quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

23.O Livro dos Abraços - A televisão/1 - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


22. O Livro dos Abraços



A televisão/1     



Era um pulgueiro dos subúrbios, o mais barato que havia em Santa Fé e em toda a República Argentina, um galpão mambembe que caía aos pedaços, mas Fernando Birri não perdia nenhum filme ou cerimônia que era celebrada na escuridão daquele grandioso templo da infância. 

Nesse cinema, o cinema Doré, Fernando viu uma vez uns episódios sobre os mistérios do Egito Antigo. Havia um faraó, sentado em seu trono na frente de um poço. O faraó parecia adormecido, mas com um dedo enroscava a barba. Nisso, abria os olhos e fazia um sinal. Então o mago do reino pronunciava um esconjuro e as águas do poço se alvorotavam e se incendiavam. Quando as chamas se apagavam e as águas serenavam, o faraó se inclinava sobre o poço. Ali, nas águas transparentes, ele via tudo o que naquele momento estava acontecendo no Egito e no mundo. 

Meio século depois, evocando o faraó de sua infância, Fernando teve uma certeza: aquele poço mágico, onde se via tudo o que acontecia, era um aparelho de televisão.





A televisão/2 



A televisão mostra o que acontece? Em nossos países, a televisão mostra o que ela quer que aconteça; e nada acontece se a televisão não mostrar. 


A televisão, essa última luz que te salva da solidão e da noite, é a realidade. Porque a vida é um espetáculo: para os que se comportam bem, o sistema promete uma boa poltrona.




A cultura do espetáculo


Fora das telas, o mundo é uma sombra indigna de confiança. Antes da televisão, antes do cinema, já era assim. Quando Búfalo Bill agarrava algum índio distraído e conseguia matá-lo, rapidamente procedia a arrancar-lhe o couro cabeludo e as plumas e demais troféus e de um galope ia do Oeste aos teatros de Nova Iorque, onde ele mesmo representava a façanha heroica que acabava de protagonizar. Então, quando as cortinas se abriam e Búfalo Bill erguia sua faca ensanguentada no palco, à luz de candelabros, então ocorria, pela primeira vez ocorria, de verdade ocorria, a realidade.




A televisão/3


A tevê dispara imagens que reproduzem o sistema e as vozes que lhe fazem eco; e não há canto do mundo que ela não alcance. O planeta inteiro é um vasto subúrbio de Dallas. Nós comemos emoções importadas como se fossem salsichas em lata, enquanto os jovens filhos da televisão, treinados para contemplar a vida em vez de fazê-la, sacodem os ombros. 

Na América Latina, a liberdade de expressão consiste no direito ao resmungo em algum rádio ou em jornais de escassa circulação. Os livros não precisam ser proibidos pela polícia: os preços já os proíbem.




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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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