quinta-feira, 29 de junho de 2017

34. O Livro dos Abraços - Chorar - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


34. O Livro dos Abraços




Chorar 

Foi na selva, na Amazônia equatoriana. Os índios shuar estavam chorando a avó moribunda. Choravam sentados, na margem de sua agonia. Uma pessoa, vinda de outros mundos, perguntou: — Por que choram na frente dela, se ela ainda está viva? E os que choravam responderam: — Para que ela saiba que gostamos muito dela.




Celebração do riso


José Luis Castro, o carpinteiro do bairro, tem a mão muito boa. A madeira, que sabe que ele a ama, deixa-se fazer. O pai de José Luis tinha vindo lá de uma aldeia de Pontevedra para o Rio da Prata. O filho recorda o pai, o rosto aceso debaixo do chapéu panamá, a gravata de seda no colarinho do pijama azul-celeste, e sempre, sempre contando histórias desopilantes. Onde ele estava, lembra o filho, o riso acontecia. De todas as partes vinha gente para rir, quando ele contava, e a multidão se amontoava. Nos velórios era preciso levantar o ataúde, para que todos coubessem — e assim o morto ficava em pé para escutar com o devido respeito aquelas coisas todas, ditas com tanta graça. E de tudo o que José Luis aprendeu de seu pai, isso foi o principal: — O importante é rir — ensinou-lhe o velho —. E rir juntos.




Dizem as paredes/5


Na faculdade de Ciências Econômicas, em Montevidéu: A droga provoca amnésia e outras coisas que esqueci. Em Santiago do Chile, nas margens do rio Mapocho: Bem-aventurados os
bêbados, porque eles verão Deus duas vezes. Em Buenos Aires, no bairro de Flores: Uma namorada sem tetas é, mais que namorada, um amigo. 




O vendedor de risadas


Estou na praia de Malibu, no espigão onde há meio século o detetive Philip Marlowe encontrou um de seus cadáveres. Jack Miles me mostra uma casa linda, lá longe, lá no alto: ali morou o homem que abastecia Hollywood de risadas. Há dez anos, Jack passou uma temporada naquela casa, quando o abastecedor de risadas decidiu ir embora para sempre. A casa estava toda atapetada de risadas. Aquele homem tinha passado a vida recolhendo risadas. Gravador em punho, tinha percorrido os Estados Unidos de cabo a rabo, de alto a baixo, buscando risos, e tinha conseguido reunir a maior coleção do mundo. Tinha registrado a alegria das crianças brincando e o alvorocinho assim meio gasto de quem já viveu muito. Havia risos do norte e do sul, do leste e do oeste. De acordo com o que pedissem, ele podia proporcionar risadas de celebração ou risos de dor ou de pânico, risadas apaixonadas, escalafriantes gargalhadas de espectros e risos de loucos e bêbados e criminosos. Entre suas milhares e milhares de gravações, tinha risos para acreditar e risos para desconfiar, risadas de negros, de mulatos e de brancos, risadas de pobres e de ricos e de remediados.

Vendendo risos, risos para cinema, rádio e televisão, tinha ficado rico. Mas era um homem até que melancólico, e tinha uma mulher que só com uma olhada matava qualquer vontade de rir. Ela e ele foram embora de sua casa da praia de Malibu, e nunca mais voltaram. Foram embora fugindo dos mexicanos, porque na Califórnia existem cada vez mais mexicanos que comem comida apimentada e têm o maldito costume de rir às gargalhadas. Agora eles dois vivem na ilha de Tasmânia, que fica lá pelos lados da Austrália, só que mais longe.




Eu, mutilado capilar


Os barbeiros me humilham cobrando» meia tarifa. Faz uns vinte anos que o espelho delatou os primeiros clarões debaixo da melena frondosa. Hoje o luminoso reflexo de minha calva em vitrines e janelas e janelinhas me provoca estremecimentos de horror. Cada fio de cabelo que perco, cada um dos últimos cabelos, é um companheiro que tomba, e que antes de tombar teve nome ou pelo menos número. A frase de um amigo piedoso me consola: — Se o cabelo fosse importante, estaria dentro da cabeça, e não fora. Também me consolo comprovando que em todos esses anos caíram muitos de meus cabelos mas nenhuma de minhas ideias, o que acaba sendo uma alegria quando a gente pensa em todos esses arrependidos que andam por aí.






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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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33. O Livro dos Abraços - A última cerveja de Caldwell - Eduardo Galeano


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