A Montanha Mágica
Capítulo V
continuando...
Sim; durante a ronda que o Dr. Krokowski fazia sozinho à tarde, já não contornava o
quarto de Hans Castorp. O jovem figurava agora no balanço; deixara de ser intervalo e hiato;
fazia parte dos pacientes; era preciso interrogá-lo, em vez de negligenciá-lo, como lhe acontecera
durante tanto tempo, para o seu descontentamento ligeiro e secreto, mas quotidiano e sensível.
Fora na segunda-feira que o Dr. Krokowski aparecera pela primeira vez no quarto do nosso
herói. Usamos o termo “aparecer” como adequado, dada a impressão estranha e mesmo um
tanto horrível que Hans Castorp não pôde evitar naquela ocasião. Abandonara-se ele a um
cochilo, ou meio cochilo, quando, num sobressalto, deu pela presença do assistente, que se
achava no quarto sem ter entrado pela porta, e se aproximava dele, vindo de fora. Pois o médico
tomara o caminho, não pelo corredor, mas sim pela sacada, entrando pela porta aberta, de
maneira que dava a ideia de ter chegado pelos ares. Em todo caso, surgira de repente ao pé da
cama de Hans Castorp, pálido, vestido de preto, espadaúdo e atarracado, o apóstrofo da hora, e
por entre a barba bipartida haviam-se exibido, num sorriso enérgico, os dentes amarelados.
– O senhor parece surpreendido em me ver aqui, Sr. Castorp – dissera o Dr. Krokowski
com uma brandura de barítono, arrastando as palavras e falando, inegavelmente, de modo um
tanto afetado, com um erre exótico, palatal, no qual não carregava, mas que emitia com um
simples golpe de língua logo atrás dos incisivos superiores. – Limito-me a cumprir um dever
agradável, verificando se tudo vai bem por aqui. Suas relações conosco entraram numa nova fase.
Da noite para o dia, o visitante transformou-se num camarada. – A palavra “camarada” causara
em Hans Castorp uma leve inquietação. – Quem teria pensado... – gracejou o Dr. Krokowski
jovialmente – quem teria pensado nisso, da primeira vez que tive a honra de saudá-lo e o senhor
corrigiu minha opinião errônea – era, então, errônea –, dizendo que gozava a mais perfeita saúde!
Acho que, naquela ocasião, manifestei qualquer coisa parecida com uma dúvida, mas asseguro-lhe
que não quis aludir a uma coisa dessas. Não desejo fazer-me mais clarividente do que sou. Não
tinha em mente nenhum lugar úmido; falava num sentido diferente, mais geral, mais filosófico.
Expressei as minhas dúvidas quanto à possibilidade de serem compatíveis os conceitos “homem”
e “saúde perfeita”. E ainda hoje, mesmo após o resultado do seu exame, não posso, segundo as
minhas opiniões, e discordando do meu prezado chefe, conceder a esse lugar úmido aí – e tocou
com a ponta do dedo levemente o ombro de Hans Castorp – o primeiro plano do nosso
interesse. Para mim, ele não passa de um fenômeno secundário... O que é orgânico é sempre
secundário...
Hans Castorp estremecera.
– ...e por isso é a sua gripe, aos meus olhos, um fenômeno de terceira ordem –
acrescentou o Dr. Krokowski com muita displicência. – Como vai ela? O descanso na cama terá,
certamente, um efeito rápido e benéfico. Quais são as suas temperaturas de hoje? – E dali em
diante, a visita do Dr. Krokowski assumira o caráter de uma simples e inofensiva formalidade,
caráter que guardaram todas as demais visitas, nos dias e nas semanas que a seguiram. O Dr.
Krokowski chegava faltando quinze para as quatro ou um pouquinho mais cedo, entrava pela
sacada, cumprimentava à sua maneira enérgica e jovial o paciente acamado, fazia as mais
rudimentares perguntas profissionais, entabulava, às vezes, uma breve conversa de natureza mais
pessoal, largava algumas pilhérias cheias de camaradagem – e embora tudo isso não deixasse de
encerrar uma certa dose de algo problemático, terminamos por nos acostumar, quando se
mantém nos limites convenientes. Assim, Hans Castorp dentro em breve não encontrava mais
nada a objetar às aparições periódicas do Dr. Krokowski, uma vez que faziam parte do dia
normal e apostrofavam a hora do grande repouso.
Eram, pois, quatro horas, quando o assistente se retirava pela sacada; quatro horas, isto é,
plena tarde. De súbito, achava-se Hans Castorp em plena tarde, que, por sua vez, não se
demorava em avizinhar-se da quase noite: quando acabavam de tomar o chá, na sala de refeições
e no quarto 34, já eram perto de cinco horas, e até que Joachim voltasse do seu terceiro passeio
obrigatório, e fosse novamente ter com o primo, já seria tão próximo das seis, que, numa conta
redonda, o repouso até o jantar se limitaria, mais uma vez, a uma hora apenas, de forma que o
tempo constituía um adversário facílimo de vencer, para quem tivesse a cabeça repleta de
pensamento e dispusesse, além disso, de todo um Orbis pictus na mesinha-de-cabeceira.
Joachim despedia-se para ir comer. Traziam o jantar. O vale, havia muito, enchera-se de
sombras, e enquanto Hans Castorp comia, espalhava-se a olhos vistos a escuridão pelo quarto
branco. Terminada a refeição, permanecia ele recostado no travesseiro, diante da mesinha de
conto de fadas, então vazia, e contemplava o crepúsculo que se acentuava rapidamente, o
crepúsculo desse dia que dificilmente se deixava distinguir do da véspera e do de oito dias atrás.
Já era noite, e mal passara a manhã. O dia subdividido, artificialmente abreviado, desagregara-se,
desvanecera-se à vista dele, conforme verificava, cheio de agradável surpresa, ou talvez um tanto
pensativo; pois ainda não se achava na idade em que a gente se horroriza ante essa descoberta.
Para ele era apenas como se nunca tivesse deixado de contemplar esse mesmo crepúsculo.
Um dia – podia ser o décimo ou o décimo segundo, desde que Hans Castorp se deitara na
cama –, a essa hora, isto é, antes que Joachim tivesse voltado do jantar e da reunião, bateram à
porta do quarto. À ordem de “Entre!”, que Hans Castorp deu em voz curiosa, surgiu no limiar
Lodovico Settembrini, e de golpe se fez no quarto uma claridade deslumbrante. Pois o primeiro
movimento do visitante, ainda antes de fechar a porta, fora acender a luz do teto, que, refletida
pelo branco das paredes e dos móveis, envolvia imediatamente o aposento numa luminosidade
trêmula.
Dentre todos os pensionistas, o italiano era o único de quem Hans Castorp, nesses dias,
pedira especial e expressamente notícias a Joachim. Este não deixava de lhe relatar as pequenas
ocorrências e modificações da vida quotidiana do estabelecimento, cada vez que se sentava, por
dez minutos, na beira da cama, o que se dava dez vezes por dia. As perguntas que Hans Castorp
lhe fizera haviam sido de caráter geral e impessoal. A curiosidade de jovem solitário levava-o a
perguntar se, porventura, tinham chegado novos hóspedes, ou se partira uma das fisionomias
conhecidas; parecia satisfazê-lo a resposta de que só aquilo sucedera. Chegara um “novo”, um
moço de rosto esverdeado e cavo, que recebera um lugar à mesa da Srª. Iltis e da Srta. Levi,
aquela da tez de marfim, logo à direita da mesa dos primos. Ora, Hans Castorp esperaria
pacientemente a oportunidade para vê-lo. Então, não se fora ninguém? Joachim disse que não,
baixando os olhos. Mas teve que responder a essa pergunta repetidas vezes, de dois em dois dias,
pouco mais ou menos, e isso apesar de ter acabado por constatar, de uma vez por todas, e com
alguma impaciência na voz, que segundo estava informado ninguém tencionava partir, e que não
era costume ali partir assim sem mais nem menos.
No que tocava a Settembrini, porém, Hans Castorp solicitara informações especiais.
Desejara saber o que ele “dissera disso”. Disso o quê? “De eu estar deitado aqui e ser tratado
como doente, ora essa!” Com efeito, Settembrini manifestara uma opinião, ainda que
laconicamente. Logo no dia do desaparecimento de Hans Castorp, aproximara-se de Joachim, a
fim de saber onde se achava o visitante; parecera disposto a receber a notícia da sua partida. Ao
ouvir as explicações de Joachim, proferira apenas duas palavras italianas; dissera primeiro “Ecco!”
e depois “Poveretto!”, o que significava “Está vendo?” e “Coitadinho!” (não eram precisos maiores
conhecimentos de italiano do que possuíam os dois jovens para compreender o sentido dessas
exclamações). “Por que poveretto?”, perguntara Hans Castorp. “Afinal, ele também se acha
amarrado aqui em cima, com a sua literatura que consta de humanismo e de política, e pouca
coisa pode fazer em prol dos interesses da vida terrena. Que ele deixe de se compadecer de mim
do alto da sua importância. Voltarei à planície ainda antes dele.”
E agora achava-se o Sr. Settembrini no quarto bruscamente iluminado. Hans Castorp, que
se apoiara sobre um cotovelo e se virará em direção à porta, reconheceu-o, piscando os olhos, e
corou ao fazê-lo. Como sempre, Settembrini usava o seu espesso paletó com as grandes lapelas,
um colarinho meio puído, e as calças de tecido xadrez. Tendo apenas terminado a refeição, trazia,
conforme o seu hábito, um palito entre os dentes. As comissuras da boca, por baixo da bela
curva do bigode, entesaram-se, exibindo o conhecido sorriso fino, seco e crítico.
– Boa noite, engenheiro! O senhor me dá licença para visitá-lo? Sim? Nesse caso é
indispensável a luz... Desculpe a minha arbitrariedade! – disse apontando para a lâmpada do teto
com um gesto elegante da mãozinha. – O senhor estava meditando? Absolutamente não lhe
quero perturbar os pensamentos. Acho mesmo uma tendência para a reflexão plenamente
justificada no seu caso, e para conversar o senhor dispõe, afinal de contas, do seu primo. Bem vê
que tenho perfeita consciência da minha superfluidade. Contudo, estamos convivendo aqui num
espaço exíguo, e assim se cria uma simpatia de homem para homem, uma simpatia espiritual, uma
simpatia do coração... Já faz uma semana inteira que não o vejo. Realmente, eu já pensava que o
senhor tivesse partido, quando vi o seu lugar vazio, lá embaixo, no refeitório. O tenente me
informou melhor – ou devo dizer pior, sem pecar pela falta de cortesia... Numa palavra, como vai
o senhor? Que anda fazendo? Como se sente? Espero que não esteja muito abatido.
– Ah! Sr. Settembrini, é o senhor? É muito amável da sua parte. “No refeitório”? Ah, ah!
Já está gracejando outra vez. Sente-se, por favor. Absolutamente não me incomoda. Eu estava
deitado assim e me deixara levar pelos pensamentos – talvez seja até exagerado falar de
pensamentos. Era simples preguiça o que me impedia de acender a luz. Muito obrigado,
subjetivamente sinto-me mais ou menos bem. O repouso na cama curou-me quase
completamente aquele resfriado, mas, conforme todos me dizem, isso era apenas um fenômeno
secundário. A temperatura, por sua vez, ainda não é normal, às vezes 37,5, outras 37,7. Nesse
ponto, nada se modificou nos últimos dias.
– O senhor mede regularmente a temperatura?
– Sim, senhor. Seis vezes por dia, como todos aqui em cima. Ah, ah! O senhor me
desculpe, mas eu me rio ainda da denominação de “refeitório” que deu à nossa sala de refeições.
Assim a chamam nos conventos, não é? Com efeito, isto aqui tem qualquer coisa de um
convento. Nunca estive num convento, mas creio que deve ser bastante parecido. Também já sei
as “regras” de cor e observo-as minuciosamente...
– Como um frade piedoso. Pode-se dizer que o senhor terminou o noviciado e acaba de
professar. Meus mais solenes votos de felicidade! O senhor já fala de “nossa sala de refeições”!
Aliás, não quero ferir sua dignidade de homem, mas o senhor me lembra antes uma freirazinha
do que um monge, uma pequena noiva de Cristo, recém-tonsurada, inocentinha, com os grandes
olhos de uma vítima imolada. Em outros tempos já vi esse tipo de ovelhinhas, e nunca... nunca
sem me entregar a um certo sentimentalismo. Ah, sim, sim! O senhor seu primo me contou. O
senhor se fez examinar no último instante.
– Porque me sentia febril... Veja, Sr. Settembrini, com um catarro destes, eu teria
chamado o nosso médico, lá na planície. E aqui, onde a gente se acha por assim dizer na fonte,
onde há dois especialistas na casa... teria sido ridículo...
– Claro, claro! E o senhor já tinha tomado a temperatura antes que recebesse ordem de
fazê-lo. De resto já lhe haviam dado um conselho nesse sentido logo depois da sua chegada. Foi a
Mylendonk quem lhe impingiu o termômetro?
– Impingiu, como? Já que eu tinha necessidade de termômetro, comprei um.
– Compreendo. Um negócio absolutamente correto. E quantos meses lhe pespegou o
chefe?... Grande Deus, esta pergunta já lhe fiz uma vez! O senhor se lembra? Acabava de chegar.
Respondeu-me com tanta segurança...
– Claro que me lembro, Sr. Settembrini. Depois, passei por muitas experiências novas,
mas ainda me lembro como se fosse hoje. O senhor estava tão divertido... Nomeou o Dr.
Behrens juiz do inferno... Radamés... Não, espere! o nome era diferente...
– Radamanto? Pode ser que, de passagem, o tenha chamado assim. Não me lembro de
tudo o que em determinada ocasião brota da minha cabeça.
– Radamanto, isso mesmo! Minos e Radamanto! Aquela vez também nos falou em
Carducci...
– Perdão, meu caro amigo, deixemos este nome de lado. No momento, ele soa muito
estranho na sua boca.
– Como quiser – riu-se Hans Castorp. – Em todo caso foi por seu intermédio que aprendi
muita coisa a respeito dele. Sim, então eu não suspeitava ainda de nada, e respondi ao senhor que
tencionava passar três semanas aqui; não tinha nenhuma idéia do resto. A Kleefeld acabava de me
assobiar com o pneumotórax, e eu estava boquiaberto. E logo naquele primeiro dia já tinha a
impressão de estar com febre, pois o ar daqui é bom não somente contra a doença, mas também
para ela. Às vezes precipita a sua irrupção, e quem sabe se isso não é necessário para que se
realize a cura.
– Uma hipótese fascinante! Será que o Dr. Behrens também lhe falou daquela teuto-russa
que tivemos aqui durante cinco meses no ano passado... não, no ano retrasado? Não? É o que
deveria ter feito. Uma senhora simpática, de origem teuto-russa, casada, jovem mãe. Vinha do
leste, linfática, anêmica, e parece que havia também qualquer coisa mais grave. Bem, ela passa
aqui um mês e logo começa a lamentar-se de que se sente mal. Paciência, paciência! Decorre
outro mês, e ela continua afirmando que, longe de estar melhor, anda cada vez pior. Explicaram
lhe que unicamente o médico era capaz de julgar como o paciente anda; ela só podia dizer como
se sentia, e isso tinha pouca importância. E quanto ao seu pulmão, os doutores disseram estar
satisfeitos. Ora, ela se cala, prossegue com o tratamento, e perde peso, semana após semana. No
quarto mês desmaia durante os exames. “Não faz mal”, declara Behrens. “Estou muito contente
com o estado do pulmão.” Mas, no quinto mês, ela se sente incapaz de caminhar, e escreve uma
carta ao marido, lá longe no leste, e Behrens recebe uma carta dele, com as palavras “pessoal” e
“urgente” no envelope, numa letra enérgica. Eu mesmo vi. “Pois é”, diz o Behrens então, dando
de ombros, “parece que ela não suporta o nosso clima.” A mulher ficou fora de si. “O senhor
deveria ter-me dito isso antes”, gritou. “Sempre tive essa impressão. Eu me arruinei aqui!”
Esperemos que em companhia do marido, lá no leste, ela tenha recobrado as forças.
– Que maravilha! O senhor narra admiravelmente bem, Sr. Settembrini. Cada palavra é
mesmo plástica. Também ri muitas vezes a sós da história que nos contou sobre aquela mocinha
que tomou um banho no lago, e à qual tinham que dar a “irmã muda”. Sim, senhor, acontece
muita coisa neste mundo! A gente nunca para de aprender. Quanto ao meu próprio caso, não
existe ainda nenhuma certeza. O conselheiro diz que encontrou uma coisinha no meu pulmão.
Eu mesmo ouvi, quando me percutiu, os lugares antigos onde estive enfermo sem saber. E agora
parece que descobriu outro foco fresco, não sei onde... Acho, aliás, que a palavra “fresco” soa
meio esquisita com relação a essas coisas. Mas, por enquanto, só se trata de observações
acústicas, e não chegaremos a um diagnóstico seguro antes que eu volte a levantar-me e se
proceda à radioscopia e à radiografia. Então, sim, teremos um resultado definitivo.
– Acha mesmo? O senhor sabe que a chapa fotográfica apresenta, frequentemente,
manchas que são interpretadas como cavernas, embora sejam apenas sombras, e que em lugares
onde há alguma coisa às vezes não mostra mancha nenhuma? Madonna, a chapa fotográfica!
Esteve aqui um jovem numismata que tinha febre, e como tivesse febre, foram vistas,
nitidamente, umas cavernas na chapa fotográfica. Pretenderam até tê-las ouvido. Trataram-no
como se tivesse tísica, e no decorrer do tratamento, morreu. A autópsia demonstrou que seu
pulmão estava intacto, e que falecera não sei de quê.
– Ora veja, Sr. Settembrini, o senhor fala logo de autópsia. Espero que eu ainda não tenha
chegado a esse ponto.
- Meu caro engenheiro, o senhor é um pândego!
– E o senhor é muito crítico e muito cético, isto não se discute! Não acredita nem sequer
na ciência exata. E a sua própria chapa mostra manchas?
– Mostra, sim.
– E o senhor está realmente um pouco enfermo?
– Sim, infelizmente ando bastante enfermo – tornou o Sr. Settembrini, baixando a cabeça.
Fez-se uma pausa, durante a qual tossiu levemente. Hans Castorp, da sua posição de repouso,
contemplou o visitante reduzido ao silêncio. Era como se, com aquelas perguntas muito simples,
tivesse refutado e silenciado muita coisa, inclusive a República e o belo estilo. Da sua parte, não
fez nada para reavivar a conversa.
. Depois de algum tempo, o Sr. Settembrini ergueu-se de novo, sorrindo.
– Diga-me, engenheiro – perguntou –, como é que a sua família recebeu a notícia?
– Que notícia? A do adiamento do meu regresso? Ora, minha família, sabe?, minha
família, lá em casa, consta de três tios, um tio-avô e seus dois filhos, cujas relações comigo são,
antes, de primos. Outra família não tenho. Sou órfão de pai e mãe desde muito cedo. Como
receberam a notícia? Bem, ainda não sabem muita coisa, não sabem mais do que eu mesmo. Logo
no começo, quando tive de me meter na cama, escrevi-lhes uma carta, dizendo que estava
fortemente resfriado e não podia viajar. E ontem, como já tivesse passado um certo tempo,
escrevi outra vez, avisando que a minha gripe despertou a atenção do Dr. Behrens a respeito do
meu pulmão, e que ele insistia em que eu prolongasse a minha estadia até que se esclarecesse o
caso. Acho que eles se inteiraram de tudo isso com a mais completa calma.
– E o seu emprego? O senhor me falou de um campo de atividades práticas ao qual
tencionava dedicar-se em breve.
– Sim, como voluntário. Pedi que por enquanto me desculpassem lá nos estaleiros. O
senhor compreende que ninguém vai se desesperar por causa disso. Eles podem muito bem
arranjar-se sem um voluntário.
– Ótimo! Sob esse ponto de vista, tudo está em perfeita ordem. Fleuma em toda a linha!
Em geral são muito fleumáticos, lá no seu país, não é? Mas também enérgicos.
– Ah, sim, enérgicos também, muito enérgicos – confirmou Hans Castorp. Examinou, à
distância, a mentalidade da sua terra e verificou que o seu interlocutor a qualificara com acerto. –
Fleumáticos e enérgicos, isso mesmo.
– Bem! – continuou Settembrini. – No caso de o senhor permanecer aqui por mais
tempo, não nos faltará uma oportunidade para conhecer o senhor seu tio, quer dizer, o tio-avô.
Sem dúvida ele virá certificar-se do seu estado.
– Nem pense nisso! – exclamou Hans Castorp. – Nunca na vida! Nem dez cavalos
conseguiriam arrastá-lo até aqui em cima. Meu tio é de constituição muito apoplética e quase não
tem pescoço. Não, senhor! Ele precisa de uma pressão atmosférica razoável. Aqui se sentiria
ainda muito pior do que aquela sua senhora teuto-russa; teria toda espécie de chiliques.
– Isso me decepciona. Apoplético, foi o que disse o senhor? Que adiantam então a fleuma
e a energia?... Seu tio é rico, não é? O senhor é rico também? Todos são ricos na sua terra.
continua pág 128...
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Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Sopa eterna e clareza repentina (b)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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