segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Sarau com cerveja preta e café preto


Ensaio 21
baitasar

Aquela história da nêga Laetitia e o seu Capitão deixou o coração do Sèzar apinhado daquela gente vivida, com desejo de pertencer àquela terra
—        Moço escritista... tem vez que não é preciso entender a história, apenas se deixar levar.
Sèzar não se apressou em contra-atacar com uma mordida no sanduba que tinha acabado de fazer: pão preto, queijo, alface, mortadela, tomate e pão preto. Antes, lubrificou o gosto da boca com um gole do café preto da Maiami, depois de morder e mastigar, sem maiores precipitações, outro gole do café. Fumaça olhava a satisfação do outro, com um escondido sorriso da resistência da memória. O seu povo conseguiu chegar até aqui, apesar do racismo fora das vistas, persistente e envergonhado, com feitio entorpecido e indolente, um racismo fingido de bom moço
—        As aparências enganam o meu amigo, tenha cuidado com as aparências.
—        Fumaça...
—        Me diga. — o anão continuava ali, em pé, no seu banco, firme, admirado com a fome do jovem escritista
—        Como pode um homem que contrata os favores de cama e afazeres domésticos, por medo de confusão, não ter medo de assombração...
O anão deu um pulo do banco para o chão da cozinha, abriu a máquina geladeira, enfiou a mão no frio e pegou uma cerveja preta — Devia experimentar...
—        O quê?
—        Cerveja preta com o café preto da Maiami. — o escritista ergueu a xícara da mesa e estendeu na direção do anão — Não é assim, a mistura não é por fora, é por dentro, cada bebida tem o seu gosto. — despejou a cerveja em um copo e ofereceu ao amigo — Tome um, depois o outro.
Outro pulo, o anão estava em pé em seu banco — O que achou?
O escritista não respondeu, apenas ficou ali, olhando o olhar, tentando enxergar os que não se deixaram pegar
—        O anão acha que a nêga Laetitia escolheu morrer livre, a viver acorrentada?
—        Quem vai saber... quem vai saber... o que você escolheria?
Depois veio um silêncio que parecia passear entre os dois, com as mãos dadas aos dois
—        Se o amigo escritista não tem medo de assombração, posso contar um causo que sucedeu comigo — fez pausa de ausência, para medir o assombramento do outro
—        Assunto de assombração não mete medo, é história que não se pode manter confiança, tanto pode existir como pode não ter existido. Não é o que você diz?
O anão teve certeza que o escritista não sabia onde se metia
—        Antes de contar o causo, quero lembrar ao jovem escritista que nunca estamos sozinhos, por isso, é bom ser cuidadoso com as palavras que sopra no vento, tanto podem rufar nos tambores um sabor de felicidade gingada, como podem apagar o cachimbo dentro da boca.
É história do tempo da avó morar no casarão, e eu, junto.
É história do tempo do rabanete preto ir à escola. Eu gostava da escola, na verdade, eu tinha muita simpatia e carinho com a professora da geografia, mas era na história que eu apreciava mais a contação da professora.
É história do tempo que eu cansei de esperar pela aparição de algum herói do meu povo, eles não estavam escritos nos livros da escola.
É história do tempo em que, pra não ser reprovado na escola, aprendi o nome de todos os heróis brancos, reis e presidentes. Quando chegava da escola, a avó me mostrava os heróis do nosso povo, ela nunca quis esquecer pra poder seguir em frente — Meu neto... qual parte o guri quê esquecer? — Nenhuma avó...
A avó contava de um outro tempo, o tempo em que o primeiro preto – que se tem notícia – embranqueceu o cabelo. Muito antes - do branco escravizar a África -, o cabelo dos pretos era preto, depois, quase em seu fim de deixar o coração desistir, a pele alisava e o cabelo ficava cinza, não tinha essa cor de branco na carapinha. Os velhos ficavam com o cabelo cinza e não tinham rugas. Era o tempo em que os velhos envelheciam da alegria e o cabelo virava cinza. Não tinham que batizar a criança que nascia, reconheciam os filhos com a choração da alegria, a linhagem do avô e da avó que renascia da cinza, nenhum registro escrito, apenas dançavam e cantavam a mistura dos nossos ancestrais.
Sangue e percurso.
O primeiro preto que embranqueceu o cabelo, foi embarcado do outro lado da imensidão das águas salgadas com o cabelo preto. Depois da travessia, desceu do negreiro com o cabelo branco, se disse: foi quando o preto envelheceu da tristeza.
Continuamos um povo de cantoria e alegria, mas espalhados no campo aberto, ermo, vastidão, deserto, lhanos, planície, savana, estepe, charneca, campanha, prado, banhados, morros, favelas, a nossa tristeza só aparece na cor branca do cabelo que devia ser cinza, nas rugas da pele que devia ser lisa, até o dia inaugural da liberdade foi de esquecimento. Um dia deste, um amigo me explicou que a memória não é neutra, escolhe o que quer lembrar pra seguir em frente. A África de hoje não é a África da avó da avó, a nêga Laetitia era filha de alguém, chegou aqui, filha de ninguém, num tempo de exportação dos escravos pra enchimento dos bolsos.
O Fumaça fez parada na contação, pediu mais um café e uma cerveja
—        Posso usar essas histórias... são encantadas...
—        Fique à vontade.
—        O amigo é generoso...  o anão agradeceu o café e a cerveja, tomou um pequeno gole das duas bebidas, antes de continuar
—        O meu povo é generoso.
Bem, voltemos ao que interessa e disse que ia contar. Naquele dia, dia da aparição, a tarde estava abafada e úmida, igualzinho hoje, um mormaço de fumaça. Fugi pro porão, usava um calção azul, arrumado pra pelada com os guris da rua – gosto do azul, mas não faço desfeita ao vermelho, tudo é apenas cor. Ficava deitado de costas, no chão gelado do porão – a senzala do Canela Preta.
Era quando me vinham uns sonhos com a professora da geografia, um calor insuportável, não chovia, não dava resistência aos pensamentos com a geografia, o abafado da caatinga, e eu, lá, deitado, a mão direita dentro do calção, molhada, suando, espremendo, esperando o futebol com a gurizada da rua. Era tudo treino, ilusão da castidade, lembrava os gritos do treinador da física — Quem não treina, não joga!
É a regra, mas o acaso continuava não ajudando — Fumaça! Vem aqui! — eu continuava o treino solitário dos cinco contra um, um jogo de ataque e defesa. Aquela voz triste estremecia meu corpo, vinha de longe, lá do lugar da morte
—        Fumaça! — não conseguia parar com a mão direita, as pernas da geografia estavam ali, bem na minha frente, negras, redondas, cheirosas, bastava erguer a outra mão e tocar no sonho. A mão direita ficava mais agitada, mais forte, mais apertada — Fumaça! — na terceira ou quarta vez, quase abri os olhos para pedir silêncio. Eu gostava das pernas da geografia, me faziam viajar por muitos lugares da África da avó. Fiz força de concentração e a imaginação não perdeu o feitio das pernas da professora, era uma questão de honra, tinha que terminar o serviço começado. Foram treinos fantásticos para os dedos, meu corpo estremeceu, ficou mais agitado, mais forte, mais apertado, quando a direita foi molhada, abri os olhos — Fumaça! — o porão tava no escuro.
Era a nêga Laetitia, sentada no muro do poço, nua até os pés acorrentados. Eu juro que vi. Parei com a mão direita, e a imaginação perdeu o feitio das pernas — Procura o meu Capitão... — a aparição que viandando no escuro.
Depois, me pareceu entrar num poço, uma perna depois a outra, um último olhar me olhando, um pedido que não podia falar.

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