sábado, 18 de fevereiro de 2017

Gente Pobre - 05. Mas que aconteceu, meu amor? - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


05.




12 de abril



Minha estimada Bárbara Alexeievna:


Mas que aconteceu, meu amor? Assusta-me, querida! Não me canso de lhe repetir nas minhas cartas que não deve sair à rua quando esteja mau tempo, que tenha o máximo cuidado com tudo; mas não quer saber e desobedece-me! É uma perfeita criança, meu anjo! Sei que é fraquinha. Um pouco de vento que apanhe, é o bastante para ficar doente. Por isso, deve cuidar mais da sua pessoa, evitar, quanto possível, os perigos, se não por outro motivo, ao menos para não inquietar aqueles que lhe querem bem. 

Na sua penúltima carta, manifestava o desejo de conhecer mais pormenorizadamente o meu gênero de vida e tudo quanto me rodeia e comigo se relaciona. É com prazer que vou dar satisfação ao seu desejo. Vou começar, pois... pelo princípio, minha querida, para haver, assim, mais ordem. 

Em primeiro lugar devo dizer-lhe que a entrada da nossa casa não é lá grande coisa. Todavia, a escada principal encontra se em bom estado, mesmo muito bom, e é limpa, clara e larga, com forro de chapa metálica, e os corrimões, de madeira, brilham como acaju. Em contrapartida, na de serviço, é melhor não falarmos: é úmida, suja, com os degraus gastos e as paredes tão ensebadas, que, encostando-lhes as mãos, estas ficam lá pegadas. Nos patamares veem-se gavetas, cadeiras e armários velhos, completamente desmantelados e a cair, roupa a secar, janelas com os vidros partidos; se uma pessoa se descuida, tropeça nos baldes do lixo, cheios de toda a espécie de porcaria: cascas de ovos, restos de comidas, etc. O cheiro é insuportável; numa palavra, a casa não tem nada de interessante. 

Já lhe disse a disposição dos quartos. Na verdade, são bastante cômodos, isso sim; mas o ar que se lá respira é um tanto úmido. Não quero com isto dizer que cheiram mal; apenas se sentem neles umas esquisitas emanações a podre, isto é, um odor penetrante e enjoativo a mofo ou a coisa que o valha. A primeira impressão que se recebe não é muito agradável. Mas isso depressa se esvai; ao fim de dois minutos passados lá dentro, já não se nota coisa alguma, porque nós próprios, a roupa, as mãos, tudo, enfim, fica impregnado do mesmo cheiro. A gente depressa se habitua a esta atmosfera e não liga mais importância ao caso. Os pássaros não se aguentam muito tempo neste ambiente. O marinheiro já comprou cinco, mas está sobejamente provado que eles não se dão aqui, e não vale a pena teimar. A cozinha é grande, espaçosa e clara. De manhã, quando cozinham peixe ou carne, a casa enche-se de fumo e sente-se o cheiro a carvão. É claro, entorna-se sempre qualquer coisa, de modo que o chão fica um pouco úmido; em compensação, de tarde é um verdadeiro paraíso. É costume porem na cozinha cordas carregadas de roupa, a secar. Ora, como o meu quarto fica mesmo contíguo, o cheiro a barreia incomoda-me um pouco. Mas não será por muito tempo. Não demora muito que esteja habituado. 

A vida nesta casa principia logo ao alvorecer, querida Bárbara. Levantam-se os primeiros, andam de um lado para o outro, fazem barulho, até que, pouco a pouco, vão saltando todos para fora da cama: uns para irem para o trabalho, outros, porque isso lhes agrada. Antes, porém, tomam o chá. Os samovares são quase todos da patroa; mas como esta não possui muitos, temos de aguardar com paciência a nossa vez. Aquele que sai da bicha para ser servido primeiro, é energicamente admoestado. Foi o que me sucedeu a mim na primeira manhã que passei nesta casa. Nessa altura familiarizei-me com todos os moradores. O primeiro que me dirigiu a palavra foi o marinheiro. É tão expansivo, que me pôs ao corrente de toda a sua vida; falou-me do pai, da mãe, de uma irmã, casada com um advogado em Tula, e da cidade de Cronstadt, onde viveu muito tempo. Ofereceu-se para tudo em que me pudesse ser útil e convidou-me a tomar chá com ele, de tarde. À hora marcada fui encontrá-lo na sala em que os hóspedes costumam reunir-se a jogar. Tomamos chá e depois quis que eu jogasse com eles. Não sei se o fizeram com o fim de troçar de mim, ou se era outro o seu objetivo; o certo é que, quando entrei, já estavam agarrados às cartas e que o jogo se prolongou por toda a noite. Viam-se por todos os sítios baralhos de cartas e pedras de dominó, e a fumarada lá dentro era tão espessa que até fazia arder os olhos. Claro, não quis jogar, e por isso começaram a dizer que eu era filósofo. Daí em diante, ninguém voltou a olhar para mim nem a dirigir-me a palavra enquanto lá me demorei. Mas, para lhe ser franco, confesso que não me sentia muito bem naquele ambiente. Agora já não paro naquele aposento; ali só há jogos de azar e nada mais. Costumo juntar-me à noite com o funcionário que, diga-se de passagem, também tem certos conhecimentos de literatura. No seu aposento o ambiente é outro; tudo ali respira modéstia, inocência e decoro. 

O nosso homem leva uma vida austera. 

Devo dizer-lhe, antes de mais nada, que a nossa patroa é fraca prenda, uma verdadeira bruxa. Conhece a Teresa e viu que está que parece tísica. Pois a pobre aguenta com todo o serviço. É só ela e um criado, o Faldoni. Para lhe dizer a verdade, não sei se é este o seu verdadeiro nome; seja, porém, como for, toda a gente lhe chama assim e ele responde. Tem o cabelo ruivo e aspeto finlandês ou báltico, é zarolho e possui um narigão de respeito; passa a vida a insultar a Teresa e pouco tem faltado para lhe bater. Para ser franco, devo dizer-lhe que a vida aqui não é lá muito modelar. Por exemplo, o hábito de se deitar toda a gente à mesma hora, é coisa que nesta casa não existe. Sejam as horas que forem, há sempre alguém a pé e a jogar, e por vezes dão-se cá casos que só pensar neles faz corar. Eu já estou afeito e pouco me importo, mas não compreendo como casais decentes possam viver nesta sucursal de Sodoma. 

Num compartimento, sem porta para o corredor, pois fica do outro lado, num recanto, vive uma pobre família que faz pena. É uma gente tão calada! Ninguém os ouve. E vivem todos no mesmo quarto, separados apenas por um simples biombo. O chefe de família, segundo parece, é um funcionário que foi demitido do seu cargo há coisa de sete anos, não se sabe porquê. Chama-se Gorchkov . É um homenzinho baixo, de cabelos brancos; anda tão pobremente vestido, que até horroriza vê-lo... Traja muito pior do que eu. É um sujeito acanhado e com cara de doente. Costumo encontrá-lo no corredor. Tremem-lhe sempre os joelhos e a cabeça devido a alguma doença, ou então por qualquer outra razão desconhecida. Extremamente tímido, receia toda a gente, e quando se encontra com alguém, afasta-se para o lado, com ar medroso, e desliza encostado à parede. Eu também sou um pouco tímido, mas nada que se compare com ele. Vive com a mulher e três filhos. O mais velho é, em tudo, o perfeito retrato do pai e também tem aspeto doentio. A mulher não deve ter sido feia no seu tempo, a avaliar pela sua boa aparência atual; mas anda tão mal vestida, com roupas do que há de pior, e tão velhas! Consta que devem o aluguer à patroa; não sei, mas o certo é que ela não é lá muito amável com eles. Ouvi também qualquer coisa acerca de Gorchkov; segundo se sussurra, foi demitido por ter praticado qualquer irregularidade. Ignora-se, porém, se está a correr qualquer processo ou coisa semelhante, talvez algum inquérito, por denúncia. Mas uma coisa há que salta aos olhos: que se encontram na mais negra miséria! Não se ouve no quarto deles o mínimo ruído; parece mesmo que não vive lá ninguém. As próprias crianças não fazem barulho; nunca andam à bulha nem brincam, o que é mau sintoma. Quando, numa tarde em que reinava na casa absoluto silêncio, por acaso passava junto do tugúrio daqueles infelizes, notei lá dentro soluços e gemidos entre cortados, logo seguidos de novos soluços, como se alguém chorasse; e aquele pranto era tão débil e denotava tal tristeza e desespero, que me confrangeu o coração. Naquela noite, só de madrugada consegui conciliar o sono, pois tinha o meu pensamento ocupado com essas pobres criaturas. 

Com isto, adeus, querida Bárbara, minha boa amiguinha. Já lhe descrevi tudo, o melhor que me foi possível. Durante todo o dia não pensei senão em si. Por sua causa vivo num verdadeiro tormento. É que, por exemplo, sei que não tem um bom casaco. E conheço tão bem estas primaveras petersburguesas, com ventania, chuva e, às vezes, neve... Um tempo assim faz tão mal, meu anjo! É cada mudança de temperatura, que Deus nos valha. 

Não leve a mal estas palavras, minha boa amiga; o que tenho a dizer, digo-o com franqueza, sem meias palavras nem rodeios, porque não possuo capacidade para fazer frases lindas, bem o sei. Se eu soubesse escrever em condições! Espalho no papel o que me vem à cabeça, sempre com a mira em distraí-la e levar-lhe um pouco de alegria. Se fosse um literato, então o caso seria outro; mas... que diabo sei eu? Os meus pais não gastaram muito com a minha educação. 

Seu eterno e fiel amigo



Makar Dievuchkin





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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.


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Fiódor Dostoiévski
GENTE POBRE
Título original: Bednye Lyudi (1846)
Tradução anônima 2014 © Centaur Editions
centaur.editions@gmail.com


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