quinta-feira, 24 de abril de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Terceira Parte (8a) - Ria, mas estava escandalizada

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Terceira Parte
8.

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      Ria, mas estava escandalizada.

- Dormindo? Será possível? - exclamou com admirado desdém. Acordando, o príncipe logo que, cheio de surpresa, a reconheceu, balbuciou: 
- Sois vós! Ah! É mesmo, combinamos um encontro aqui... E não é que adormeci?... 
- Estou vendo. 
- Foi outra pessoa que me acordou ou fostes vós? Não esteve mais ninguém aqui, pouco antes de vós? Julguei, ou foi sonho, que uma outra mulher se achava aqui!? 
- Uma outra mulher, aqui?

“Não passou de sonho...” explicou ele a si mesmo, refletindo: Como é que a uma hora destas pôde me vir um tal sonho?... - Sentai-vos. Tomou-lhe a mão e a fez sentar no banco; sentou-se ao lado e continuou com a mesma expressão perplexa. Ao invés de começar a conversar, Agláia encarou seu companheiro de banco, esquadrinhando-o de alto a baixo. Ele a olhava também mas como se não a estivesse vendo. Por fim Agláia enrubesceu. - Ah! É mesmo... - disse ele, com um sobressalto. - Ippolít desfechou um tiro de pistola no ouvido. 

- Quando? E... na sua casa? - perguntou Agláia com uma surpresa que logo cedeu. - Ontem à noite ainda estava vivo, não estava? E como é que o encontro aqui a dormir, depois de uma coisa dessas? - exclamou com uma vivacidade de espanto.

     O príncipe tratou de esclarecer: 

- Mas não morreu, não! A pistola negou fogo. 

     Então Agláia instou para que lhe fizesse uma descrição minuciosa do que se passara de noite. E, durante a narrativa, o incitava por meio de perguntas às vezes até despropositadas. Ao lhe serem relatadas as ocasiões em que Evguénii Pávlovitch interviera, ela se interessou muito, obrigando-o a repetir as palavras deste. 

- Está bem, mas o tempo é precioso. Quanto a essa historiada, basta. Só podemos ficar aqui uma hora. Até às oito. Às oito horas tenho de ir embora pois não quero que em casa venham a saber que estive sentada aqui e tampouco que saí com este intuito. Tenho muita coisa a lhe dizer. Mas agora, com essas novidades sensacionais, fiquei sem jeito. Quanto a Ippolít, acho que a pistola tez muito bem em não disparar... Dele, que se podia esperar. Acredita mesmo que pretendia se matar e que não se trata de uma comédia?
- Não, não foi a fingir. 
- De fato, isso é mais provável. Com que então leu que me deviam entregar a tal confissão? E o encarregou dessa empreitada. Trouxe? Por que não trouxe? 
- Pois se ele não morreu... Depois peço e vos entrego. 
- Não se esqueça. Mas traga sem pedir. Um pedido desta ordem rejubilaria, talvez tendo sido somente por causa disso que tentaste contra a vida. Para que eu depois lesse a confissão. Por favor Liév Nikoláievitch, não faça esse riso. Pois então não pode muito bem ter sido por isso? 
- Mas eu não estou rindo! Mesmo porque também suponho que essa fosse uma das razões prováveis. 
- Não é mesmo? Não lhe parece verdade? Há, acha, hein? 

     E Agláia esboçou um ar de surpresa. 
     Logo a seguir lhe fez uma porção de perguntas, falando muito depressa, parecendo às vezes se atrapalhar e deixando as frases sem fim. Toda essa pressa era como se quisesse avisá-lo de uma determinada coisa. Ao mesmo tempo se mostrava extraordinariamente nervosa e, apesar de o olhar com certo ar zombeteiro e quase de provocação, entremostrava sem querer algum receio. Viera apenas com um vestido matinal, muito simples, usado, e a todo instante enrubescia e olhava em torno. Sentara-se na extremidade do banco, estando ainda admirada do príncipe haver concordado que talvez Ippolít quisesse se matar para que ela, depois, lesse a sua confissão. E, como a esclarecer seu pensamento, o príncipe acrescentou:

- Naturalmente o desejo dele era que nós o gabássemos... bem como vós...
- Que o gabássemos? 
- Isto é... como hei de dizer?... É difícil explicar. Decerto queria ele que desfilássemos diante dele ou que fazendo um círculo insistíssemos em declarar que gostávamos muito dele e que lhe rendíamos grande apreço; cuidava decerto e talvez mesmo ansiava por que todos rogassem que não fizesse uma tal coisa, que permanecesse vivo. Quem nos diz até que ele não esperasse tal atitude mais de vós do que de nós outros, já que chegou a mencionar vosso nome naquela ocasião? Podia muito bem acontecer que vos tivesse no espírito, inconscientemente. 
- Isso agora é que não compreendo. Como podia ele ter isso em mente. inconscientemente? Ah! Já compreendi! Vou exemplificar. Quando eu tinha apenas treze anos me veio mais de trinta vezes a fantasia de tomar um veneno e deixar uma longa carta a meus pais! Enlevava-me imaginar como haveria de ficar no caixão; como todos viriam em prantos se jogar sobre mim arrependidos de haver judiado de mim!... Por que é que está rindo de novo? - acrescentou logo, franzindo a testa. - Não teve nunca fantasias, projetos, sonhos extravagantes? Nunca imaginou que era marechal-de-campo e que derrotou por exemplo... Napoleão?
- Quantas vezes, palavra de honra! Pensamentos dessa natureza me acodem sempre que sonho - respondeu, rindo. - Basta-me pegar no sono e pronto... Mas não é Napoleão que venço e sim os austríacos. Não estou disposta a brincadeiras, Liév Nikoláievitch. Irei eu mesma procurar Ippolít. Pode desde já preveni-lo. Tive uma péssima impressão do seu comentário. Não deve nunca interpretar as coisas parcialmente e tampouco julgar a alma de um homem, como fez a propósito de Ippolít. A gente sempre, em lugar de só querer ver a verdade exata com intuito de julgar direito, acaba mais é cometendo injustiças por falta de ternura e caridade.

     O príncipe redarguiu:

- Mas se há aqui algum engano ou injustiça é da vossa parte para comigo. Pois então há algum mal em que ele pensasse desta maneira? Pois a tendência geral não é pensar desta forma? Além disso talvez ele nem tivesse absolutamente tal pensamento, apenas fosse um desejo vago... Decerto ansiava desde muito se aproximar dos homens, ganhar-lhes o respeito, merecer-lhes a estima. Sabeis muito bem que tais sentimentos são bons. Mas não deu certo. Alguma coisa interveio e atrapalhou. Talvez a doença, ou qualquer outra coisa, quem sabe? Pois não sucede tantas vezes tudo correr esplendidamente com uma pessoa e pessimamente com outra?...
- Está porventura, Liév Nikoláievitch, se estribando em experiência própria? 
- Quem sabe? Quem sabe? Pode muito bem ser - respondeu o príncipe sem perceber sarcasmo na pergunta.
- Seja como for, tudo isso era suficiente para que eu, por exemplo, no seu lugar, não dormisse. Isso prova só que onde quer que se encoste pega logo no sono, não é? Acha bonito uma coisa dessas?
- Mas.., se passei a noite toda em claro... E depois ainda por cima levei horas a caminhar! Fui até perto do coreto.
- Qual coreto? O da música?! 
- Lá onde a banda esteve tocando, ontem. A seguir vim para aqui. Sentei-me, estive a pensar que não acabava mais.., acabei dormindo.
- Ah! Então foi assim? Bem, então o caso é diferente. Mas para que foi ao coreto?
- Não sei. À toa. 
- Muito bem, muito bem! Isso fica para depois. Acabou mais foi interrompendo o fio da minha conversa. E que tenho eu com isso, se foi até ao coreto? Que mulher era essa com a qual esteve sonhando? 
- Era... a que vistes aquela noite. 
- Ah! Sim, sim! Já compreendi muito bem. Não lhe sai da cabeça!... E sonhou o que com ela? Que é que ela estava fazendo? Não pense que me interessa saber...- disse mais alto e com pronúncia diferente, amuada - Não me interrompa!... Parou de falar por um momento, como para tomar alento ou dissipar o amuo - Passemos agora ao que interessa. Devo dizer-lhe por que foi que lhe pedi que viesse se encontrar comigo aqui. Desejo propor-lhe que sejamos bons amigos. Por que arregala os olhos dessa maneira? - perguntou com timbre quase colérico.

      Naturalmente o príncipe se pusera a contemplá-la muito atento, vindo a perceber que ela, ditas aquelas palavras, enrubescera logo. Em circunstâncias análogas, ela sempre quanto mais enrubescia mais zangada parecia ficar consigo mesma, e isso estava nitidamente visível em seus olhos lampejantes. Então, via de regra, transferia a raiva, irritando-se com a pessoa causadora de tal situação, merecesse esta ou não censura, pondo-se logo a descompô-la. Mas como percebia quanto era arrebatada e irritadiça, tendo demasiada consciência do seu temperamento, adotara como regra ser esquiva a conversas e intimidades, sendo mais calada do que as irmãs, às vezes mesmo circunspecta demais. Quando, e mais principalmente em casos súbitos e delicados, era obrigada positivamente a falar, iniciava a conversa com acentuada altivez e com uma expressão quase de desafio. E sempre sentia de antemão quando começava a ficar vermelha.

- Talvez não esteja disposto a aceitar esta minha proposta - disse com ar sobranceiro.
- Como não? Quero, e muito. Apenas a acho desnecessária... quero dizer... - quis o príncipe explicar.  
- Pensou então o quê? Supôs que lhe pedi que viesse se encontrar comigo aqui para quê? Seja franco! Ou estará me supondo uma espinoteada como pensam todos lá de casa? 
- Não sabia que em casa vos consideravam uma espinoteada. Eu não vos considero. 
- Não me considera? Muito hábil da sua parte. Maravilhosamente bem respondido. 
- Acho até que deveis dar mostra muito constantemente de grande sensatez - prosseguiu o príncipe – Ainda agora dissestes uma coisa admirável. Quando faláveis a respeito de Ippolít: “A gente sempre, em lugar de só querer ver a verdade exata com o intuito de julgar direito, acaba mais é cometendo injustiças por falta de ternura e caridade”. Não me esquecerei disso, que me há de prestar muitos serviços. 

     Agláia ficou logo rubra. com o prazer que sentiu. Tais transições de sentimentos se operavam nela quase sem mostras de artifício, alternando-se rapidamente. Também Míchkin ficou satisfeito e sorriu, com notório prazer, esquadrinhando-a.

- Ouça - começou ela -, esperei muito tempo para lhe dizer uma porção de coisas. Tive vontade desde que me escreveu aquela carta; e até mesmo antes. Aliás, ontem já ouviu metade delas. Considero-o o mais honesto e sincero dos homens, mais honesto e mais sincero do que qualquer outro. E se andam dizendo por aí que o seu juízo... isto é, que às vezes fica afetado do juízo, são injustos. Já me certifiquei disso e já tive brigas com os outros, muito embora veja que é mesmo afetado mentalmente... (não vai, naturalmente, se zangar comigo; estou falando de um ponto de vista muito alto). O espírito, que conta, esse é melhor em você do que nos demais. É alguma coisa com o que eles, de fato, nunca sonharam. Sim, pois há duas espécies de espírito, o principal, que importa, e o secundário, que tem valor muito relativo. Tenho razão. É isso mesmo. não é?
- Talvez seja - pronunciou o príncipe muito baixo.

     O seu coração palpitava e latejava violentamente.

- Eu tinha certeza de que você entenderia - continuou ela de modo expressivo - O Príncipe Chtch... e Evguénii Pávlovitch, por exemplo, não entendem que haja estas duas espécies de espírito; nem Aleksándra, tampouco; mas, calcule só, mamãe entende!
- Vós vos pareceis muito com Lizavéta Prokófievna. 
- Acha? Realmente? perguntou Agláia. com surpresa. 
- Deveras. 
- Muito obrigada - disse Agláia depois de um momento de reflexão. - Fico muito contente de parecer com mamãe. Gosta então muito dela? - acrescentou sem se dar conta da ingenuidade da sua pergunta.
- Muitíssimo. E me alegra sobremodo que tenhais reparado nisso imediatamente, por vós mesma. 
- E fico mais contente de ouvir isso porque já reparei que muita gente às vezes ri dela. Mas deixe que lhe diga o principal. Andei refletindo por muito tempo e afinal o descobri. Não quero que em casa se riam de mim; não suporto que me tenham na conta de uma estouvada; não quero que me enfezem com motejos... Percebi instantaneamente a intenção e me recusei a ficar noiva de Evguénii Pávlovitch, porque estou farta de assistir a essa procura contínua de noivos para mim! O que eu quero... o que eu quero... Ora, muito bem, o que eu quero é fugir de casa, e o escolhi para me ajudar.
 - Fugir de casa?! - exclamou o príncipe. 
- Sim, sim, fugir, fugir! - repetiu ela, mudando de cor, inflamando-se logo com extraordinária exasperação - Não os posso suportar, já não os tolero mais! Não cessam de me enraivecer. Não quero corar diante deles, na frente do Príncipe Chtch... de Evguénii Pávlovitch, ou de qualquer outro! E foi por isso que o escolhi. A você direi tudo, tudo, mesmo a coisa mais importante, sempre que quiser, e sei que você, por seu lado, não me esconderá nada. Quero poder falar livremente pelo menos a uma pessoa, a respeito de tudo quanto eu vier a pensar. Desandaram a dizer, sem mais aquela, que eu o estava esperando e que o amava. Isso começou, antes da sua volta, embora eu não lhes mostrasse a carta. Com a sua vinda para aqui tudo recrudesceu. Quero ser destemida e não ter receio de coisa alguma. Estou farta de bailes. Quero fazer-me valer, ser útil. Desde muito que anseio viajar, sair disto. Há vinte anos que vivo engarrafada em casa. Só pensam em uma coisa: casar-me. Desde os quatorze anos que venho pensando em fugir desta vida, embora fosse uma tola. Agora planejei tudo e estive aguardando a sua volta para que me informe bastante a respeito do estrangeiro. Nunca vi uma catedral gótica. Quero ir a Roma. Quero visitar todas as sociedades cultas. Quero estudar em Paris. Venho me preparando e estudando muito; no ano passado li muitos livros. Li todos os livros proibidos. Adelaída e Aleksándra leem os livros que muito bem querem. Mas a mim não deixam e me vigiam. Não pretendo indispor-me com as minhas irmãs, mas já fiz ver a mamãe e a papai que desejo operar uma transformação completa na minha posição social. Quero dedicar-me ao ensino das crianças e pensei em para isso recorrer a você porque nos declarou naquele dia quanto gostava da infância. Não nos poderíamos ambos dedicar a isso, não digo já. imediatamente, mas em um futuro próximo? Poderíamos vir a ser muito úteis. Não quero me limitar a ser filha de um general. Diga-me uma coisa: você estudou muito?
- Oh! Nem por isso!
- É pena, porque eu tinha pensado em... Como é que fui pensar nisso!... Não importa, de qualquer maneira você será o meu guia. Já o escolhi. 
- Isso é absurdo, Agláia Ivánovna. 
- Quero fugir de casa, pronto! - exclamou, e de novo os seus olhos cintilaram - E se você não concordar, então me caso com Gavríl Ardaliónovitch. Estou farta de em casa ser considerada como uma criatura horrível e de me acusarem sabe Deus de quê!
- Perdestes o critério? - admoestou-a o príncipe, quase saltando do banco - Acusada de quê? Por quem? 
- Por todo o mundo. Mamãe, papai, as manas, o Príncipe Chtch... e até esse confiado Kólia. E se não falam diretamente, pensam! Já lhes disse tudo isso na cara; a mamãe e a papai também. Mamãe depois ficou doente um dia inteiro. No dia seguinte Aleksándra e papai vieram me aconselhar: que eu nem sabia quanta asneira dissera; as palavras que proferira. Retruquei-lhes logo que sabia sim, muito bem, que conhecia o sentido de todas as palavras, todas! Que já não sou uma simples meninota; que no ano atrasado li até duas novelas de Paul de Kock, para ficar sabendo... coisas! Mamãe quando ouviu isto quase caiu desacordada. 

     Uma estranha ideia ocorreu ao príncipe que, olhando para Agláia muito firme, sorriu.

O Idiota: Terceira Parte (8a) - Ria, mas estava escandalizada
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