nosso meio vital, onde é necessário voltar a mergulhar o nosso sangue para recuperar nossas forças, o mesmo se dá com o esquecimento, com o nada mental; então parecemos ausentes do tempo durante algumas horas; mas as forças que se organizaram durante esse intervalo, sem serem gastas, medem-no pela quantidade delas de forma tão exata como os pêndulos de um relógio ou os escorrentes montículos de areia da ampulheta. Aliás, não se sai mais facilmente de um tal sono do que da vigília prolongada, de tal maneira todas as coisas tendem a perdurar, e, se é verdadeiro que certos narcóticos fazem dormir, dormir por muito tempo é um narcótico ainda mais potente, após o qual temos muito trabalho para despertar. Semelhante a um marinheiro que vê muito bem o cais aonde amarrar o seu barco, no entanto ainda sacudido pelas vagas, bem que eu pensava olhar a hora e levantar-me, mas meu corpo era, a todo instante, jogado de volta ao sono; a aterrissagem era difícil e, antes de me pôr de pé para alcançar o relógio e comparar sua hora com a que me indicava a riqueza de materiais de que dispunham minhas pernas exaustas, caía ainda duas ou três vezes sobre o travesseiro. 
     Por fim, enxergava claramente: "duas horas da tarde", tocava a campainha, mas logo recaía num sono que, desta vez, deveria ser infinitamente mais longo, a julgar pelo repouso e pela visão de uma imensa noite ultrapassada que eu encontrava ao despertar. Entretanto, como este era causado pela entrada de Françoise, entrada decorrente do meu toque de campainha, este novo sono, que me parecia ter sido mais longo que o anterior e me trouxera tanto bem-estar e esquecimento, não durara mais que meio minuto. Minha avó abria a porta de meu quarto, e eu lhe fazia algumas perguntas sobre a família Legrandin.
      Não é bastante dizer que havia recobrado a calma e a saúde, pois era mais que uma simples distância que os havia separado de mim na véspera; eu lutara a noite inteira contra uma onda contrária e, além disso, não me encontrava apenas junto delas: elas haviam reentrado em mim. Em pontos determinados e ainda um pouco dolorosos da minha cabeça vazia, e que um dia ainda seria quebrada, deixando meus pensamentos escaparem-se para sempre, estes haviam novamente assumido o seu lugar e recuperado essa existência de que, infelizmente, ainda não tinham sabido aproveitar-se.
     Uma vez mais eu escapara à impossibilidade de dormir, ao dilúvio, ao naufrágio das crises nervosas. Já não temia de modo algum o que me ameaçava na véspera, à noite, quando estava desprovido de repouso. Uma vida nova se abria diante de mim; sem fazer um só movimento, pois ainda estava moído embora - disposto, gozava o meu cansaço com alegria; ele isolara e rompera os ossos das minhas pernas, dos meus braços, que eu sentia reunidos à minha frente, prontos para se recomporem, e que iria reerguer-me apenas cantando, como o arquiteto da fábula.
      De súbito, recordei-me da jovem loura de ar triste que vira em Rivebelle percebia que me olhara por um instante. Durante toda a noite, muitas outras me haviam parecido agradáveis; agora somente ela vinha erguer-se do fundo de minha lembrança. Parecia-me que me havia notado; eu esperava que um dos garçons de Rivebelle viesse me dizer uma palavra de sua parte. Saint-Loup não a conhecia e achava que era direita. Seria muito difícil vê-la, vê-la constantemente. Mas eu estava disposto a tudo para tanto; só pensava nela. Muitas vezes a filosofia fala de livres e de atos necessários. Talvez não exista um ato mais absolutamente sofrido por nós do que esse que, devido a uma força ascensional comprimida durante a ação e, uma vez estando o nosso pensamento em repouso, faz remontar desse modo até ela uma lembrança até então nivelada às outras pela força opressiva da distração, e lançar-se à frente porque, sem que o soubéssemos, continha, mais linguagem dos outros atos, um encanto que só percebemos 24 horas depois. E talvez também não haja ato mais livre, pois ainda está destituído do hábito, dessa espécie de lembrança mental que, no amor, favorece o renascimento exclusivo da imagem de uma pessoa.
      Esse dia era justamente o seguinte àquele em que eu vira desfilar diante do mar o belo cortejo das moças. Sobre elas, interroguei vários hóspedes do hotel que vinham quase todos os anos a Balbec. Não puderam me dar informações. De tarde, um fotógrafo me explicou o motivo. Quem poderia reconhecer agora nelas recém-saídas, mas enfim já saídas de uma idade em que as mudanças são completas, certa massa amorfa e deliciosa, ainda bastante infantil, de meninas - apenas alguns anos antes, podiam ser vistas sentadas em círculo na areia, em tom de uma barraca; espécie de branca e indecisa constelação onde não se distinguiriam dois olhos mais brilhantes que outros, um rosto malicioso, cabelos louros, senão para logo se voltar a perdê-los e confundi-los bem depressa no seio de uma nebulosa láctea e indistinta?
      Sem dúvida, naqueles anos ainda bem pouco afastados, não era à vi no grupo, como na véspera em seu primeiro aparecimento diante de mim, mas era ao próprio grupo que faltava nitidez. Então, aquelas crianças muito novinhas estavam ainda nesse grau elementar de formação em que a personalidade não imprimiu um sinal em cada rosto. Como esses organismos primitivos em que o indivíduo que não existe por si mesmo e é antes constituído pelo polipeiro que por cada um dali pólipos que o compõem, elas permaneciam comprimidas umas contra as outras. Às vezes, uma fazia a sua vizinha cair, e então um riso louco, que parecia uma manifestação de sua vida pessoal, agitava-as todas ao mesmo tempo, apagando e confundindo esses rostos indecisos e careteiros na geleia de um só cacho cintilante e trêmulo. Numa fotografia antiga que elas deveriam me dar um dia, e que guardei comigo, seu grupo infantil já apresenta o mesmo número de figurantes que o seu cortejo feminino mais tarde; sente-se ali que já deviam realizar na praia certa mancha singular que forçava todos a olharem para elas, mas ali não se pode reconhecê-las individualmente senão por meio do raciocínio, deixando livre o campo a todas as transformações possíveis durante a juventude, até o limite em que essas formas reconstituídas redundassem numa outra individualidade que também é necessária a identificar e cujo belo rosto, por causa da concomitância de uma elevada estatura e de cabelos crespos, tem probabilidade de haver sido outrora esse encolhimento de careta mirrada apresentado pelo retrato; e a distância percorrida em pouco tempo pelos caracteres físicos de cada uma daquelas moças fazia deles um critério muito vago e, por outro lado, visto que o que possuíam em comum e, por assim dizer, de coletivo, era desde essa época bastante acentuado, ocorria às vezes às suas melhores amigas confundir uma com outra naquela fotografia, de modo que a dúvida afinal não podia ser inteiramente desfeita senão por um determinado acessório da toalete que uma delas tinha certeza de ter usado, com exclusão das outras. Desde esses dias tão diversos daquele em que eu acabava de vê-las no molhe, tão diversos e no entanto tão próximos, elas ainda se abandonavam ao riso, como eu havia reparado na véspera, mas a um riso que já não era o riso intermitente e quase automático da infância, escape espasmódico que antigamente fazia a todo instante aquelas cabeças darem um mergulho, como os ''bandos de vairões" no Vivonne se dispersavam e desapareciam para se reunirem logo após; suas fisionomias agora se haviam tornado senhoras de si mesmas, os olhos se fixavam nos objetivos que perseguiam; e ontem foram necessários a indecisão e o tremor de minha primeira percepção para confundir indistintamente, como o fizera a antiga hilaridade e a velha fotografia, as espóradas hoje individualizadas e desunidas da pálida madrépora. 
     Sem dúvida, muitas vezes, à passagem das belas moças, fizera a mim mesmo a promessa de revê-las. De hábito, elas não reapareciam; além disso, a memória, que depressa esquece a sua existência, dificilmente reencontraria os seus vestígios; nossos olhos talvez não as reconheçam, e já veremos passar novas moças que tampouco voltaremos a ver. Mas outras vezes, e assim devia acontecer no caso do pequeno grupo insolente, o acaso as traz com insistência para diante de nós. Este então nos parece belo, pois nele percebemos uma espécie de princípio de organização, de esforço para compor a nossa vida; e nos torna fácil, inevitável às vezes, após interrupções que poderiam fazer crer que deixaríamos de lembrança cruel, a fidelidade das imagens a cuja posse acreditaremos mais tarde ter predestinados, e que, sem ele, poderíamos, logo no começo, esquecer tão fatalmente como tantas outras.
     Em breve a licença de Saint-Loup chegou ao fim. Eu não pudera esquecer aquelas moças na praia. Saint-Loup passava muito pouco tempo à tarde em Balbec para poder se ocupar delas e tentar conhecê-las por minha causa. A noite estava mais livre e continuava a me levar com frequência a Rivebelle. Nesses restaurante como nos jardins públicos ou nos trens, há pessoas fechadas numa aparência comum e cujo nome nos assombra se, tendo-o perguntado por acaso, descemos que são não o inofensivo pobre diabo que supúnhamos, mas nada menor do que ministro ou o duque de quem muitas vezes ouvíramos falar. Já duas ou três vezes no restaurante de Rivebelle, Saint-Loup e eu tínhamos visto sentar a uma mesa, quando todo mundo começava a retirar-se, um homem de elevada estatura, bastante musculoso, de traços regulares, barba que principiava a embranquecer, mas com olhar sonhador permanecia fixo com determinação no vazio. Uma noite em que perguntamos ao proprietário quem era aquele freguês obscuro, isolado e retardatário:

- Como? Não conhecem o célebre pintor Elstir? - indagou ele.

     Swann pronunciara esse nome uma vez diante de mim, e absolutamente eu não me lembrava a propósito de quê; porém a omissão de uma lembrança, como a de um membro da frase numa leitura, beneficia às vezes não a incerteza mas a eclosão de uma certeza prematura.

- É um amigo de Swann e um artista muito conhecido, de grande valor. - disse eu a Saint Loup. E logo passou por nós dois, como um frêmito, a ideia de que Elstir era um grande artista, um homem célebre, e depois que, confundindo-nos com os outros fregueses, não desconfiava da exaltação em que nos lançara a qualidade de seu talento. Sem dúvida, o fato de que ignorava a nossa admiração e de conhecermos Swann não nos teria sido penoso se não estivéssemos igualmente nos banhos de Balbec. Mas, presos numa idade em que o entusiasmo não pode ficar silencioso e contidos numa vida em que o incógnito parece sufocante, escrevemos uma carta assinada com nossos nomes, em que revelávamos a Elstir, nos dois fregueses sentados a alguns passos dele, dois amadores apaixonados pelo seu talento, dois amigos de seu grande amigo Swann, e na qual pedíamos para apresentar nossas homenagens. Um garçom se encarregou de levar essa carta ao homem célebre. 

      Célebre, Elstir talvez ainda não o fosse naquele tempo tanto quanto e pretendia o proprietário do restaurante, e como, aliás, o foi pouquíssimos anos depois. Mas fora dos primeiros a morar naquele estabelecimento, enquanto esta não passava de uma espécie de granja, e a levar para ali uma colônia de artistas (que, afinal, haviam todos emigrado para outras bandas desde que a granja, em que se comia ao ar livre, debaixo de um simples alpendre, se transformara num centro elegante; o próprio Elstir só voltava naquele momento a Rivebelle por causa de uma ausência da esposa, com quem morava não longe dali). Mas um grande talento, mesmo quando ainda não é reconhecido, provoca necessariamente alguns fenômenos de admiração, e tais que o proprietário da granja fora mesmo levado a distingui-los nas perguntas de mais de uma inglesa de passagem, devido a informações sobre a vida que levava Elstir, ou pelo número de cartas que este recebia do estrangeiro. Então, notara igualmente que Elstir não gostava de ser incomodado enquanto estava trabalhando, que se levantava de noite para levar um pequeno modelo a posar nu à beira-mar, quando brilhava a lua, e dissera consigo que tantas canseiras não eram perdidas, nem injustificada a admiração dos turistas, quando reconhecera num quadro de Elstir uma cruz de madeira que estava plantada à entrada de Rivebelle.

- É ela, sem tirar nem pôr - repetia estupefato. - Tem os quatro braços! Ah, mas também ele trabalha tanto!

      E desconfiava que um pequeno "nascer do sol sobre o mar", que Elstir lhe dera, valesse mesmo uma fortuna. Nós o vimos ler nossa carta, pô-la no bolso, continuar a jantar, começar a pedir seus apetrechos, levantar-se para sair, e estávamos tão certos de tê-lo chocado com nosso pedido, que agora teríamos desejado (tanto quanto o receáramos) partir sem ser percebidos por ele. Nem um só instante pensamos numa coisa que no entanto deveria nos parecer a mais importante, ou seja, que o nosso entusiasmo por Elstir, de cuja sinceridade não teríamos permitido fosse posta em dúvida e de que poderíamos, com efeito, dar como testemunho a nossa respiração entrecortada pela espera, o nosso desejo de fazer qualquer coisa difícil ou heroica pelo grande homem, não era, como imaginávamos, admiração, já que nunca havíamos visto nada de sua autoria; nosso sentimento podia ter por objeto a ideia vazia de "um grande artista" e não uma obra que nos era ignorada. Quando muito, era admiração no vazio, o quadro nervoso, a estrutura sentimental de uma admiração sem conteúdo, isto é, algo tão indissoluvelmente ligado à infância como certos órgãos que não existem mais no homem adulto; ainda éramos crianças. Entretanto, Elstir já ia chegando à porta quando, de repente, deu meia-volta e veio até nós. Sentia-me transportado de um delicioso pavor como não poderia suportar alguns anos mais tarde, pois que, ao mesmo tempo que a idade diminui nossa capacidade, o costume da vida social nos tira toda ideia de provocar tão estranhas oportunidades, de sentir esse tipo de emoções.
      Dentre as poucas palavras que Elstir nos disse ao sentar-se à nossa mesa, nunca me respondeu nas várias vezes em que lhe falei de Swann. Comecei a acreditar que não o conhecia. Nem por isso deixou de me pedir que o visitasse no seu ateliê de Balbec, convite que não dirigiu a Saint-Loup, e que fiquei devendo, o que talvez não tivesse ocorrido quanto à recomendação de Swann se Elstir lhe fosse ligado (pois a parte dos sentimentos desinteressados é maior do que se julga na vida dos homens), a algumas palavras que o fizeram imaginar que eu amava artes. Prodigalizou-me uma amabilidade que era tão superior à de Saint-Loup como esta à afabilidade de um pequeno-burguês. Ao lado da de um artista, a amabilidade de um grão-senhor, por mais encantadora que seja, dá a impressão de um desempenho de ator, de uma simulação. Saint-Loup buscava agradar; Elstir gostava de dar, de se doar. Tudo o que possuía, ideias, obras, e o restante, a que atribuía muito menos valor, teria dado com alegria a alguém que o tivesse compreendido. Mas, falta de uma sociedade suportável, vivia no isolamento, com uma selvageria que as pessoas da sociedade denominavam pose e má educação, os poderes públicos; falta de espírito de cooperação, seus vizinhos loucura, e sua família, egoísmo e orgulho. E, sem dúvida, nos primeiros tempos havia pensado com prazer, mesmo na solidão, que, através de suas obras, dirigia-se à distância, dava uma ideia mais alta de si mesmo àqueles que o tinham desconhecido ou magoado. Talvez então vivesse a sós, não por indiferença mas por amor aos outros e, como eu renunciara a Gilberte para um dia reaparecer a seus olhos sob cores mais amáveis, destinava sua obra a alguns, como um retorno a eles, onde, sem que o revissem, o amariam, o admirariam, falariam dele; uma renúncia nem sempre é total desde o começo, quando nos decidimos por ela com a nossa alma antiga e antes que, em reação; tenha agido sobre nós, quer se trate da renúncia de um enfermo, de um monge, de um artista ou de um herói. Mas, se desejara produzir em função de algumas pessoas, ao produzir vivera para si mesmo, longe da sociedade à qual se tornara indiferente; a prática da solidão lhe conferira o amor a ela, como ocorre com toda grande coisa que no princípio receamos, porque a sabíamos incompatível com as coisas menores a que nos apegávamos e das quais ela menos nos priva do que desliga. Antes de conhecê-la, toda nossa preocupação é de saber em que medida poderemos conciliá-la com certos prazeres que deixam de sê-lo desde que a conheçamos.
     Elstir não ficou muito tempo conversando conosco. Eu me prometia ir a seu ateliê nos dois ou três dias seguintes, mas, no dia seguinte àquela noite, como tivesse acompanhado minha avó até a extremidade do molhe, na direção das falésias de Canapville, na volta, à esquina de uma das ruelas que desembocam, perpendicularmente, na praia, cruzamos com uma jovem que, de cabeça baixa como um animal que fizessem a contragosto entrar no estábulo, e segurando tacos de golfe, caminhava adiante de uma pessoa autoritária, provavelmente a sua "inglesá', ou aquela de suas amigas que se parecia com o retrato de Jeffries por Hogarth, ou vermelho como se sua bebida predileta fosse o gim em vez do chá, e prolongada em pontas torcidas e cheias de tabaco um bigode grisalho porém espesso. A menina que a precedia parecia-se com a do pequeno grupo que, sob um boné, mostrava olhos risonhos num rosto imóvel e gorducho. Ora, essa que retornava naquele momento tinha também um boné preto, mas me pareceu ainda mais bonita que a outra, a linha de seu nariz era mais reta e na base a asa era maior e mais carnuda.
     Depois, a outra me aparecera como uma orgulhosa moça pálida, e esta como uma criança submissa e de pele rosada. No entanto, como empurrava uma bicicleta semelhante e usasse as mesmas luvas de rena, concluí que as diferenças deviam-se talvez à maneira como eu estava colocado e às circunstâncias, pois era pouco provável que houvesse em Balbec uma outra moça de rosto apesar de tudo tão semelhante e que, no seu vestido singular, reunisse as mesmas particularidades. Ela lançou um rápido olhar na minha direção; nos dias seguintes, quando revi o pequeno grupo na praia, e até mais tarde, quando conheci todas as moças que o formavam, nunca tive certeza absoluta que alguma delas, mesmo aquela que, de todas, mais se lhe parecia a moça de bicicleta - fosse exatamente aquela que eu vira nessa noite no extremo da praia, na esquina da rua, moça que não era muito, mas afinal era um pouco, diversa da que eu observara no cortejo.

continua na página 175...
________________

Leia também:

Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - p)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

Nenhum comentário:

Postar um comentário