domingo, 12 de fevereiro de 2017

histórias de avoinha: carolina augusta

mulheres descalças


carolina augusta 
Ensaio 97B – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar


Será que existe alguém bom no inferno? Sei lá, por algum erro de julgamento, foi a pergunta que ele me fez, respondi com outra pergunta, menos provocativa quanto aquela feita a mim, pelo menos, assim pensei

Será que existe esse inferno anunciado pelos piedosos: inflamado, duro, cruel e para sempre?

Carolina...

levei minha mão à sua boca, pedi para que esperasse terminar. as pessoas se excedem ao dizer que já sabem o que você vai falar antes mesmo de você falar. pensam e falam por você, ficam ansiosas e se tornam metidas. paro o que estou falando e peço que num adivinhe o que estou pensando, eu vou falar o que estou pensando, depois das palavras soltas divirta-se

E se o inferno é esse peidoso que nos quer quebrar, fazer-nos ceder à sua vontade?

Carolina...

E que nos obriga a crer quando proclama que sua inspiração é divina! E pronto, precisamos acreditar! É nossa obrigação confiar nas suas credenciais invisíveis. Por isso são invisíveis... entendeu? Porque são divinas e tudo que é divino num existe para o olhar dos curiosos, é preciso ter fé nos profissionais.

desta vez, me olhou em silêncio. afinal, a mudez nada custa além das nossas consciências quando ela gruda a língua no céu da boca ávida de desejo e morta de medo. se a retraição desse recolhimento das vontades caladas num tem sabedoria, é apenas o silêncio da covardia. e muitos covardes formam uma alcateia de muita maldade que fica escondida no ócio das palavras imbecis. covardes com medo de serem encontrados confundem seus vestígios com algumas palavras vagas e incompreensíveis e ficam se lambendo no escuro. e você acredita porque quer acreditar

esperei a próxima palavra dele

E vosmecê acredita em quem?

num se inicia uma história de amor sem acomodar, uma ou duas, às vezes, num raras vezes, muitas vontades insatisfeitas no quarto dos fundos da sua casa. um lugar escuro para as vontades escondidas, um quarto escuro amordaçado

e, se continuamos a mesma história de amor, cuidado com esse fundo da casa abandonado mofando e as paredes rachadas, como um tronco seco jogado no chão. os vermes ficam escondidos embaixo do tronco até que o furam e comem tudo, menos a casca, tornam o tronco vazio e podre. e o tronco outrora belo e forte e vistoso é só uma casca. uma casa oca de humanidade é um corpo de vermes. uma villa de vermes é um lugar doente. atenção, se vosmecê encerra as vontades insaciadas no quarto dos fundos como se elas pudessem flutuar sem memórias, junto com as infindáveis mágoas que num se acalmam,  essas vontades precisam ser recolhidas e aproveitadas no seu tempo, sem negligências. os medos desaprumam os desejos perdidos; misturadas, ofendidas, nunca mais as mesmas vontades

Eu acredito em mim e nas minhas canelas, no que meus olhos veem e meus ouvidos escutam.

nem o mais profundo silêncio nem a mais louca gritaria muda o gosto amargo que ficou na boca que escolheu num dizer, Eu quero você, o amor à vida tem uma força imensa; o desprezo também, quando sentencia o esquecimento, Não quero mais você, temos o tempo do gato e o tempo do rato, mas é sempre tempo das baratas e das formigas

é uma vida tumultuosa, um esforço dia-a-dia para proteger, cuidar, animar, junto com as medalhas das dificuldades e das culpas piedosas, Por que vosmecê parou de se mostrar como prometeu, ele num disse nem desdisse, precisava revisitar suas promessas e o quarto dos fundos das negligências. também num fiquei esperando a resposta, num queria ficar esperando ele escolher o que tinha para desesconder

Meu amorzinho, vamos fazer outra caminhada pela trilha dos ossos?

ali, bem na minha frente, o homem que me escolheu, me comprou, e se prendeu ao meu gosto de mulher. num vejo motivações mesquinhas, num vejo um homem mau, mas também num conseguimos ver tudo de alguém, e se vemos será que vemos

Cuidado, Carolina. Esses índios não foram domesticados. Não gostam de ninguém caminhando entre seus mortos.

E eu? Já fui domesticada?

sai correndo do casarão, lá, acima da terra, no topo do morro, num tinha escravo, se tem fome: cozinha, se tem sede: busca água, se sujou: limpa. o morro dos índios e seus ossos. num queria ser uma invasora, mas sou uma invasora. um invasor num pode escolher num ser invasor se entra e ocupa em nome de um bosta de rei qualquer ou em seu próprio nome. num gosto da invasão porque reforça o dono que é dono de tudo. uma ocupação sem liteiras ou itinerários da cidade, mas num fui convidada nem pedi permissão para caminhar na trilha dos ossos, os meus pés invadem sobre essa trilha de tanto tempo. qual a diferença do invasor mau e do invasor bom? será que tem diferença

Onde vais?

Num sei, respondi correndo e a voz me escapando pela trilha, correndo na frente dos passos correndo que eu dava. os pés tomam posse do lugar, mas é a palavra que anuncia a posse dos pés: Esse lugar agora tem dono, espalhou o recém chegado, Esse lugar já tem dono, retrucaram os ossos, Esse lugar agora tem novo dono, proclamou o invasor. o silêncio era quase demais, quase perturbador. só tinha um vento que parecia choro de criança fraquinha de você ou de morte. um sussurro de gemido. aqui dá para entender porque as cidades tiram as humanidades das pessoas: o barulho arranca tudo, destrói a paciência, cega os olhos, retira a humanidade da dor e introduz a tortura, assusta com a separação das lágrimas e a alegria, nega a emoção da tristeza e o silêncio, tudo é preciso mostrar. sem testemunhas cessa a dor ou a alegria, precisamos nos mostrar, Venha, meu barão. Olhe o mundo daqui. Sinta que vosmecê é parte disso tudo, ele me olhou espantado, Então, isso tudo é meu, Num barão, ser parte num é ser dono.

parei de respirar, num lembro se respirava, abria e fechava os olhos, queria acreditar no que estava respirando. sentei numa pedra, Essa pedra mais parece um trono, ergui os olhos da vista e olhei para o invasor abraçado na sua vontade de tomar posse de tudo, Ela só se mostra como uma pedra. Os seus olhos a veem com o propósito como melhor lhe convém, mas num como é costume da pedra, separados do mundo desperdiçamos nossas vidas. lutamos e matamos e escravizamos para ter nada e ser nada. senti o desespero do desperdício, Senta aqui na pedra. Esse lugar num é só beleza, tem a dignidade que toda vida merece receber. Venha... senta...

juntei meus pés descalços, chorava mansinho, queria que tudo fosse assim

O que foi?

Nada. Senta aqui, vamos. Eu quero lembrar tudo isso com vosmecê ao meu lado.

espichava os olhar para os lados da villa, lá estava ela, por certo, fervilhando nos seus barulhos. num parava nem quando parece que para. olhava para o outro lado e só havia a imensidão da água e mato, um lugar em que a vida se servia. um lado do morro de ossos com seus invasores, o outro lado esperando a invasão

Vosmecê acordou romântica.

Sim. Isso num é bom?

ele me olhou sério e repetiu seu aviso, ele num se deixava iludir

O que tem de bom nisso?

Eu estou apaixonada.

Mentira... eu que estou apaixonado por vosmecê.

queria impedir de ter medo: eu num ia mudar, iria manter firme o meu propósito de viver com ele, mas tenho medo que a villa o mude. é tudo tão breve, é tudo tão pouco, é tudo tão frágil. num tem como medir o medo

Bobo, eu num sou toda amor?

É?

uma mente agitada num é convicta de nada, só da própria agitação. num podia esperar ser despedaçada

Dê a sua mão... vamos... isso... venha para as pedras, nada é para sempre... nem as pedras.

É lindo... vosmecê é linda... o que eu sinto é lindo... ver com vosmecê essa parte da beleza do mundo... queria que o tempo fosse obediente. Não quero o futuro. Quero isso agora até sempre. Tenho medo de perder tudo de vosmecê.

como confessar esse medo sem virar do avesso? e as próprias virtudes? e as injustiças? é tão estreita a estrada entre o amor e a mesquinharia. quando sentamos na escada? quando subimos os degraus? e sabemos quando descemos os degraus que subimos? também tenho medo da vida familiar com um homem honrado e esclarecido. como confessar esse medo sem acordar os outros medos? o que é verdadeiro sobre o passado? o que é mentira sobre o presente? sinto que a vida pode me escapar para sempre como um espirro interrompido

Psiu... esse morro vai desmanchar com todos esses ossos, mas um dia ainda muito longe no tempo. Os índios... guaranis, né?

Sim.

é tão fácil apalpar as palavras abraçada no meu homem, tão à toa de amar, tão simples. como confessar que o meu corpo o exige? isso é tão absurdo? é uma tentação ficar abraçada

Pois bem, esses índios guaranis e os ossos dos seus mortos, junto com essas panelas, também sumirão. Tudo se desmancha, nada é sempre quente, nada é sempre frio. Num tem outra vida, a esperança da vida é hoje. Então, hoje é que você precisa do amor...

num me deixou prosseguir

Carolina... Carolina Augusta... gosto tanto do seu nome, da poesia que ele derrama... não sei dizer o que sinto. É tão diferente segurar a tua mão, sentir nossos dedos enlaçados, é tão quente olhar em teus olhos, é tão doce escutar tua voz. eu sinto tanto medo, é tão perturbador esse medo...

Medo do quê?

Pela primeira vez, pensei seriamente em casar. E me sinto casado contigo. Tenho medo que me negues teus beijos macios...

e me beijou que parecia que num acabava mais. foi quando descobri que o beijo faz barulho. até isso o barulho das cidades nos rouba

... molhados e atrevidos.

e continuou os beijos. muito barulho

soltei uma gargalhada de felicidade sobre aquele morro de ossos, deixei que percebesse meu contentamento, derramava minhas águas sobre aquele morro que descia à lagoa. eu também era das águas até o mar

há pouco era uma menina com uma boneca de pano e nós. por fora, num era mais aquela menina, era a mulher daquela menina que cresceu. num disse nada. estava mais agitada que parecia que estava, é tão pouca vida que vivemos, é tão pouca a duração do amor à velhice. quantos degraus cada uma das mulheres descalças conseguem subir antes de descer? num sei, só sei das minhas subidas, descidas e paradas. queria aprender beijar calada, ele queria beijar agitado

Tenho medo quando falas dura e cruel comigo. Sei que mereço, e talvez porque mereço, fico tão triste. O meu silêncio é a minha tristeza.

peguei suas mãos, estava agachada sobre meus pés, os joelhos dobrados, o amor de cócoras, repeti que num queria desperdiçar o nosso tempo de amor. sorríamos. tínhamos o morro todo. até que ficamos em silêncio

Gosto e num gosto dos teus silêncios, eles me obrigam reivindicar o direito que tenho de escutar a tua voz. Tenho pressa. O tempo que levará tudo de nós é desalmado e ferrenho. Quero escutar com o coração cheio de alegria, gosto do desarranjo que me provocas. Agora, num quero as palavras da razão num é tempo para as lembranças.

a paisagem do morro cantava a ventania em meus ouvidos

foi no morro dos ossos que ele tomou o chá e rezou comigo. liberata, tu ia ficar com muita satisfação de saber que num esqueci nada. e aprendi mais das coisas que tu ajuntou das conversas, um dia lá outro dia cá

a amiga que aceitou ser a minha outra mãe

como num lembrar, minha amiga: o desembaraço do amor, o embaraço das correntes, as surras, as jaulas, a travessia e a fome, a sede de água e luz, a humilhação e os enjoo no navio sem lugar de cozinha, sem dejetório, sem lugar de porta, só as correntes agarradas nas canelas pretas e ferroadas no piso molhado e imundo

foi a boneca que me salvou

quantas meninas pretas ficaram para as águas daquela estrada de sangue e lágrimas? uma parte da menina ficou para todo o sempre naquelas águas, a outra de mim sobreviveu. o encontro precioso com minha outra mãe trouxe da morte à vida: a boneca de nós e panos que tu fez com os trapos dos teus trapos

só entra pelo alçapão, só sai pelo alçapão. só sai quando chega, se num chega num sai nenhum pretu. quando a tampa da passagem estava aberta dava para sentir o aroma salgado do ar. a porta de entrada para o inferno, a porta de saída para o inferno. a resposta é sim, o inferno existe com abertura do tormento para a tortura

pela porta do inferno dava para ver o céu azul, pouco se via de tão longe e piquininino ele ficava. um instante tão pouco e tão raro ver o céu. o alçapão se fechava e a escuridão se juntava a imundícia que fedia até num feder mais. o costume faz você se acertar com o desacerto

a resposta é sim, o inferno existe e o alçapão está na mão dos piedosos

cheguei agradecer que num se tinha o que comer, se você num come a barriga num tem o que fazer nem o que sujar

num dá para esquecer num dá para lembrar

um alçapão horroroso era a porta do lugar para arrancar vidas, assustador para sempre nas lembranças que num queria lembrar, mas num posso esquecer: tu, minha outra mãe, rasgando os trapos que quase num a vestiam remontou o amor no meu coração

tu é o meu encontro precioso

no início foi penoso descer do negreiro e ser separada de novo, continuei aos pedaços: a vida cortada da vida

o que ficou de antes? tudo ficou para trás

o que mais sinto saudade? sinto saudade do cheiro da terra, cada terra tem o cheiro das pessoas, das comida, das roupas, o suor das danças, as cantorias, os risos, as lágrimas. a vida precisa dos cheiros da vida. num existem gavetas para abrir ou fechar os cheiros. os meus cheiros ficaram lá fora, o outro lado da estrada

o que num está aqui? tudo

nunca consegui me acostumar com os gritos e as lágrimas. num posso ver ninguém chorando, branco ou pretu, rico ou pobre, velho ou jovem, culpado ou inocente, sou arrastada pelos cabelos, pelo choro da criança, depois o silêncio excessivo interrompido pelo zumbido do voo das moscas e os soluços engasgados

os barulhos dos sonhos estremeciam o negreiro, cada sonho com seus motins e desordens, mas a dor da saudade era a mesma, bastava ouvir. a tentação mais cruel é escolher num escutar

a escuridão pensava que isso num podia ser assim, o cheiro da dor. tudo para mim passou a ter a cor da escuridão. a escuridão foi minha mãe até tu me pegar pela mão. o desamor, as imundícies, os gritos, tudo na escuridão, a mesma cor de escuridão para sempre, pensei que era para sempre a solidão da escuridão

ainda tenho medo de acordar no meio da noite com os barulhos do negreiro, o suor do navio escorrendo das paredes, encolhida sobre os joelhos retorcidos, olhando às sombras e querendo um colo para sempre

num faço força para esquecer, mas num posso continuar só com essas lembranças, assopro a ventania. preciso outros barulhos da vida

tenho medo de levantar dormindo, a sede na garganta seca, dolorida e as canelas pretas sangrando no garrote

do fundo do meu coração tenho mais medo da escuridão surda e cruel que dessa droga da morte

tenho medo de acordar as sombras dos mortos no caminho até a água. rezava para as sombras mortas ficarem caladas, que morressem logo, até que num escutava mais nada. nenhum gemido. acho que matava as sombras de tanto que rezava. é proibido chorar, pois o choro pode se alastrar, é proibido chorar

aprendi a chorar sem nenhum gemido enquanto escutava os gritos de alegria do dragão da mão piedosa no alçapão, A dor ensina a gemer... né, negrada? ensina sim, siô. num tem salvador. mas são os absurdos e a covardia daqueles que têm as armas que ensinam gemer sem ruído algum, como se os meus gemidos fossem o começo de tudo, novamente, e outra vez, para sempre

eu num queria acordar a morte, Isso tudo vai passá, Ela sabe qui vai, Num chore piquininina

só os mortos gemiam



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