segunda-feira, 5 de junho de 2017

33. O Livro dos Abraços - A última cerveja de Caldwell - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


33. O Livro dos Abraços




A última cerveja de Caldwell 

Era no entardecer de um domingo de abril. Depois de uma semana de muito trabalho, eu estava bebendo cerveja numa taverna de Amsterdam. Estava com Annelies, que tinha me ajudado com santa paciência em minhas voltas e reviravoltas pela Holanda. 

Eu me sentia bem mas, sem saber por que, meio triste. 

E comecei a falar dos livros de Erskine Caldwell. 

Começou com uma piada boba. Como minhas incessantes viagens ao banheiro entre cerveja e cerveja me davam vergonha, resolvi dizer que o caminho da cerveja conduz ao banheiro da mesma forma que o caminho do tabaco leva ao cinzeiro, e me senti muito arguto. Mas Annelies, que não tinha lido O caminho do tabaco, nem sorriu. Então expliquei a piada, que é a pior coisa que se pode fazer em qualquer circunstância, e foi assim que comecei a falar de Caldwell e de seus espantalhos do sul dos Estados Unidos; e não consegui mais parar.

Fazia mais de vinte anos que eu não falava dele. Eu não falava de Caldwell desde os tempos em que me encontrava com Horacio Petit, nas cafeterias e nos botequins de Montevidéu, e com ele andava vinhos e livros. 


Agora, enquanto falava, enquanto aquela torrente incessante brotava de minha boca, eu via Caldwell, via Caldwell debaixo de seu esfiapado chapéu de palha, numa cadeira de balanço na varanda, feliz por causa dos ataques das ligas de moral e bons costumes e dos críticos literários, mascando fumo e ruminando novas porcarias e desventuras para seus personagens miseráveis. 

E a tarde se fez noite. Não sei quanto tempo passei falando de Caldwell e tomando cerveja. 

Na manhã seguinte, li a notícia nos jornais: O romancista Erskine Caldwell morreu ontem, em sua casa no sul dos Estados Unidos.




Andanças/3

Helena sonhou que telefonava para Pilar e Antonio, e eram tantas as vontades de dar um abraço nos dois que conseguia trazê-los da Espanha pelo aparelho. Pilar e Antonio deslizavam pelo telefone como se fosse um tobogã, e caíam, suavemente, em nossa casa de Montevidéu.





Dizem as paredes/4

Em pleno centro de Medellín: A letra com sangue entra. Embaixo, assinando: Carrasco alfabetizador. Na cidade uruguaia de Melo: Ajude a polícia: torture-se

Num muro de Masatepe, na Nicarágua, pouco depois da queda do ditador Somoza: 

Vão morrer de saudades, mas não voltarão.




Invejas do alto céu

Os maias creem que no começo da história, quando os deuses nos deram nascimento, nós, os humanos, éramos capazes de ver além do horizonte. Então estávamos recém-fundados, e os deuses atiraram pó em nossos olhos para que não fôssemos tão poderosos. 

Eu pensei nessa inveja dos deuses, quando soube que meu amigo René Zavaleta tinha morrido. René, que tinha uma inteligência deslumbrante, foi fulminado por um câncer no cérebro. 

De câncer na garganta tinha morrido, meio século antes, Enrico Caruso.




Notícias

Os macacos confundem Gato Félix com Tarzã, Popeye devora suas latas infalíveis, Berta Singerman geme versos no Teatro Solís, a grande tesoura de Geniol corta os resfriados, de um momento a outro Mussolini vai invadir a Etiópia, a frota britânica concentra-se no canal de Suez. 

Página após página, dia após dia, o ano de 1935 vai desfilando frente aos olhos de Pepe Barrientos, na Biblioteca Nacional. Pepe está buscando sei lá qual dado na coleção do jornal Uruguay, a estréia de um tango ou o batizado de uma rua ou coisa parecida, e o tempo inteiro sente que esta não é a primeira vez, sente que já viu o que está vendo agora, que já passou por aqui, passou antes por aqui, por estas páginas, o cine Ariel estréia um filme de Ginger Rogers, no Artigas a pequena Shirley Temple dança e canta, uma flanela molhada em Untisal cura a dor de garganta, um navio arde em chamas a cento e cinqüenta milhas destas costas de Montevidéu, uma bailarina de reputação duvidosa amanhece assassinada, Mussolini pronuncia seu ultimato. Guerra! Vem aí a guerra!, clama uma enorme manchete. Sim, Pepe já viu. Sim, sim: esta foto, o goleiro feito pomba voadora atravessando a página, o chute de Cea dobrando as mãos do goleiro, essas letras: talvez na infância, pensa. Surpreende-se de tão longa viagem da memória: em 1935, há mais de meio século, ele tinha seis anos. E então, de repente, é tocado pelo medo, as unhas geladas do medo roçam sua nuca, e ele tem certeza de que deve ir embora, e tem certeza de que vai ficar. E assim continua. Poderia mudar de jornal, ou de ano, ou simplesmente poderia caminhar até a porta de saída, mas continua. Pepe continua, chamado, não pode ir embora, não pode parar, e o Penarol ganha e sua grande figura é Gestido, e foi firmada a paz entre o Paraguai e a Bolívia mas o problema dos prisioneiros ainda não foi resolvido, e uma tormenta afunda barcos no Canal da Mancha, e foi preso o assassino da bailarina, que era o seu amante e que levava oito centavos no bolso no momento de sua detenção, e o remédio Himrod é garantido contra a asma, e de repente a mão de Pepe, que acaba de virar a página, fica paralisada, e uma foto golpeia sua cara: uma foto aberta em seis colunas, o caminhão tombado e arrebentado, a imensa foto do caminhão, e ao redor do caminhão um enxame de curiosos vendo o fotógrafo, olhando para Pepe que olha os curiosos, que não os vê: Pepe com os olhos cegos de lágrimas vendo a foto do caminhão onde seu pai morreu esmagado numa trombada espetacular que comove o bairro La Teja, em Montevidéu, ao meio-dia do dia 18 de setembro de 1935.




A morte

Nem dez pessoas iam aos últimos recitais do poeta espanhol Blas de Otero. Mas quando Blas de Otero morreu, muitos milhares de pessoas foram à homenagem fúnebre feita numa arena de touros em Madri. Ele não ficou sabendo.





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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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Leia também:

32. O Livro dos Abraços - Os adeuses - Eduardo Galeano


1.O Livro dos Abraços - O mundo - Eduardo Galeano


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