sábado, 1 de dezembro de 2012

Sarau com café e chocolate


Ensaio 19
baitasar


Depois do banho da moça, seria a vez do Sèzar, como convidado do anfitrião, dono de tudo, por ali, o privilégio de não ser o último, e assim, não ficar com o dever de secar as umidades do banheiro. O anão não se importava com os desajustes na arrumação do seu casarão, mas o quarto dos banhos e descarregamentos na latrina merecia lugar de destaque na limpeza — Ali, disse, apontando para o banheiro, descarregamos as imundícias de dentro e fora do corpo, precisa de limpeza e aprimoramento todo santo dia.
Os dois estavam sentados no assoalho de madeira marcado pelo trabalho dos cupins. Esperavam que a mulher do anão terminasse os usos do quarto das limpezas — O amigo tem algum emprego?
—        Tinha... sou escritista...
—        E o que vem a ser isso?
—        Um pouco se é escritor, outro tanto se é jornalista. Não se vive só de um jeito, os bons salários de autoria são poucos... — o anão ouviu a resposta do Sèzar, mas não pareceu surpreendido, ele tinha certa aparência deformista
—        Eis um belo jeito pra ficar desempregado... mas charmoso.
—        É...
—        Como um escritista fica desempregado?
—        Quando esquece quem manda. — não parecia haver nada revoltoso dentro daquela voz, apenas a confirmação da regra, manda quem pode, obedece quem precisa
—        Voy a salir... — a banhista que encantava o desencanto
O anão que continuava sentado no assoalho de madeira, ao lado do Sèzar, levantou o braço direito e deu uma pequena pancada no ombro esquerdo do amigo — Vá, meu amigo, limpe as loucuras desta noite. — Sèzar continuava incomodado com os esquecimentos da noite anterior, e o anão não o ajudava com aquelas insistências de lamentações jocosas, beirando ao divertimento.
Ouviram a fechadura sendo mexida, ele levantou de vez. Cruzou com a moça na portaria, estava enrolada em uma toalha felpuda branca. Linda, a bem da verdade, seja lá o que isso signifique. O hálito perfumado e a sensação refrescante do banho lhe dava a imagem da resistência dos anjos sobre o mal. Nenhuma palavra. Todos, dos cupins aos espíritos mais distantes daquela casa, podiam sentir o constrangimento empinado do rapaz
—        O amigo pode me chamar de Fumaça... — Sèzar virou-se, a toalha tentando esconder a sua imprudência, e repetiu, como se estivesse tentando se esconder — Fumaça!
—        Isso mesmo, Fumaça.
Entrou e fechou a porta. Olhou para baixo e resmungou — Filho de puta, te controla... quer acabar comigo? — as histórias estão dentro e fora do sujeito, ele precisa decidir o que fazer com elas, separar o joio do trigo, comover o real e acolher as fantasias.
No quarto dos banhos encontrou os aromas da moça, O anão casou bem... esse perfume de mulher... Olhou à sua volta, havia alguma coisa de especial, além daquela brancura de limpeza, a pureza levada ao extremo, o limite entre o intocável e o intolerável, o bom senso e a doença, a normalidade e a loucura, mas não conseguia definir o que seria diferente, ele se parecia com um gato cego que enxerga e não vê.
A banheira já estava preparada com água morna e um cheiro que aguilhoava sua memória. Sempre foi movido ou imobilizado por cheiros. Tirou a cueca, as meias, jogou tudo no chão, uma sensação de gozo se adiantava, acariciou as bordas, experimentou com os dedos aquelas águas ardentes, espessas e transparentes, fechou os olhos e aproximou o rosto, sentia o aroma, mergulhou nas águas revoltas daquele poço. Primeiro, as pernas, uma depois da outra, até o fundo, imergiu todo. Nenhum pensamento, apenas estava mergulhado nas águas perfumadas daquele útero, um homem mimado se maturando.
Uma pequena batida na porta o fez enfiar uma das suas máscaras, a fechadura avisava que estava sendo mexida — Com licença, meu amigo...
—        O que foi? — procurou firmar mai a voz, mas ela saiu tremendo, quase rachando
—        Nada, nada... estamos lavando suas roupas... — essa preocupação toda estava deixando Sèzar cosntrangido — Não precisa, não há necessidade de incomodar sua mulher...
—        Minha mulher? — o anão deixou um sorriso folgado escapar, estava se divertindo com o Sèzar — Disse alguma bobagem?
—        Não, meu amigo, eu peço desculpas... não tive intenção de caçoar ninguém.
—        Fico constrangido da sua mulher lavar minhas roupas de intimidades.
—        Não somos casados nem namorados, nem abandados... a Maiami é uma prostituta. — caso fosse intenção do anão provocar surpresas, o seu mais recente amigo, recolhido das ruas, entorpecido pela diamba, estava pego de surpresa sobre o que calhava entre ele e aquela moça — Prostituta?
—        É...
—        Mas eu pensei...
—        Amigo, só faço namoração com prostitutas, sempre paguei pelo sexo e os serviços da casa. Acontece que essa é uma espécie rara, junta muitas utilidades e facilidades.
—        Isso é estranho...
—        Talvez, pra você, e a maioria das pessoas, mas é apenas uma questão de acertos e conveniências... — em meio aquele discurso de mais valia menos valia, o anão disse qualquer coisa sobre sua necessidade de usar o mijório, ao lado da pia e do vaso de assento, tudo recolocado no tamanho das crianças do jardim da infância. Enquanto o anão fazia xixi, os dois ficaram em silêncio. Um jeito de respeito. Sèzar aproveitou para mergulhar uma outra vez, e depois mais, e mais... — ... meu amigo, você deveria experimentar.
—        O quê? Ah... não, eu prefiro do jeito mais confuso.
—        Ok. Quando sair não precisa encher a banheira, deixe isso comigo... estou levando sua cueca e as meias. Não tenho nada que lhe sirva, o melhor é ficar enrolado na toalha.
Depois que o anão saiu, Sèzar deu por encerrado seu banho. A nudez não o deixava constrangido, mas preferia a penumbra dos lençóis, por lá, aconteciam alguns descontroles interessantes. Tirou o tampão do ralo da banheira e deixou a água descarregando os cheiros e fluidos da noite. Enrolou-se na toalha branca e saiu. O anão aguardava sentado no assoalho — A Maiami está na cozinha.
O anão entrou no quarto dos banhos.
O Sèzar foi até a cozinha — Hum, está cheiroso... café com chocolate e canela?
—        Sí.
—        Você gosta mais do café ou do chocolate?
—        Los dos...
—        Se eu governar o mundo, o chocolate vai custar um real.
—        Si yo gobernar el mundo, tendrá juguete para todos los niños.
—        Mas têm brinquedos para todas as crianças, é que muitas compram quase todos os brinquedos, a descortesia do egoísmo, e muitas outras, não podem comprar, ficam com as sobras e os remendos, mas recebem o afago da caridade.
—        No hay necesidad de comprar.
—        Maiami, se o seu jeito é melhor, as pessoas andariam só de bicicletas e patinete. — os dois sorriram
—        Habría comida para todos los niños. — enquanto os olhos a admiravam, escutava sua língua enrolada entre dois mundos, É uma mulher linda, diferente, ele pensava naqueles desejos simples, como abrir a torneira e beber um copo d’água, riscar um fósforo e acender o fogo, Comida não falta, minha ingênua prostituta, somos uma humanidade de fortes e fracos, os fortes submetem os fracos com a manipulação do medo e do desejo, ela ia e vinha na cozinha, os olhos do jovem orador não se desviavam dos quadris generosos, flutuando sobre os passos, empurrando os olhos do Sèzar para um lado e para outro, para cima e abaixo, bem baixinho, descontrolado, subindo e descendo — De onde você vem?
—        Muchos lugares.
—        O primeiro lugar, onde você nasceu...
—        Nací en la Montaña hombres del maíz... entiende...
—        Mas em qual País?
—        La Montaña es nuestro País, una montaña de mestizos invisible.
—        Por que você veio aqui, justo aqui?
—        Es demasiado complicado... maldición... brujas... estoy bromeando. Muertes... la muerte siempre nos hace caminar.La vida es simple en la Montaña: unirse a leña, aplastar cucarachas, escupir en las moscas, trilla de maíz, hornear tortillas, secar resignada na escuridão com o silêncio das lágrimas derramadas a exaustão. Sonhar que o vento leva as palavras quietas da sua dor e retorna das pedras, das águas, das copas das árvores, com algum murmúrio de alento.
—        Mas... por que escolheu ser prostituta? — pergunta feita e o arrependimento lhe deixava envergonhado. Com certeza uma pergunta repetida por toda a vida: Por que você é puta?
—        Parece que não temos muitas escolhas. — foi até a geladeira, abriu de um só golpe, inclinou-se procurando leite e açúcar — O Davi esconde o açúcar das formigas na geladeira.
—        Se você não se importa, prefiro uma cerveja.
—        Agora?
—        Sim.
—        Os homens se descontrolam com as bebidas e com as virilhas, isso é bom para os negócios.
Sèzar sempre foi bom com perguntas, fazer as perguntas certas e desguarnecer o entrevistado, encontrando as informações mais escondidas, as vontades mais afogadas — Por que você continua nisso, você é tão linda...
—        Y tú, ¿por qué sigues escribiendo mentiras en su periódico? Yo engano um de cada vez, usted engana muitos mais, a cada vez. O que é indigno no que eu faço? — o escritista tomava sua cerveja gelada, calculava, pelo número de leitores do jornal, quantas liam as hipóteses que no seu texto jornalístico manipulava como fatos, ou seja, enganava pra vender, ele se vendia
—        Mi alma y mi cuerpo duerma, ¿y usted?
Sèzar ergueu a garrafa nos lábios, tomou um longo gole — Preciso do prestígio do leitor, ele raramente vem sem uma intenção, eu dou aquilo que interessa aos que me procuram.
—        ¿Y yo soy una puta?

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