em busca do tempo perdido
volume II
À Sombra das Moças em Flor
Segunda Parte
Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar
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continuando...
Voltando a Balbec, a respeito de uma dessas desconhecidas a quem ele me apresentara, repetia comigo sem cessar um segundo e, no entanto, sem notar quase: "Que mulher deliciosa!" como se canta um estribilho. De certo, essas palavras eram antes ditadas por disposições nervosas que por um julgamento perdurável. Não é menos verdade que, se eu tivesse mil francos comigo e ainda houvesse joalheiros abertos àquela hora, teria comprado um anel para a desconhecida. Quando as horas da nossa vida se desenrolam assim em planos bem diversos, ocorre darmos muito de nós mesmos para diferentes pessoas que, no dia seguinte, nos parecem destituídas de interesse. Mas sentimo-nos responsáveis pelo que lhes dissemos na véspera e desejamos cumprir nossa palavra.
Como naquelas noites eu entrasse bem tarde no hotel, reencontrava com prazer em meu
quarto, que já não me era hostil, a minha cama onde, no dia da minha chegada, achara que seria
sempre impossível repousar e onde agora os meus membros, tão cansados, buscavam apoio; de
modo que, sucessivamente, minhas coxas, meus quadris, meus ombros tentavam aderir em todos
os seus pontos aos lençóis que envolviam o colchão, como se minha fadiga assemelhasse a um
escultor, tivesse desejado tirar o molde total de um corpo humano - não conseguia adormecer;
sentia a manhã aproximar-se; o sossego e a boa saúde estavam mais em mim. Na minha aflição,
tive a ideia de que nunca mais os encontraria. Teria de dormir por muito tempo para atingi-los.
Ora, ainda que cochilasse, de qualquer modo seria acordado duas horas depois pelo concerto
sinfônico. De repente adormecia, caía nesse sono pesado onde se desvelam para nós o regresso
à juventude, a retomada dos anos passados, sentimentos perdidos, a desencarnação a
transmigração das almas, a evocação dos mortos, as ilusões da loucura, a regressarem, são aos
reinos mais elementares da natureza (pois diz-se que muitas vezes veem animais em sonhos,
mas esquece-se que quase sempre nós mesmos somos; no sonho, um animal privado dessa
razão que projeta sobre as coisas um lampejo de certeza; aí, pelo contrário, só oferecemos uma
visão duvidosa ao espetáculo da vida e, a cada minuto apagado pelo esquecimento, a realidade
precedente se desfiada diante da que lhe sucede, como uma projeção de lanterna mágica diante
da seguinte, quando se troca o vidro), todos esses mistérios que julgamos não conhecer nos
quais, na verdade, somos iniciados quase todas as noites, assim como outro grande mistério do
aniquilamento e da ressurreição. Tornada mais vagabunda pela digestão difícil do jantar de
Rivebelle, a iluminação sucessiva e errante das zonas ensombrecidas do meu passado fazia de
mim uma criatura cuja suprema felicidade seria encontrar Legrandin, com quem acabava de
conversar em sonho. Depois, mesmo a minha própria vida era-me inteiramente oculta por novo
cenário, como o que se coloca bem na frente do palco e diante do qual, enquanto atrás se trocam
os quadros, atores representam um entreato. Aquele em que eu então desempenhava o meu
papel era ao gosto dos contos orientais; nele eu nada sabia de meu passado nem de mim mesmo,
devido àquela grande proximidade de um cenário interposto; não passava de um personagem que
levava e sofria castigos variados por uma falta que não notava, mas que era a de ter bebido muito
vinho do Porto. De súbito despertava, percebia que, graças a um longo sono não tinha ouvido o
concerto sinfônico. Já era meio-dia; certifiquei-me disso pelo relógio de pulso, após alguns
esforços para me levantar, esforços a princípio esbaldados e interrompidos por quedas sobre o
travesseiro, mas dessas quedas curtas se seguem ao sono como a outras tonteiras, sejam
causadas pelo vinho ou pela convalescença; além do mais, mesmo antes de ter olhado a hora,
estava certo que já era mais de meio-dia. Ontem à tardinha, eu não passava de um ser vazio, sem
peso e (como é preciso ter estado deitado para ser capaz de sentar-se e de estar dormido para
conseguir calar-se) não podia deixar de me mexer nem de falar; já não possuía consistência nem
centro de gravidade, achava-me como que lança parecia-me poder continuar aquele sombrio
percurso até a lua. Ora, se alguns dos meus olhos não tinham visto a hora, meu corpo soubera
calculá-la, havia medido o tempo não sobre um quadrante superficialmente representado, mas
pelo peso progressivo de todas as minhas forças refeitas que ele, como um possante relógio,
deixara descer ponto a ponto do meu cérebro para o resto do corpo, onde agora ajuntavam, até
acima de meus joelhos, a abundância intacta de suas provisões. Se é verdade que o mar outrora
foi o nosso meio vital, onde é necessário voltar a mergulhar o nosso sangue para recuperar
nossas forças, o mesmo se dá com o esquecimento, com o nada mental; então parecemos
ausentes do tempo durante algumas horas; mas as forças que se organizaram durante esse
intervalo, sem serem gastas, medem-no pela quantidade delas de forma tão exata como os
pêndulos de um relógio ou os escorrentes montículos de areia da ampulheta. Aliás, não se sai
mais facilmente de um tal sono do que da vigília prolongada, de tal maneira todas as coisas
tendem a perdurar, e, se é verdadeiro que certos narcóticos fazem dormir, dormir por muito tempo
é um narcótico ainda mais potente, após o qual temos muito trabalho para despertar. Semelhante
a um marinheiro que vê muito bem o cais aonde amarrar o seu barco, no entanto ainda sacudido
pelas vagas, bem que eu pensava olhar a hora e levantar-me, mas meu corpo era, a todo
instante, jogado de volta ao sono; a aterrissagem era difícil e, antes de me pôr de pé para
alcançar o relógio e comparar sua hora com a que me indicava a riqueza de materiais de que
dispunham minhas pernas exaustas, caía ainda duas ou três vezes sobre o travesseiro.
Por fim, enxergava claramente: "duas horas da tarde", tocava a campainha, mas logo
recaía num sono que, desta vez, deveria ser infinitamente mais longo, a julgar pelo repouso e pela
visão de uma imensa noite ultrapassada que eu encontrava ao despertar. Entretanto, como este
era causado pela entrada de Françoise, entrada decorrente do meu toque de campainha, este
novo sono, que me parecia ter sido mais longo que o anterior e me trouxera tanto bem-estar e
esquecimento, não durara mais que meio minuto. Minha avó abria a porta de meu quarto, e eu lhe
fazia algumas perguntas sobre a família Legrandin.
Não é bastante dizer que havia recobrado a calma e a saúde, pois era mais que uma
simples distância que os havia separado de mim na véspera; eu lutara a noite inteira contra uma
onda contrária e, além disso, não me encontrava apenas junto delas: elas haviam reentrado em
mim. Em pontos determinados e ainda um pouco dolorosos da minha cabeça vazia, e que um dia
ainda seria quebrada, deixando meus pensamentos escaparem-se para sempre, estes haviam
novamente assumido o seu lugar e recuperado essa existência de que, infelizmente, ainda não
tinham sabido aproveitar-se.
Uma vez mais eu escapara à impossibilidade de dormir, ao dilúvio, ao naufrágio das crises
nervosas. Já não temia de modo algum o que me ameaçava na véspera, à noite, quando estava
desprovido de repouso. Uma vida nova se abria diante de mim; sem fazer um só movimento, pois
ainda estava moído embora - disposto, gozava o meu cansaço com alegria; ele isolara e rompera
os ossos das minhas pernas, dos meus braços, que eu sentia reunidos à minha frente, prontos
para se recomporem, e que iria reerguer-me apenas cantando, como o arquiteto da fábula.
De súbito, recordei-me da jovem loura de ar triste que vira em Rivebelle percebia que me
olhara por um instante. Durante toda a noite, muitas outras me haviam parecido agradáveis; agora
somente ela vinha erguer-se do fundo de minha lembrança. Parecia-me que me havia notado; eu
esperava que um dos garçons de Rivebelle viesse me dizer uma palavra de sua parte. Saint-Loup
não a conhecia e achava que era direita. Seria muito difícil vê-la, vê-la constantemente. Mas eu
estava disposto a tudo para tanto; só pensava nela. Muitas vezes a filosofia fala de livres e de atos
necessários. Talvez não exista um ato mais absolutamente sofrido por nós do que esse que,
devido a uma força ascensional comprimida durante a ação e, uma vez estando o nosso
pensamento em repouso, faz remontar desse modo até ela uma lembrança até então nivelada às
outras pela força opressiva da distração, e lançar-se à frente porque, sem que o soubéssemos,
continha, mais linguagem dos outros atos, um encanto que só percebemos 24 horas depois. E
talvez também não haja ato mais livre, pois ainda está destituído do hábito, dessa espécie de
lembrança mental que, no amor, favorece o renascimento exclusivo da imagem de uma pessoa.
Esse dia era justamente o seguinte àquele em que eu vira desfilar diante do mar o belo
cortejo das moças. Sobre elas, interroguei vários hóspedes do hotel que vinham quase todos os
anos a Balbec. Não puderam me dar informações. De tarde, um fotógrafo me explicou o motivo.
Quem poderia reconhecer agora nelas recém-saídas, mas enfim já saídas de uma idade em que
as mudanças são completas, certa massa amorfa e deliciosa, ainda bastante infantil, de meninas -
apenas alguns anos antes, podiam ser vistas sentadas em círculo na areia, em tom de uma
barraca; espécie de branca e indecisa constelação onde não se distinguiriam dois olhos mais
brilhantes que outros, um rosto malicioso, cabelos louros, senão para logo se voltar a perdê-los e
confundi-los bem depressa no seio de uma nebulosa láctea e indistinta?
Sem dúvida, naqueles anos ainda bem pouco afastados, não era à vi no grupo, como na
véspera em seu primeiro aparecimento diante de mim, mas era ao próprio grupo que faltava
nitidez. Então, aquelas crianças muito novinhas estavam ainda nesse grau elementar de formação
em que a personalidade não imprimiu um sinal em cada rosto. Como esses organismos primitivos
em que o indivíduo que não existe por si mesmo e é antes constituído pelo polipeiro que por cada
um dali pólipos que o compõem, elas permaneciam comprimidas umas contra as outras. Às
vezes, uma fazia a sua vizinha cair, e então um riso louco, que parecia uma manifestação de sua
vida pessoal, agitava-as todas ao mesmo tempo, apagando e confundindo esses rostos indecisos
e careteiros na geleia de um só cacho cintilante e trêmulo. Numa fotografia antiga que elas
deveriam me dar um dia, e que guardei comigo, seu grupo infantil já apresenta o mesmo número
de figurantes que o seu cortejo feminino mais tarde; sente-se ali que já deviam realizar na praia
certa mancha singular que forçava todos a olharem para elas, mas ali não se pode reconhecê-las
individualmente senão por meio do raciocínio, deixando livre o campo a todas as transformações
possíveis durante a juventude, até o limite em que essas formas reconstituídas redundassem
numa outra individualidade que também é necessária a identificar e cujo belo rosto, por causa da
concomitância de uma elevada estatura e de cabelos crespos, tem probabilidade de haver sido
outrora esse encolhimento de careta mirrada apresentado pelo retrato; e a distância percorrida em
pouco tempo pelos caracteres físicos de cada uma daquelas moças fazia deles um critério muito
vago e, por outro lado, visto que o que possuíam em comum e, por assim dizer, de coletivo, era
desde essa época bastante acentuado, ocorria às vezes às suas melhores amigas confundir uma
com outra naquela fotografia, de modo que a dúvida afinal não podia ser inteiramente desfeita
senão por um determinado acessório da toalete que uma delas tinha certeza de ter usado, com
exclusão das outras. Desde esses dias tão diversos daquele em que eu acabava de vê-las no
molhe, tão diversos e no entanto tão próximos, elas ainda se abandonavam ao riso, como eu
havia reparado na véspera, mas a um riso que já não era o riso intermitente e quase automático
da infância, escape espasmódico que antigamente fazia a todo instante aquelas cabeças darem
um mergulho, como os ''bandos de vairões" no Vivonne se dispersavam e desapareciam para se
reunirem logo após; suas fisionomias agora se haviam tornado senhoras de si mesmas, os olhos
se fixavam nos objetivos que perseguiam; e ontem foram necessários a indecisão e o tremor de
minha primeira percepção para confundir indistintamente, como o fizera a antiga hilaridade e a
velha fotografia, as espóradas hoje individualizadas e desunidas da pálida madrépora.
Sem dúvida, muitas vezes, à passagem das belas moças, fizera a mim mesmo a promessa
de revê-las. De hábito, elas não reapareciam; além disso, a memória, que depressa esquece a
sua existência, dificilmente reencontraria os seus vestígios; nossos olhos talvez não as
reconheçam, e já veremos passar novas moças que tampouco voltaremos a ver. Mas outras
vezes, e assim devia acontecer no caso do pequeno grupo insolente, o acaso as traz com
insistência para diante de nós. Este então nos parece belo, pois nele percebemos uma espécie de
princípio de organização, de esforço para compor a nossa vida; e nos torna fácil, inevitável às
vezes, após interrupções que poderiam fazer crer que deixaríamos de lembrança cruel, a
fidelidade das imagens a cuja posse acreditaremos mais tarde ter predestinados, e que, sem ele,
poderíamos, logo no começo, esquecer tão fatalmente como tantas outras.
Em breve a licença de Saint-Loup chegou ao fim. Eu não pudera esquecer aquelas moças
na praia. Saint-Loup passava muito pouco tempo à tarde em Balbec para poder se ocupar delas e
tentar conhecê-las por minha causa. A noite estava mais livre e continuava a me levar com
frequência a Rivebelle. Nesses restaurante como nos jardins públicos ou nos trens, há pessoas
fechadas numa aparência comum e cujo nome nos assombra se, tendo-o perguntado por acaso,
descemos que são não o inofensivo pobre diabo que supúnhamos, mas nada menor do que
ministro ou o duque de quem muitas vezes ouvíramos falar. Já duas ou três vezes no restaurante
de Rivebelle, Saint-Loup e eu tínhamos visto sentar a uma mesa, quando todo mundo começava
a retirar-se, um homem de elevada estatura, bastante musculoso, de traços regulares, barba que
principiava a embranquecer, mas com olhar sonhador permanecia fixo com determinação no
vazio. Uma noite em que perguntamos ao proprietário quem era aquele freguês obscuro, isolado e
retardatário:
- Como? Não conhecem o célebre pintor Elstir? - indagou ele.
Swann pronunciara esse nome uma vez diante de mim, e absolutamente eu não me
lembrava a propósito de quê; porém a omissão de uma lembrança, como a de um membro da
frase numa leitura, beneficia às vezes não a incerteza mas a eclosão de uma certeza prematura.
- É um amigo de Swann e um artista muito conhecido, de grande valor. - disse eu a Saint
Loup. E logo passou por nós dois, como um frêmito, a ideia de que Elstir era um grande artista,
um homem célebre, e depois que, confundindo-nos com os outros fregueses, não desconfiava da
exaltação em que nos lançara a qualidade de seu talento. Sem dúvida, o fato de que ignorava a
nossa admiração e de conhecermos Swann não nos teria sido penoso se não estivéssemos
igualmente nos banhos de Balbec. Mas, presos numa idade em que o entusiasmo não pode ficar
silencioso e contidos numa vida em que o incógnito parece sufocante, escrevemos uma carta
assinada com nossos nomes, em que revelávamos a Elstir, nos dois fregueses sentados a alguns
passos dele, dois amadores apaixonados pelo seu talento, dois amigos de seu grande amigo
Swann, e na qual pedíamos para apresentar nossas homenagens. Um garçom se encarregou de
levar essa carta ao homem célebre.
Célebre, Elstir talvez ainda não o fosse naquele tempo tanto quanto e pretendia o
proprietário do restaurante, e como, aliás, o foi pouquíssimos anos depois. Mas fora dos primeiros
a morar naquele estabelecimento, enquanto esta não passava de uma espécie de granja, e a
levar para ali uma colônia de artistas (que, afinal, haviam todos emigrado para outras bandas
desde que a granja, em que se comia ao ar livre, debaixo de um simples alpendre, se
transformara num centro elegante; o próprio Elstir só voltava naquele momento a Rivebelle por
causa de uma ausência da esposa, com quem morava não longe dali). Mas um grande talento,
mesmo quando ainda não é reconhecido, provoca necessariamente alguns fenômenos de
admiração, e tais que o proprietário da granja fora mesmo levado a distingui-los nas perguntas de
mais de uma inglesa de passagem, devido a informações sobre a vida que levava Elstir, ou pelo
número de cartas que este recebia do estrangeiro. Então, notara igualmente que Elstir não
gostava de ser incomodado enquanto estava trabalhando, que se levantava de noite para levar
um pequeno modelo a posar nu à beira-mar, quando brilhava a lua, e dissera consigo que tantas
canseiras não eram perdidas, nem injustificada a admiração dos turistas, quando reconhecera
num quadro de Elstir uma cruz de madeira que estava plantada à entrada de Rivebelle.
- É ela, sem tirar nem pôr - repetia estupefato. - Tem os quatro braços! Ah, mas também ele
trabalha tanto!
E desconfiava que um pequeno "nascer do sol sobre o mar", que Elstir lhe dera, valesse
mesmo uma fortuna. Nós o vimos ler nossa carta, pô-la no bolso, continuar a jantar, começar a
pedir seus apetrechos, levantar-se para sair, e estávamos tão certos de tê-lo chocado com nosso
pedido, que agora teríamos desejado (tanto quanto o receáramos) partir sem ser percebidos por
ele. Nem um só instante pensamos numa coisa que no entanto deveria nos parecer a mais
importante, ou seja, que o nosso entusiasmo por Elstir, de cuja sinceridade não teríamos permitido
fosse posta em dúvida e de que poderíamos, com efeito, dar como testemunho a nossa
respiração entrecortada pela espera, o nosso desejo de fazer qualquer coisa difícil ou heroica pelo
grande homem, não era, como imaginávamos, admiração, já que nunca havíamos visto nada de
sua autoria; nosso sentimento podia ter por objeto a ideia vazia de "um grande artista" e não uma
obra que nos era ignorada. Quando muito, era admiração no vazio, o quadro nervoso, a estrutura
sentimental de uma admiração sem conteúdo, isto é, algo tão indissoluvelmente ligado à infância
como certos órgãos que não existem mais no homem adulto; ainda éramos crianças. Entretanto,
Elstir já ia chegando à porta quando, de repente, deu meia-volta e veio até nós. Sentia-me
transportado de um delicioso pavor como não poderia suportar alguns anos mais tarde, pois que,
ao mesmo tempo que a idade diminui nossa capacidade, o costume da vida social nos tira toda
ideia de provocar tão estranhas oportunidades, de sentir esse tipo de emoções.
Dentre as poucas palavras que Elstir nos disse ao sentar-se à nossa mesa, nunca me
respondeu nas várias vezes em que lhe falei de Swann. Comecei a acreditar que não o conhecia.
Nem por isso deixou de me pedir que o visitasse no seu ateliê de Balbec, convite que não dirigiu a
Saint-Loup, e que fiquei devendo, o que talvez não tivesse ocorrido quanto à recomendação de
Swann se Elstir lhe fosse ligado (pois a parte dos sentimentos desinteressados é maior do que se
julga na vida dos homens), a algumas palavras que o fizeram imaginar que eu amava artes.
Prodigalizou-me uma amabilidade que era tão superior à de Saint-Loup como esta à afabilidade
de um pequeno-burguês. Ao lado da de um artista, a amabilidade de um grão-senhor, por mais
encantadora que seja, dá a impressão de um desempenho de ator, de uma simulação. Saint-Loup
buscava agradar; Elstir gostava de dar, de se doar. Tudo o que possuía, ideias, obras, e o
restante, a que atribuía muito menos valor, teria dado com alegria a alguém que o tivesse
compreendido. Mas, falta de uma sociedade suportável, vivia no isolamento, com uma selvageria
que as pessoas da sociedade denominavam pose e má educação, os poderes públicos; falta de
espírito de cooperação, seus vizinhos loucura, e sua família, egoísmo e orgulho. E, sem dúvida,
nos primeiros tempos havia pensado com prazer, mesmo na solidão, que, através de suas obras,
dirigia-se à distância, dava uma ideia mais alta de si mesmo àqueles que o tinham desconhecido
ou magoado. Talvez então vivesse a sós, não por indiferença mas por amor aos outros e, como eu
renunciara a Gilberte para um dia reaparecer a seus olhos sob cores mais amáveis, destinava sua
obra a alguns, como um retorno a eles, onde, sem que o revissem, o amariam, o admirariam,
falariam dele; uma renúncia nem sempre é total desde o começo, quando nos decidimos por ela
com a nossa alma antiga e antes que, em reação; tenha agido sobre nós, quer se trate da
renúncia de um enfermo, de um monge, de um artista ou de um herói. Mas, se desejara produzir
em função de algumas pessoas, ao produzir vivera para si mesmo, longe da sociedade à qual se
tornara indiferente; a prática da solidão lhe conferira o amor a ela, como ocorre com toda grande
coisa que no princípio receamos, porque a sabíamos incompatível com as coisas menores a que
nos apegávamos e das quais ela menos nos priva do que desliga. Antes de conhecê-la, toda
nossa preocupação é de saber em que medida poderemos conciliá-la com certos prazeres que
deixam de sê-lo desde que a conheçamos.
Elstir não ficou muito tempo conversando conosco. Eu me prometia ir a seu ateliê nos dois
ou três dias seguintes, mas, no dia seguinte àquela noite, como tivesse acompanhado minha avó
até a extremidade do molhe, na direção das falésias de Canapville, na volta, à esquina de uma
das ruelas que desembocam, perpendicularmente, na praia, cruzamos com uma jovem que, de
cabeça baixa como um animal que fizessem a contragosto entrar no estábulo, e segurando tacos
de golfe, caminhava adiante de uma pessoa autoritária, provavelmente a sua "inglesá', ou aquela
de suas amigas que se parecia com o retrato de Jeffries por Hogarth, ou vermelho como se sua
bebida predileta fosse o gim em vez do chá, e prolongada em pontas torcidas e cheias de tabaco
um bigode grisalho porém espesso. A menina que a precedia parecia-se com a do pequeno grupo
que, sob um boné, mostrava olhos risonhos num rosto imóvel e gorducho. Ora, essa que
retornava naquele momento tinha também um boné preto, mas me pareceu ainda mais bonita que
a outra, a linha de seu nariz era mais reta e na base a asa era maior e mais carnuda.
Depois, a outra me aparecera como uma orgulhosa moça pálida, e esta como uma criança
submissa e de pele rosada. No entanto, como empurrava uma bicicleta semelhante e usasse as
mesmas luvas de rena, concluí que as diferenças deviam-se talvez à maneira como eu estava
colocado e às circunstâncias, pois era pouco provável que houvesse em Balbec uma outra moça
de rosto apesar de tudo tão semelhante e que, no seu vestido singular, reunisse as mesmas
particularidades. Ela lançou um rápido olhar na minha direção; nos dias seguintes, quando revi o
pequeno grupo na praia, e até mais tarde, quando conheci todas as moças que o formavam,
nunca tive certeza absoluta que alguma delas, mesmo aquela que, de todas, mais se lhe parecia
a moça de bicicleta - fosse exatamente aquela que eu vira nessa noite no extremo da praia, na
esquina da rua, moça que não era muito, mas afinal era um pouco, diversa da que eu observara
no cortejo.
continua na página 175...
________________
Leia também:
Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - p)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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