sábado, 10 de junho de 2017

O Segundo Sexo - 10. Fatos e Mitos: nessas espécies favoráveis

Simone de Beauvoir



10. Fatos e Mitos


Primeira Parte
Destino

CAPITULO I
OS DADOS DA BIOLOGIA




 : nessas espécies favoráveis




NESSAS ESPÉCIES FAVORÁVEIS ao desenvolvimento da vida individual, o esforço do macho pela autonomia — que nos animais inferiores o destrói — é coroado de êxito. Ele é geralmente maior do que a fêmea, mais robusto, mais rápido, mais aventuroso; leva uma vida mais independente e cujas atividades são mais gratuitas; é mais conquistador, mais imperioso. Nas sociedades animais é sempre ele que comanda.

Nunca, na Natureza, tudo é inteiramente claro: os dois tipos, macho e fêmea, nem sempre se distinguem com nitidez; observa-se, por vezes, entre eles, um dimorfismo — cor do pelo, disposição das manchas — que parece absolutamente contingente; mas acontece, ao contrário, que não sejam discerníveis e que suas funções mal se diferenciem, como vimos com os peixes. Entretanto, em conjunto, e principalmente no alto da escala animal, os dois sexos representam dois aspectos diversos da vida da espécie. Sua oposição não é, como se pretendeu, a de uma atividade e de uma passividade: não somente o núcleo ovular é ativo, como também o desenvolvimento do embrião é um processo vivo, e não um desenrolar mecânico. Seria simples demais defini-la como a da mudança e a da permanência. O espermatozoide só cria porque sua vitalidade mantém-se no ovo; o óvulo só se pode manter superando-se, sem o quê, retrocede e degenera. É verdade, entretanto, que nessas operações, ambas ativas, manter e criar, a síntese do servir não se realiza da mesma maneira. Manter é negar a dispersão dos instantes, é afirmar a continuidade durante o seu aparecimento; criar é fazer rebentar no seio da unidade temporal um presente irredutível, separado, e é verdade, também, que, na fêmea, é a continuidade da vida que busca realizar-se, a despeito da separação, ao passo que a separação em forças novas e individualizadas é suscitada pela iniciativa do macho. É-lhe portanto permitido afirmar-se em sua autonomia: a energia específica, ele a integra em sua própria vida. Ao contrário, a individualidade da fêmea é combatida pelo interesse da espécie. Ela aparece como possuída por forças estranhas, alienada. E é por isso que, quanto mais se afirma a individualidade dos organismos, a oposição dos sexos não se atenua. Ao contrário, o macho encontra caminhos sempre mais diversos para despender as forças de que se torna senhor; a fêmea sente cada vez mais sua servidão. O conflito entre seus interesses próprios e o das forças geradores que a habitam exaspera-se. O coito das vacas e das éguas é muito mais doloroso e perigoso que o das camundongas e das coelhas. A mulher, que é a mais individualizada das fêmeas, aparece também como a mais frágil, a que vive mais dramaticamente seu destino e que se distingue mais profundamente do macho.

Na humanidade, como na maioria das espécies, nasce mais ou menos quase o mesmo número de indivíduos dos dois sexos (100 mulheres para 104 homens). A evolução dos embriões é análoga. Entretanto, o epitélio primitivo permanece neutro mais tempo no feto feminino; disso resulta ficar ele mais tempo submetido ao meio hormonal e ocorrer que seu desenvolvimento se inverta mais amiúde. Os hermafroditas, em sua maioria, seriam sujeitos genotipicamente femininos que se teriam masculinizado posteriormente. Tem-se a impressão de que o organismo masculino se define de imediato como macho, ao passo que o embrião feminino hesita em aceitar sua feminilidade. Mas esses primeiros balbucios da vida fetal são ainda muito pouco conhecidos para que se possa emprestar-lhes um sentido. Uma vez constituídos, os aparelhos genitais são, em ambos os sexos, simétricos. Os hormônios de um e de outro pertencem à mesma família química, a dos esteróis, e derivam todos, em última análise, da colesterina. São eles que determinam as diferenciações secundárias do soma. Nem suas fórmulas nem as singularidades anatômicas definem a fêmea do homem como tal. E sua evolução funcional que a distingue do macho. Comparativamente, o desenvolvimento do homem é simples. Do nascimento à puberdade cresce mais ou menos regularmente: por volta dos quinze ou dezesseis anos começa a espermatogênese que se efetua de maneira contínua até a velhice; seu aparecimento acompanha-se de uma produção de hormônios que determina a constituição viril do soma. A partir de então, o macho tem uma vida sexual que é normalmente integrada em sua existência individual: no desejo e no coito, sua superação na espécie confunde-se com o momento subjetivo de sua transcendência: ele é seu corpo. A história da mulher é muito mais complexa. Desde a vida embrionária, a provisão de oócitos já se acha constituída; o ovário contém cerca de cinquenta mil óvulos encerrados cada qual em um folículo, sendo que mais ou menos quatrocentos chegam à maturação. Desde o nascimento, a espécie toma posse dela e tenta afirmar-se; a mulher, vindo ao mundo, atravessa uma espécie de primeira puberdade: os oócitos crescem subitamente, de pois o ovário reduz-se a um quinto mais ou menos, Dir-se-ia que uma pausa é concedida à criança; enquanto seu organismo se desenvolve, o sistema genital permanece mais ou menos estacionado: certos foliados incham, mas sem atingir a maturidade. O crescimento da menina é análogo ao do menino; com a mesma idade ela chega a ser um pouco mais alta e mais pesada do que ele. Mas, no momento da puberdade, a espécie reafirma seus direitos. Sob a influência de secreções ovarianas, o número de folículos em via de crescimento aumenta, o ovário congestiona-se e cresce, um dos óvulos chega à maturidade e o ciclo menstrual se inicia; o sistema genital adquire seu volume e sua forma definitiva, o soma feminiza-se, o equilíbrio endócrino estabelece-se. É digno de nota o fato de assumir esse acontecimento o aspecto de uma crise; não é sem resistência que o corpo da mulher deixa a espécie instalar-se nela e esse combate enfraquece-a e faz com que corra perigo. Antes da puberdade morre mais ou menos o mesmo número de meninas que de meninos; de 14 a 18 anos morrem 128 meninas para cada 100 meninos e de 18 a 22 anos 105 moças para cada 100 rapazes. É nesse momento que surgem, muitas vezes, a clorose, a tuberculose, a escoliose, a osteomielite etc. Em certos indivíduos, a puberdade é anormalmente precoce, podendo ocorrer entre quatro e cinco anos. Noutros, ao contrário, ela não ocorre: o sujeito continua então infantil, sofre de amenorreia ou de dismenorreia. Certas mulheres apresentam sinais de virilismo: um excesso de secreções elaboradas pelas glândulas suprarrenais dá-lhes caracteres masculinos. Tais anomalias não representam, em absoluto, vitórias do indivíduo sobre a tirania da espécie. A esta não há meio de escapar, porquanto, ao mesmo tempo em que escraviza a vida individual, ele a alimenta; essa dualidade exprime-se no nível das funções ovarianas; a vitalidade da mulher tem suas raízes no ovário, como a do homem as tem nos testículos; em ambos os casos, o indivíduo castrado não somente se torna estéril como ainda retrocede e degenera. Não "formado", mal formado, todo o organismo é empobrecido, desequilibrado; ele só se desenvolve com a maturação do sistema genital. E, no entanto, muitos fenômenos genitais não interessam a vida individual do sujeito e até chegam a pô-la em perigo. As glândulas mamárias que se desenvolvem no momento da puberdade nenhum papel desempenham na economia individual da mulher; pode-se proceder à sua ablação em qualquer momento de sua vida.

Muitas secreções ovarianas têm sua finalidade no óvulo, na maturação, na adaptação do útero a suas necessidades; para o conjunto do organismo, constituem mais um fator de desequilíbrio do que de regulação; a mulher é adaptada às necessidades do óvulo mais do que a ela própria. Da puberdade à menopausa, é o núcleo de uma história que nela se desenrola e que não lhe diz respeito pessoalmente. Os anglo-saxões chamam a menstruação the curse, "a maldição"; e, efetivamente, não há nenhuma finalidade individual no ciclo menstrual. Acreditava-se, no tempo de Aristóteles, que mensalmente escorria um pouco de sangue destinado a constituir, no caso de fecundação, a carne e o sangue da criança. O que existe de verdadeiro nessa teoria é que, incessantemente, a mulher esboça o trabalho da gestação. Nos outros mamíferos, o ciclo menstrual só se verifica durante uma estação; não se acompanha de corrimento sanguinolento; é somente nos primatas e na mulher que ele ocorre mensalmente entre dores e sangue (1). Durante cerca de 14 dias, um dos folículos de Graaf que envolvem os óvulos aumenta de volume e amadurece, enquanto o ovário secreta o hormônio situado ao nível dos folículos e que se denomina foliculina. No décimo quarto dia verifica-se a ovulação: a parede do folículo rompe-se (o que acarreta, por vezes uma ligeira hemorragia), o ovo cai nas trompas, enquanto a cicatriz evolui de maneira a constituir o corpo amarelo. Começa então a segunda fase, ou fase luteínica, caracterizada pela secreção do hormônio chamado progestina e que age sobre o útero. Este modifica-se: o sistema capilar da parede congestiona-se, ela enruga-se como um coscorão, formando uma espécie de renda. Assim forma-se na matriz um berço destinado a receber o ovo fecundado. Sendo essas transformações celulares irreversíveis, no caso de não haver fecundação, esse edifício não se reabsorve. Possivelmente, nos demais mamíferos, os restos inúteis sejam carregados pelos vasos linfáticos, mas na mulher, quando as rendas do endométrio se desprendem, produz uma esfoliação da mucosa, os tubos capilares abrem-se e uma massa sanguínea destila-se externamente. Depois, enquanto o corpo amarelo degenera, a mucosa reconstitui-se e inicia-se uma nova fase folicular. Esse processo complexo, e ainda



(1) "A análise desses fenômenos pôde ser aprofundada nestes últimos anos, comparando o que se passa na mulher com o que se observa nos símios superiores, do gênero Rhesus em particular. Ê evidentemente mais fácil fazer experiências com estes animais", escreve Louis Gallien (La Sexualité).

bastante misterioso em seus pormenores, abala todo o organismo, porquanto é acompanhado de secreções hormonais que reagem sobre a tireoide e a hipófise, sobre o sistema nervoso central e o sistema vegetativo e, por conseguinte, sobre todas as vísceras.


Quase todas as mulheres — mais de 85% — apresentam perturbações durante esse período. A tensão arterial eleva-se antes do início do corrimento sanguíneo e baixa a seguir; o pulso acelera-se, a temperatura sobe. São frequentes os casos de febre; o abdome fica dolorido; observa-se, muitas vezes, certa tendência para a constipação, seguida de diarreia. Amiúde, também há aumento do volume do fígado, retenção de ureia, albuminúria; muitas pessoas apresentam uma hiperemia da mucosa pituitária (dor de garganta); outras são vítimas de perturbações do ouvido e da vista; a secreção de suor aumenta, acompanhada, no princípio das regras, de um odor sui generis que pode ser muito forte e persistir durante toda a menstruação. O metabolismo basal é aumentado. O número de glóbulos vermelhos diminui. Enquanto isso, o sangue veicula substâncias geralmente em reserva nos tecidos, em particular sais de cálcio; esses sais reagem sobre o ovário, sobre a tireoide que se hipertrofia, sobre a hipófise que preside à metamorfose da mucosa uterina e cuja atividade se amplia; essa instabilidade das glândulas acarreta uma grande fragilidade nervosa. O sistema central é atingido, frequentemente ocorre cefaleia e o sistema vegetativo reage exageradamente; há diminuição do controle automático pelo sistema central, o que liberta reflexos, complexos convulsivos e traduz-se por uma grande instabilidade de humor. A mulher torna-se mais emotiva, mais nervosa, mais irritável que de costume e pode apresentar perturbações psíquicas graves. É nesse período que ela sente mais penosamente seu corpo como uma coisa opaca alienada; esse corpo é presa de uma vida obstinada e alheia que cada mês faz e desfaz dentro dele um berço; cada mês, uma criança prepara-se para nascer e aborta no desmantelamento das rendas vermelhas; a mulher, como o homem, é seu corpo (1) mas seu corpo não é ela, é outra coisa.

A mulher conhece uma alienação mais profunda quando o ovo fecundado desce ao útero e aí se desenvolve. Sem dúvida,


(1) "Eu sou, portanto, meu corpo, pelo menos na medida em que tenho dêle conhecimento e reciprocamente meu corpo é como um sujeito natural, como um esboço provisório de meu ser total" (Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception).

a gestação é um fenômeno normal que, em se produzindo em condições normais de saúde e nutrição, não é nocivo à mãe; estabelece-se mesmo, entre ela e o feto, certas interações que lhe são favoráveis. Entretanto, contrariamente a uma teoria otimista cuja utilidade social é demasiado evidente, a gestação é um trabalho cansativo que não trás à mulher nenhum benefício individual (1) e exige, ao contrário, pesados sacrifícios. Acompanha-se, não raro, durante os primeiros meses, de falta de apetite e de vômitos, que não se observam em nenhuma outra fêmea doméstica e que manifestam a revolta do organismo contra a espécie que dele toma posse; ele se empobrece em fósforo, em cálcio, em ferro, sendo este último déficit difícil de ser compensado posteriormente; a superatividade do metabolismo acentua o sistema endócrino; o sistema nervoso vegetativo fica num estado de excitabilidade intensificada; quanto ao sangue, seu peso específico diminui, torna-se anêmico, análogo ao dos "jejuadores, dos que se acham em estado de inanição, dos que sofreram sangrias repetidas, dos convalescentes" (2). Tudo o que a mulher sadia e bem alimentada pode esperar é, depois do parto, recuperar seu desgaste sem muitas dificuldades. Mas muitas vezes, produzem-se, durante a gravidez, acidentes graves, ou perigosas perturbações e se a mulher não for robusta, se sua higiene não for perfeita, ficará prematuramente deformada e envelhecida pelas maternidades: sabe-se a que ponto o caso é frequente no campo. O parto em si é doloroso, é perigoso. É nessa crise que vemos com maior evidência que o corpo nem sempre satisfaz a espécie e o indivíduo ao mesmo tempo. Acontece a criança morrer e também, ao nascer, matar a mãe ou acarretar-lhe uma enfermidade crônica. O aleitamento é também uma servidão esgotante; um conjunto de fatores — o principal dos quais é, sem dúvida, o aparecimento de um hormônio, a progestina — traz às glândulas mamárias a secreção do leite; a ocorrência é dolorosa e acompanha-se, amiúde, de febres, e é em detrimento de seu próprio vigor que a mãe alimenta o recém-nascido. O conflito espécie-indivíduo, que no parto assume um aspecto dramático, confere ao corpo feminino uma inquietante



(1) Coloco-me aqui num ponto de vista exclusivamente fisiológico. É evidente que psicologicamente a maternidade pode ser muito útil à mulher, como pode também ser um desastre.

(2) Cf. H. Vignes em Traité de Physiologie, t. XI, dirigido por Roger e Binet.

fragilidade. Diz-se constantemente que as mulheres "têm doenças no ventre" e é verdade que encerram um elemento hostil: é a espécie que as corrói. Muitas de suas doenças não resultam de uma infecção de origem externa e sim de um desregramento interno. Assim é que as falsas metrites são produzidas por uma reação da mucosa uterina a uma excitação ovariana anormal; se persiste em lugar de ser absorvido, após a menstruação, o corpo amarelo provoca salpingites, endometrites etc.


E ainda através de uma crise difícil que a mulher escapa ao domínio da espécie; entre quarenta e cinco e cinquenta anos desenrolam-se os fenômenos da menopausa, inversos aos da puberdade. A atividade ovariana diminui e até desaparece. Esse desaparecimento acarreta um empobrecimento vital do indivíduo. Supõe-se que as glândulas catabólicas — tireoide e hipófise — esforçam-se por suprir as insuficiências do ovário; observa-se então, ao lado da depressão da cessação do mênstruo, fenômenos intempestivos: baforadas de calor, hipertensão, nervosismo; há, por vezes, recrudescência do instinto sexual. Certas mulheres acumulam, então, banha em seus tecidos; outras virilizam-se. Em muitas, um equilíbrio endócrino restabelece-se. Então, a mulher acha-se libertada da servidão da fêmea; não é comparável ao eunuco, porque sua vitalidade continua intata, entretanto, não mais é presa de forças que a superam: coincide consigo mesma. Já se afirmou que as mulheres idosas constituem "um terceiro sexo", e, com efeito, não são machos e não são mais fêmeas, traduzindo-se amiúde essa autonomia fisiológica por uma saúde, equilíbrio, e vigor que antes não possuíam.

Às diferenciações propriamente sexuais superpõem-se na mulher singularidades que são, mais ou menos, consequências diretas delas. São ações hormonais que determinam seu soma. Em média, ela é menor que o homem, menos pesada e seu esqueleto mais frágil, a bacia mais larga, adaptada às funções da gestação e do parto; seu tecido conjuntivo fixa as gorduras e suas formas são mais arredondadas que as do homem; a atitude geral — morfologia, pele, sistema piloso etc. — é nitidamente diferente nos dois sexos. Sua força muscular é muito menor, mais ou menos dois terços da do homem; sua capacidade respiratória é inferior, os pulmões, a traqueia e a laringe são menores; a diferença da laringe acarreta também a da voz. O peso específico do sangue é menor, pois há menos fixação de hemoglobina; as mulheres são, por conseguinte, menos robustas, mais predispostas à anemia. Seu pulso bate mais depressa, seu sistema vascular é mais instável: coram facilmente. A instabilidade é um traço marcante de seu organismo em geral. Entre outros, há no homem estabilidade no metabolismo do cálcio, ao passo que a mulher fixa muito menos sais de cal, pois os elimina durante as regras e durante a gravidez. É de imaginar que os ovários tenham, em relação ao cálcio, uma ação catabólica; essa instabilidade acarreta desordens nos ovários e na tireoide que é nela mais desenvolvida do que no homem, e a irregularidade das secreções endócrinas reage sobre o sistema nervoso vegetativo; o controle nervoso e muscular é imperfeitamente assegurado. Essa falta de estabilidade e de controle provoca sua emotividade, diretamente ligada às variações vasculares: pulsações, rubor etc; e elas são, assim, sujeitas a manifestações convulsivas: lágrimas, gargalhadas, ataques de nervos.

Vê-se que muitos desses traços provêm ainda da subordinação da mulher à espécie. Tal é a conclusão mais notável desse exame: é ela, entre todas as fêmeas de mamíferos, a que se acha mais profundamente alienada e a que recusa mais violentamente esta alienação; em nenhuma, a escravização do organismo à função reprodutora é mais imperiosa nem mais dificilmente aceita: crises da puberdade e da menopausa, "maldição" mensal, gravidez prolongada e não raro difícil, parto doloroso e por vezes perigoso, doenças, acidentes são características da fêmea humana. Dir-se-ia que seu destino se faz tanto mais pesado quanto mais ela se revolta contra ele, afirmando-se como indivíduo. Comparada com o macho, este parece infinitamente privilegiado: sua vida genital não contraria a existência pessoal; desenvolve-se de maneira contínua, sem crise e geralmente sem acidente. Em média, as mulheres vivem tanto quanto o homem, mas adoecem muito mais vezes e durante muitos períodos não dispõem de si mesmas.

Esses dados biológicos são de extrema importância: desempenham na história da mulher um papel de primeiro plano, são um elemento essencial de sua situação. Em todas as nossas descrições ulteriores, teremos que nos referir a eles. Pois, sendo o corpo o instrumento de nosso domínio do mundo, este se apresenta de modo inteiramente diferente segundo seja apreendido de uma maneira ou de outra. Eis por que os estudamos tão demoradamente; são chaves que permitem compreender a mulher. Mas o que recusamos, é a ideia de que constituem um destino imutável para ela. Não bastam para definir uma hierarquia dos sexos; não explicam por que a mulher é o Outro; não a condenam a conservar para sempre essa condição subordinada.




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O SEGUND O SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.


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Leia também:

O Segundo Sexo - 9. Fatos e Mitos: um dos traços mais notáveis


O Segundo Sexo - 11. Fatos e Mitos: afirmou-se muitas vezes que somente a fisiologia


O Segundo Sexo - 1 Fatos e Mitos: que é uma mulher?



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