baitasar
na rua há um carro – ou vários, muitos com certeza –, dentro do carro há uma pessoa, dentro desta pessoa alguém estúpido dirigindo ofegante, tentando acelerar a realidade empurra o pé contra o acelerador, e lá vamos nós, muito velozes pelas ruas – está difícil encontrar pessoas sensatas e cautelosas dirigindo carros cada vez mais velozes potentes apressados másculos enérgicos, e quando encontramos esses carros sensatos com seus motoristas, ficamos irritados, impacientes, Puta merda! Esse “meia-roda”! Vai, cara! Não tem ninguém na frente!
a estupidez da velocidade é o que esperamos dessas máquinas poderosas glamorosas – e sem ruídos – feitas para correr, junte-se a isso a deseducação da impunidade destes tempos, onde cada um faz o que quer no trânsito – e antes que se diga que a culpa são dos carros, não esqueçamos: somos nós que os projetamos e dirigimos –, sufocando a vida que ainda nos resta, a pressa de chegar antes mesmo da partida nos faz personagens frágeis mergulhados em devaneios descontrolados, perdemos o desejo de sussurrar ao ouvido – quem amanhasse para um dia paciente?
no carro um homem, dentro do homem um menino fugindo do tempo, perdeu a esperança, ficou cansado da sedução com poesia descomprimindo o peito, acredita que a velocidade faz o tempo parar, pelo menos, passar despercebido, a pressa de chegar antes, ganhar tempo – a ilusão que ganhamos do tempo quando corremos contra o tempo –, esses atropelos ensinam sua excitação, sua fantasia obscena de não chegar depois, os nervos na flor da pele – e jura que controlados –, o homem submetido naquele menino que não sabe quando parar, não lembra quando tudo começou
no quarto há uma cama, sobre a cama um homem e dentro deste homem um menino com medo desiludido cansado, sem esperança num outro mundo que ajuda a desrespeitar ofegante suado, encolhido na escuridão procura o ar que não pode ver, até que adormece engolido pela própria flacidez, reaparece viril másculo enérgico dirigindo veloz, escapando por escapar, os braços retesados, os nervos lá, flor da pele, cobiçando a próxima ultrapassagem, o próximo meia-roda, o próximo insulto, grita ofensas em seus pesadelos
não pensa na morte, não espera que o tempo passe, dirige contra o tempo, sente que não sai nunca do lugar, a morte deve ser isso: o nada que nunca sai do lugar, sempre no começo, esperando o que não virá, a morte acaba com a dialética com a esperança com a mudança, para sempre acomodados nas prateleiras, sem uso, nenhuma utilidade mais, o carro parado, o motor desligado, a televisão adormecida no quarto vazio do esquecimento e da indecisão, uma ilha num mar de rotina e pressa apodrecendo
até que a noite se infiltra entre as paredes silenciosas, uma noite quase romântica por fora, por dentro é tudo diferente, um homem comum fora do carro, sem sua dose de confiança como mais um motorista no trânsito frenético das ruas, empurrando a velocidade com mais velocidade esse tempo que não passa
no quarto continua sua coreografia cotidiana, se debate entre a correria urbana e suas próprias incertezas, a respiração irregular, quase ofegante, não lembra os sonhos, tem certeza que não sonha, vive uma sinfonia desorganizada, perdido em notas dissonantes
amanhece, segura o volante com força descontrolada potente apressada máscula energética, uma opressão estúpida naquele frágil abrigo de metal, como se cada segundo perdido fosse um crime a ser pago com a adrenalina e o ruído estrondoso do motor silencioso, já desenhou o mapa das ultrapassagens
o desejo vai e vem, se apega à ilusão do controle, como se pudesse guiar à vontade pelo asfalto da própria vida, no retrovisor vê suas inseguranças, suas escolhas e frustrações, os sonhos que ficaram em algum lugar entre a primeira e a última marcha, não percebe que a potência do motor não afasta a estupidez
um ciclista passa ao lado, ele solta uma buzina ensurdecedora, o ciclista ergue uma das mãos e exibe o dedo do meio, aquele dedo desencadeia uma tempestade, desvia da sua direção e corta a frente do ciclista que cai
segue em frente, nenhuma reflexão, a rotina segue o seu lugar, pisa no acelerador mais uma vez, sua jornada furiosa precisa seguir em frente, mais um homem ao volante, dentro dele um menino alheio ao mundo ao seu redor, preso em uma cortina infinita contra o próprio destino, ressoando em cada curva e cada buzina, até que um dia, quem sabe, descubra que pode parar e apenas respirar na quietude de si mesmo, livre do acelerador, arrumando tempo para tudo, encarando com coragem o labirinto das escolhas e não-escolhas da vida passando – é inevitável
quem sabe, um leve toque no acelerador – ou no freio – dê início a uma estranha dança entre a vontade de avançar e o medo de errar o caminho, avançando em um momento quase mágico, sentindo uma onda de liberdade tomando conta desse menino, a pressa deixada para trás, o estúpido ao volante se tornando um viajante da vida, o homem desfrutando o caminho, a cada curva percebendo a jornada sem pressa, sem a ansiedade do destino, aprendendo que dirigir pode ser uma forma de poesia
não sei, não
acredito em poesia, mas dentro do carro tem alguém estúpido, quieto e silencioso, muitas vezes, e outras tantas vezes, mais um gritão deseducado motorista, esse banco é o seu palco de um espetáculo ridículo, a pressa o consome, o coração acelera, e na mente, uma tempestade de urgências
para no semáforo, parece estar encarcerado, olha fixamente, como se aquela luz vermelha pudesse mudar mais rápido pela força da sua vontade, o cérebro parece um rádio mal sintonizado, cada segundo que passa parado faz sua frustração aumentar, mais e mais ultrapassagens serão inevitáveis e urgentes
a paciência cada vez mais provoca bocejos, carros bufando xingando ameaçando, vidros embaçados, respiração ofegante, como se o semáforo fosse um ladrão à solta, pronto para lhes roubar minutos preciosos, carros não têm tempo para refletir, fazem curvas apressadas, freadas bruscas num jogo de obstáculos a serem superados
dentro do carro alguém encurralado tentando escapar dos próprios pensamentos, imobilizado na pressa da velocidade, carregando a sensação que algo importante escapa entre deus dedos, a vida escoando ao seu redor, Essa maldita luz vermelha, resmunga impaciente pela luz verde, não consegue aproveitar o caminho – é sempre o mesmo caminho decorado –, quer apenas chegar, mas os carros à sua frente não se dissipam, não viram fumaça, o caminho é longo e em parte conhecido, de alguma maneira, essa é uma das lutas de emboscada modernas: alguém encurralado dentro de um carro belicoso e a necessidade estúpida de chegar antes, guerreando corpo a corpo por sua iniciativa numa irresistível atração, a harmonia da estupidez num cortejo insensível, pode-se ouvir o vibrar íntimo dos seus carros
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