Fiódor Dostoiévski
15.
20 de junho
Prezado Makar Alexeievitch:
Escrevo-lhe apenas meia dúzia de palavras à pressa. Estou a acabar um trabalho que tenho de entregar num prazo fixo, não dispondo por isso de mais tempo.
15.
20 de junho
Prezado Makar Alexeievitch:
Escrevo-lhe apenas meia dúzia de palavras à pressa. Estou a acabar um trabalho que tenho de entregar num prazo fixo, não dispondo por isso de mais tempo.
Vou dizer-lhe, sem rodeios, o assunto de que se trata: surgiu uma oportunidade de efetuar um negócio vantajoso. Diz a Fédora que um conhecido dela se quer desfazer de uma farda quase nova — calças, casaco e boné — e que a vende barato. Se quiser comprar... O senhor agora tem dinheiro e não vive com dificuldades; garantiu-me até que tinha dinheiro de mais. Por isso, seja razoável e adquira esse fato, que precisa dele. O que traz está muito velho, como poderá verificar se se mirar ao espelho. É verdadeiramente horroroso! Está cheio de nódoas e, segundo me afirmaram, o senhor não tem outro, apesar de me garantir o contrário. Pelo menos, ninguém lho vê. Peço-lhe, por isso, que me obedeça uma vez e compre o fato! Faça-o por mim, se é que realmente me tem algum amor.
O senhor mandou-me roupa branca. Devo dizer-lhe, Makar Alexeievitch, que é de mais. Se assim continua, arruinar-se-á, pode crer; o que já gastou comigo representa quase uma fortuna! Como pode esbanjar tanto? Eu não preciso de nada, todas essas prendas são exageradas. Sei, tenho mesmo a certeza de que me quer; é, portanto, supérfluo o seu empenho em demonstrar-me. a verdade do seu carinho, oferecendo-me umas coisas atrás de outras. Creia que me custa imenso aceitar os seus obséquios, porque sei bem os sacrifícios que eles representam. Deixe-se dessas coisas de uma vez para sempre, ouviu? Peço-lhe, suplico-lhe!
Pede-me que lhe envie a continuação das minhas memórias e diz que devo terminá-las. Meu Deus! Se eu própria não sei como consegui escrever tantas coisas naquele caderno! Não; já não sinto coragem para falar do meu passado, não quero pensar mais nele. Essas recordações horrorizam-me. Especialmente referir-me à minha pobre mãe, cuja filha única, após a sua morte, foi vítima de tantos infortúnios, é superior às minhas forças! Sinto o meu coração sangrar quando evoco essas recordações, apesar de serem tão longínquas. A ferida está ainda muito viva! Além disso, não disponho de serenidade para pensar; já passou um ano sobre esses acontecimentos, mas não consegui ainda recuperar a tranquilidade. De resto, o senhor sabe tudo.
Já lhe falei também das tenções com que anda agora Ana Fedorovna. Acusa-me de ingratidão e afirma não ter de modo algum interferido no caso do senhor Buikov. Diz que estou a viver de esmolas e que enveredei pelo mau caminho. Por isso convida-me a voltar para sua casa, prometendo levar o senhor Buikov a reparar o mal que fez. Chegou mesmo a dizer que ele me indemnizará dando-me um dote. Para longe com eles! Estou aqui muito bem sob a sua proteção e ao lado da boa Fédora, cuja afeição me faz lembrar a minha velha ama que Deus haja. Bem sei que o senhor é apenas um parente afastado, mas isso não o impede de olhar por mim e me proteger com o seu nome honrado e a sua boa fama. A essa gente, não a conheço, votá-la-ei ao esquecimento, se tal me for possível! Que mais querem de mim? Diz a Fédora que são simples artimanhas que eles empregam e que, por fim, hão de acabar por me deixar em paz. Deus o queira!
B. D.
21 de junho
Minha querida:
Desejo escrever-lhe, mas não sei por onde principiar. É deveras estranha a vida que ambos agora levamos! Quero com isto apenas dizer que nunca passei dias tão felizes! É como se Deus me tivesse dado um lar e uma família querida: Mas para que falou nas quatro camisas que lhe enviei? Sei que precisava delas, disse-mo Fédora. E, bem sabe, para mim constitui um prazer ser-lhe útil em qualquer coisa. É a maior alegria que posso ter na vida; peço-lhe por isso que me permita gozá-la e queira fazer-me feliz. Nunca experimentei nada de semelhante, querida. A vida que hoje levo é completamente diferente, muito outra, da anterior.
B. D.
21 de junho
Minha querida:
Desejo escrever-lhe, mas não sei por onde principiar. É deveras estranha a vida que ambos agora levamos! Quero com isto apenas dizer que nunca passei dias tão felizes! É como se Deus me tivesse dado um lar e uma família querida: Mas para que falou nas quatro camisas que lhe enviei? Sei que precisava delas, disse-mo Fédora. E, bem sabe, para mim constitui um prazer ser-lhe útil em qualquer coisa. É a maior alegria que posso ter na vida; peço-lhe por isso que me permita gozá-la e queira fazer-me feliz. Nunca experimentei nada de semelhante, querida. A vida que hoje levo é completamente diferente, muito outra, da anterior.
Em primeiro lugar, vivo duplamente vivendo perto de si, o que é para mim uma verdadeira consolação espiritual, ao passo que, por outro lado, o meu vizinho de quarto, Ratazaiev — esse funcionário em cujos aposentos se dão serões literários, convidou-me para tomar chá. Esta noite, portanto haverá uma dessas reuniões onde serão lidos alguns trechos literários. Está a ver a minha vida?
Bom, por hoje adeus! Já lhe escrevi bastante sem qualquer objetivo; apenas queria participar-lhe que me encontro bem-disposto. Mandou-me dizer pela Teresa que precisava de seda de cor para os seus bordados; esteja descansada, que eu vou-lha comprar amanhã, sendo para mim um grande prazer a satisfação de um desejo seu. Já sei onde poderei encontrar a seda da melhor qualidade.
Entretanto, creia-me seu sincero amigo
Makar Dievuchkin
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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.
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Fiódor Dostoiévski
GENTE POBRE
Título original: Bednye Lyudi (1846)
Tradução anônima 2014 © Centaur Editions
centaur.editions@gmail.com
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Leia também:
Gente Pobre - 14. Qual será a maior virtude cívica? - Dostoiévski
Gente Pobre - 16. O pequenito tinha nove anos - Dostoiévski
Gente Pobre - 01. Ontem fui feliz, excessivamente feliz - Dostoievski
Makar Dievuchkin
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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.
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Fiódor Dostoiévski
GENTE POBRE
Título original: Bednye Lyudi (1846)
Tradução anônima 2014 © Centaur Editions
centaur.editions@gmail.com
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Leia também:
Gente Pobre - 14. Qual será a maior virtude cívica? - Dostoiévski
Gente Pobre - 16. O pequenito tinha nove anos - Dostoiévski
Gente Pobre - 01. Ontem fui feliz, excessivamente feliz - Dostoievski
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