O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Terceira Parte
8..
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Ria, mas estava escandalizada.
- Dormindo? Será possível? - exclamou com admirado desdém. Acordando, o
príncipe logo que, cheio de surpresa, a reconheceu, balbuciou:
- Sois vós! Ah! É mesmo, combinamos um encontro aqui... E não é que
adormeci?...
- Estou vendo.
- Foi outra pessoa que me acordou ou fostes vós? Não esteve mais ninguém aqui,
pouco antes de vós?
Julguei, ou foi sonho, que uma outra mulher se achava aqui!?
- Uma outra
mulher, aqui?
“Não passou de sonho...” explicou ele a si mesmo, refletindo: Como é que a uma
hora destas pôde me vir um tal sonho?... - Sentai-vos. Tomou-lhe a mão e a fez
sentar no banco; sentou-se ao lado e continuou com a mesma expressão
perplexa. Ao invés de começar a conversar, Agláia encarou seu companheiro de
banco, esquadrinhando-o de alto a baixo. Ele a olhava também mas como se não
a estivesse vendo. Por fim Agláia enrubesceu. - Ah! É mesmo... - disse ele, com
um sobressalto. - Ippolít desfechou um tiro de pistola no ouvido.
- Quando? E... na sua casa? - perguntou Agláia com uma surpresa que logo
cedeu. - Ontem à noite ainda estava vivo, não estava? E como é que o encontro aqui a
dormir, depois de uma coisa dessas? - exclamou com uma vivacidade de
espanto.
O príncipe tratou de esclarecer:
- Mas não morreu, não! A pistola negou fogo.
Então Agláia instou para que lhe
fizesse uma descrição minuciosa do que se passara de noite. E, durante a
narrativa, o incitava por meio de perguntas às vezes até despropositadas. Ao lhe
serem relatadas as ocasiões em que Evguénii Pávlovitch interviera, ela se
interessou muito, obrigando-o a repetir as palavras deste.
- Está bem, mas o tempo é precioso. Quanto a essa historiada, basta. Só
podemos ficar aqui uma hora. Até às oito. Às oito horas tenho de ir embora pois
não quero que em casa venham a saber que estive sentada aqui e tampouco que
saí com este intuito. Tenho muita coisa a lhe dizer. Mas agora, com essas
novidades sensacionais, fiquei sem jeito. Quanto a Ippolít, acho que a pistola tez
muito bem em não disparar... Dele, que se podia esperar. Acredita mesmo que
pretendia se matar e que não se trata de uma comédia?
- Não, não foi a fingir.
- De fato, isso é mais provável. Com que então leu que me deviam entregar a tal
confissão? E o encarregou dessa empreitada. Trouxe? Por que não trouxe?
- Pois se ele não morreu... Depois peço e vos entrego.
- Não se esqueça. Mas
traga sem pedir. Um pedido desta ordem rejubilaria, talvez tendo sido somente
por causa disso que tentaste contra a vida. Para que eu depois lesse a confissão.
Por favor Liév Nikoláievitch, não faça esse riso. Pois então não pode muito bem
ter sido por isso?
- Mas eu não estou rindo! Mesmo porque também suponho que
essa fosse uma das razões prováveis.
- Não é mesmo? Não lhe parece verdade? Há, acha, hein?
E Agláia esboçou um
ar de surpresa.
Logo a seguir lhe fez uma porção de perguntas, falando muito depressa,
parecendo às vezes se atrapalhar e deixando as frases sem fim. Toda essa pressa
era como se quisesse avisá-lo de uma determinada coisa. Ao mesmo tempo se
mostrava extraordinariamente nervosa e, apesar de o olhar com certo ar
zombeteiro e quase de provocação, entremostrava sem querer algum receio.
Viera apenas com um vestido matinal, muito simples, usado, e a todo instante
enrubescia e olhava em torno. Sentara-se na extremidade do banco, estando
ainda admirada do príncipe haver concordado que talvez Ippolít quisesse se
matar para que ela, depois, lesse a sua confissão. E, como a esclarecer seu
pensamento, o príncipe acrescentou:
- Naturalmente o desejo dele era que nós o gabássemos... bem como vós...
- Que
o gabássemos?
- Isto é... como hei de dizer?... É difícil explicar. Decerto queria ele que
desfilássemos diante dele ou que fazendo um círculo insistíssemos em declarar
que gostávamos muito dele e que lhe rendíamos grande apreço; cuidava decerto
e talvez mesmo ansiava por que todos rogassem que não fizesse uma tal coisa,
que permanecesse vivo. Quem nos diz até que ele não esperasse tal
atitude mais de vós do que de nós outros, já que chegou a mencionar vosso
nome naquela ocasião? Podia muito bem acontecer que vos tivesse no espírito,
inconscientemente.
- Isso agora é que não compreendo. Como podia ele ter isso em mente.
inconscientemente? Ah! Já compreendi! Vou exemplificar. Quando eu tinha
apenas treze anos me veio mais de trinta vezes a fantasia de tomar um veneno e
deixar uma longa carta a meus pais! Enlevava-me imaginar como haveria de
ficar no caixão; como todos viriam em prantos se jogar sobre mim arrependidos
de haver judiado de mim!... Por que é que está rindo de novo? - acrescentou
logo, franzindo a testa. - Não teve nunca fantasias, projetos, sonhos
extravagantes? Nunca imaginou que era marechal-de-campo e que derrotou por
exemplo... Napoleão?
- Quantas vezes, palavra de honra! Pensamentos dessa natureza me acodem
sempre que sonho - respondeu, rindo. - Basta-me pegar no sono e pronto... Mas
não é Napoleão que venço e sim os austríacos. Não estou disposta a brincadeiras,
Liév Nikoláievitch. Irei eu mesma procurar Ippolít. Pode desde já preveni-lo.
Tive uma péssima impressão do seu comentário. Não deve nunca interpretar as
coisas parcialmente e tampouco julgar a alma de um homem, como fez a
propósito de Ippolít. A gente sempre, em lugar de só querer ver a verdade exata
com intuito de julgar direito, acaba mais é cometendo injustiças por falta de
ternura e caridade.
O príncipe redarguiu:
- Mas se há aqui algum engano ou injustiça é da vossa parte para comigo. Pois
então há algum mal em que ele pensasse desta maneira? Pois a tendência geral
não é pensar desta forma? Além disso talvez ele nem tivesse absolutamente tal
pensamento, apenas fosse um desejo vago... Decerto ansiava desde muito se
aproximar dos homens, ganhar-lhes o respeito, merecer-lhes a estima. Sabeis
muito bem que tais sentimentos são bons. Mas não deu certo. Alguma coisa
interveio e atrapalhou. Talvez a doença, ou qualquer outra coisa, quem sabe? Pois
não sucede tantas vezes tudo correr esplendidamente com uma pessoa e
pessimamente com outra?...
- Está porventura, Liév Nikoláievitch, se estribando
em experiência própria?
- Quem sabe? Quem sabe? Pode muito bem ser - respondeu o príncipe sem
perceber sarcasmo na pergunta.
- Seja como for, tudo isso era suficiente para que eu, por exemplo, no seu
lugar, não dormisse. Isso prova só que onde quer que se encoste pega logo no
sono, não é? Acha bonito uma coisa dessas?
- Mas.., se passei a noite toda em
claro... E depois ainda por cima levei horas a caminhar! Fui até perto do coreto.
- Qual coreto? O da música?!
- Lá onde a banda esteve tocando, ontem. A seguir vim para aqui. Sentei-me,
estive a pensar que não acabava mais.., acabei dormindo.
- Ah! Então foi assim?
Bem, então o caso é diferente. Mas para que foi ao coreto?
- Não sei. À toa.
- Muito bem, muito bem! Isso fica para depois. Acabou mais foi interrompendo o
fio da minha conversa. E que tenho eu com isso, se foi até ao coreto? Que mulher
era essa com a qual esteve sonhando?
- Era... a que vistes aquela noite.
- Ah! Sim, sim! Já compreendi muito bem. Não lhe sai da cabeça!... E sonhou o
que com ela? Que é que ela estava fazendo? Não pense que me interessa saber...- disse mais alto e com pronúncia diferente, amuada - Não me interrompa!...
Parou de falar por um momento, como para tomar alento ou dissipar o amuo - Passemos agora ao que interessa. Devo dizer-lhe por que foi que lhe pedi que
viesse se encontrar comigo aqui. Desejo propor-lhe que sejamos bons amigos.
Por que arregala os olhos dessa maneira? - perguntou com timbre quase colérico.
Naturalmente o príncipe se pusera a contemplá-la muito atento, vindo a perceber
que ela, ditas aquelas palavras, enrubescera logo. Em circunstâncias análogas,
ela sempre quanto mais enrubescia mais zangada parecia ficar consigo mesma,
e isso estava nitidamente visível em seus olhos lampejantes. Então, via de regra,
transferia a raiva, irritando-se com a pessoa causadora de tal situação,
merecesse esta ou não censura, pondo-se logo a descompô-la. Mas como
percebia quanto era arrebatada e irritadiça, tendo demasiada consciência do seu
temperamento, adotara como regra ser esquiva a conversas e intimidades, sendo
mais calada do que as irmãs, às vezes mesmo circunspecta demais. Quando, e
mais principalmente em casos súbitos e delicados, era obrigada positivamente a
falar, iniciava a conversa com acentuada altivez e com
uma expressão quase de desafio. E sempre sentia de antemão quando começava
a ficar vermelha.
- Talvez não esteja disposto a aceitar esta minha proposta - disse com ar
sobranceiro.
- Como não? Quero, e muito. Apenas a acho desnecessária... quero dizer... - quis
o príncipe explicar.
- Pensou então o quê? Supôs que lhe pedi que viesse se encontrar comigo aqui
para quê? Seja franco! Ou estará me supondo uma espinoteada como pensam
todos lá de casa?
- Não sabia que em casa vos consideravam uma espinoteada. Eu não vos
considero.
- Não me considera? Muito hábil da sua parte. Maravilhosamente bem
respondido.
- Acho até que deveis dar mostra muito constantemente de grande sensatez - prosseguiu o príncipe – Ainda agora dissestes uma coisa admirável. Quando
faláveis a respeito de Ippolít: “A gente sempre, em lugar de só querer ver a
verdade exata com o intuito de julgar direito, acaba mais é cometendo injustiças
por falta de ternura e caridade”. Não me esquecerei disso, que me há de prestar
muitos serviços.
Agláia ficou logo rubra. com o prazer que sentiu. Tais transições de sentimentos
se operavam nela quase sem mostras de artifício, alternando-se rapidamente.
Também Míchkin ficou satisfeito e sorriu, com notório prazer, esquadrinhando-a.
- Ouça - começou ela -, esperei muito tempo para lhe dizer uma porção de
coisas. Tive vontade desde que me escreveu aquela carta; e até mesmo antes.
Aliás, ontem já ouviu metade delas. Considero-o o mais honesto e sincero dos
homens, mais honesto e mais sincero do que qualquer outro. E se andam dizendo
por aí que o seu juízo... isto é, que às vezes fica afetado do juízo, são injustos. Já
me certifiquei disso e já tive brigas com os outros, muito embora veja que é
mesmo afetado mentalmente... (não vai, naturalmente, se zangar comigo; estou
falando de um ponto de vista muito alto). O espírito, que conta, esse é melhor em
você do que nos demais. É alguma coisa com o que eles, de fato, nunca
sonharam. Sim, pois há duas espécies de espírito, o principal, que importa, e o
secundário, que tem valor muito relativo. Tenho razão. É isso mesmo. não é?
- Talvez seja - pronunciou o príncipe muito baixo.
O seu coração palpitava e
latejava violentamente.
- Eu tinha certeza de que você entenderia - continuou ela de modo
expressivo - O Príncipe Chtch... e Evguénii Pávlovitch, por exemplo, não entendem que haja
estas duas espécies de espírito; nem Aleksándra, tampouco; mas, calcule só,
mamãe entende!
- Vós vos pareceis muito com Lizavéta Prokófievna.
- Acha? Realmente?
perguntou Agláia. com surpresa.
- Deveras.
- Muito obrigada - disse Agláia depois de um momento de reflexão. - Fico muito
contente de parecer com mamãe. Gosta então muito dela? - acrescentou sem se
dar conta da ingenuidade da sua pergunta.
- Muitíssimo. E me alegra sobremodo
que tenhais reparado nisso imediatamente, por vós mesma.
- E fico mais contente de ouvir isso porque já reparei que muita gente às vezes ri
dela. Mas deixe que lhe diga o principal. Andei refletindo por muito tempo e
afinal o descobri. Não quero que em casa se riam de mim; não suporto que me
tenham na conta de uma estouvada; não quero que me enfezem com motejos...
Percebi instantaneamente a intenção e me recusei a ficar noiva de Evguénii
Pávlovitch, porque estou farta de assistir a essa procura contínua de noivos para
mim! O que eu quero... o que eu quero... Ora, muito bem, o que eu quero é fugir
de casa, e o escolhi para me ajudar.
- Fugir de casa?! - exclamou o príncipe.
- Sim, sim, fugir, fugir! - repetiu ela, mudando de cor, inflamando-se logo com
extraordinária exasperação - Não os posso suportar, já não os tolero mais! Não cessam de me enraivecer.
Não quero corar diante deles, na frente do Príncipe Chtch... de Evguénii
Pávlovitch, ou de qualquer outro! E foi por isso que o escolhi. A você direi tudo,
tudo, mesmo a coisa mais importante, sempre que quiser, e sei que você, por seu
lado, não me esconderá nada. Quero poder falar livremente pelo menos a uma
pessoa, a respeito de tudo quanto eu vier a pensar. Desandaram a dizer, sem mais
aquela, que eu o estava esperando e que o amava. Isso começou, antes da sua
volta, embora eu não lhes mostrasse a carta. Com a sua vinda para aqui tudo
recrudesceu. Quero ser destemida e não ter receio de coisa alguma. Estou farta
de bailes. Quero fazer-me valer, ser útil. Desde muito que anseio viajar, sair
disto. Há vinte anos que vivo engarrafada em casa. Só pensam em uma coisa:
casar-me. Desde os quatorze anos que venho pensando em fugir desta vida,
embora fosse uma tola. Agora planejei tudo e estive
aguardando a sua volta para que me informe bastante a respeito do estrangeiro.
Nunca vi uma catedral gótica. Quero ir a Roma. Quero visitar todas as
sociedades cultas. Quero estudar em Paris. Venho me preparando e estudando
muito; no ano passado li muitos livros. Li todos os livros proibidos. Adelaída e
Aleksándra leem os livros que muito bem querem. Mas a mim não deixam e me
vigiam. Não pretendo indispor-me com as minhas irmãs, mas já fiz ver a
mamãe e a papai que desejo operar uma transformação completa na minha
posição social. Quero dedicar-me ao ensino das crianças e pensei em para isso
recorrer a você porque nos declarou naquele dia quanto gostava da infância. Não
nos poderíamos ambos dedicar a isso, não digo já. imediatamente, mas em um
futuro próximo? Poderíamos vir a ser muito úteis. Não quero me limitar a ser
filha de um general. Diga-me uma coisa: você estudou muito?
- Oh! Nem por
isso!
- É pena, porque eu tinha pensado em... Como é que fui pensar nisso!... Não
importa, de qualquer maneira você será o meu guia. Já o escolhi.
- Isso é
absurdo, Agláia Ivánovna.
- Quero fugir de casa, pronto! - exclamou, e de novo os seus olhos cintilaram - E
se você não concordar, então me caso com Gavríl Ardaliónovitch. Estou farta de
em casa ser considerada como uma criatura horrível e de me acusarem sabe
Deus de quê!
- Perdestes o critério? - admoestou-a o príncipe, quase saltando do banco - Acusada de quê? Por quem?
- Por todo o mundo. Mamãe, papai, as manas, o Príncipe Chtch... e até esse
confiado Kólia. E se não falam diretamente, pensam! Já lhes disse tudo isso na
cara; a mamãe e a papai também. Mamãe depois ficou doente um dia inteiro.
No dia seguinte Aleksándra e papai vieram me aconselhar: que eu nem sabia
quanta asneira dissera; as palavras que proferira. Retruquei-lhes logo que sabia
sim, muito bem, que conhecia o sentido de todas as palavras, todas! Que já não
sou uma simples meninota; que no ano atrasado li até duas novelas de Paul de
Kock, para ficar sabendo... coisas! Mamãe quando ouviu isto quase caiu
desacordada.
Uma estranha ideia ocorreu ao príncipe que, olhando para Agláia muito firme,
sorriu.
continua página 389...
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O Idiota: Terceira Parte (8a) - Ria, mas estava escandalizada
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