segunda-feira, 21 de abril de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Quinto - Para Caçada Tenebrosa Matilha Silenciosa / VI - Princípio de um enigma

Victor Hugo - Os Miseráveis

Segunda Parte - Cosette

Livro Quinto — Para Caçada Tenebrosa Matilha Silenciosa

VI - Princípio de um enigma
     
      Achava-se Jean Valjean numa espécie de jardim bastante vasto, mas de aspecto singular, um desses jardins melancólicos que parecem servir só para serem vistos de inverno ou de noite. Era de forma oblonga, com uma rua de grandes choupos no fundo, a cada canto uma mata bastante alta e no meio um espaço sem sombra, em que se distinguia uma grande árvore isolada, em seguida algumas árvores frutíferas torcidas e eriçadas como grossos pés de tojo, canteiros semeados de legumes, um meloal, cujas campainhas brilhavam ao clarão da Lua, e uma pia velha. Aqui e ali viam-se alguns bancos de pedra, que pareciam negros com o musgo que os cobria. As ruas eram orladas por arbustozinhos escuros e muito direitos. Metade do jardim estava coberto de ervas; a outra metade, de uma camada verde de musgo.
     Ao lado de si tinha Jean Valjean o casebre de cujo telhado se servira para descer, um monte de lenha, e por trás deles, mesmo encostada à parede, uma estátua de pedra, cujo rosto mutilado era apenas uma informe máscara aparecendo vagamente por entre a escuridão.
     O casebre era uma espécie de pardieiro em que se distinguiam alguns quartos desmantelados, um dos quais, todo em ruínas, parecia servir de alpendre.
     Para este jardim tinha a casa grande da rua do Muro Direito, que fazia esquina para a viela do Picpus, dois lados em esquadria. Estes lados de dentro ainda eram mais tétricos do que o de fora. Todas as janelas tinham grades, através das quais se não entrevia uma só luz. Nos andares superiores havia cestos como nas prisões. Um dos lados projetava sobre o outro a sua sombra, que dava sobre o jardim como um imenso lençol preto.
     Não se descobria outra casa. O fundo do jardim perdia-se por entre a escuridão e a cerração da neblina. Distinguiam-se, porém, confusamente, alguns muros, que se cruzavam uns pelos outros, como se para lá deles houvesse mais quintais, e os telhados baixos da rua de Polonceau.
     Não se podia imaginar coisa mais erma e solitária do que aquele jardim. Não se via vivalma, o que era muito simples em razão do adiantado da hora, mas é que realmente parecia que aquele sí o não servia para ninguém andar por ele, mesmo à luz do meio dia.
     O primeiro cuidado de Jean Valjean foi procurar os sapatos e calçá-los e em seguida meter-se com Cosette para o alpendre. Quem se evade nunca se julga bem escondido. A criança, que não tinha ainda varrido da lembrança a Thenardier, participava do seu instinto de se ocultar o mais que lhe era possível.
      Cosette tremia e chegava-se para ele. Para lá do muro ouvia-se o sussurro tumultuoso da patrulha a dar busca ao beco e à rua, as coronhadas de armas nas pedras, os apitos que Javert dava para chamar os espias que tinha postado nas imediações do beco e as suas imprecações de envolta com algumas palavras que se não percebiam.
     Ao cabo de um quarto de hora pareceu que todo aquele sussurro tempestuoso principiava a afastar-se. Jean Valjean, que não respirava, pusera também a mão na boca de Cosette.
     O ermo porém em que ele se achava estava tão estranhamente sossegado, que todo aquele assustador ruído, tão furioso e tão próximo, nem por sombras lhe podia incutir medo. Parecia que aquelas paredes eram construídas com as pedras surdas de que fala a Escritura.
     De súbito, no meio deste profundo sossego, elevou-se um novo rumor, um rumor celeste, divino, inefável, que tinha tanto de arrebatador como o outro de horrível. Era um hino saindo das trevas, um arroubo de oração e harmonia na silenciosa e medonha escuridão da noite; vozes de mulheres, mas vozes simultaneamente compostas do acento puro das virgens e do tom ingénuo das crianças, dessas vozes que não são da terra, dessas vozes parecidas com as que os recém-nascidos ouvem ainda e o moribundos ouvem já. Este canto vinha do sombrio edifício que dominava o jardim.
     No momento em que ao longe se perdiam os ecos da algazarra dos demónios, aproximava-se outro rumor, que dir-se-ia as melodias de um coro de anjos no silêncio da noite.
      Jean Valjean e Cosette caíram de joelhos.
     Eles não sabiam o que aquilo era, nem onde estavam, mas ambos conheciam, o homem e a criança, o penitente e o inocente, que se deviam prostrar de joelhos.
      O que aquelas vozes tinham de extraordinário era que apesar de se ouvirem, nem por isso o edifício parecia menos deserto. Formavam como um cântico sobrenatural numa casa desabitada.
     Enquanto as vozes cantavam, Jean Valjean não pensava em coisa alguma. A noite para ele desaparecera, não via senão o céu do mais belo azul. Parecia-lhe sentir as asas que todos temos dentro de nós mesmos.
     Por fim, o cântico extinguiu-se.
     Tinha talvez durado muito tempo. Jean Valjean não teria podido dizê-lo. As horas de êxtase nunca são mais do que um minuto.
     Tudo ficara novamente silencioso. Não havia o mínimo ruído nem na rua nem no jardim. Tudo se desvanecera, tanto o que o ameaçava, como o que o tranquilizava. Não se ouvia senão vento agitando no alto do muro algumas ervas secas, que produziam um murmúrio suavemente lúgubre.

continua na página 352...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Quinto - VI - Princípio de um enigma
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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