quinta-feira, 15 de junho de 2017

14.O Estrangeiro: Se os vires esta noite perto da nossa casa, avisa-me - Albert Camus


Albert Camus


Capítulo 5


14. Se os vires esta noite perto da nossa casa, avisa-me




RAIMUNDO telefonou-me para o escritório. Disse-me que um amigo dele, a quem falara de mim, me convidava para passar o domingo numa casa que tinha perto de Argel. Respondi que gostaria de ir, mas que já combinara passar o domingo com uma amiga. Raimundo declarou imediatamente que também a convidava. A mulher do amigo ficaria, até, muito contente por não ser a única no meio de um grupo de homens. 

 Quis desligar imediatamente, pois sei que o chefe não gosta que estejamos ao telefone. Mas Raimundo pediu-me para esperar e disse que me poderia ter transmitido o convite à noite, mas me queria avisar de outra coisa. Fora seguido durante todo o dia por um grupo de Árabes entre os quais estava o irmão da sua antiga amante. "Se os vires esta noite perto da nossa casa, avisa-me". Respondi que estava combinado. 

 Pouco depois o chefe mandou-me chamar e fiquei aborrecido porque pensei que me ia dizer para telefonar menos e trabalhar mais. Não era nada disso. Declarou que me ia falar num projeto ainda muito vago. Queria apenas saber a minha opinião sobre o assunto. Tencionava instalar um escritório em Paris, para tratar diretamente com as grandes companhias e perguntou-me se eu estava disposto a ir. Poderia assim viver em Paris e viajar durante parte do ano. "Você ainda é novo e creio que essa vida lhe agradaria". Disse que sim, mas que no fundo me era indiferente. Perguntou-me depois se eu não gostava de uma mudança de vida. Respondi que nunca se muda de vida, que em todos os casos, todas as vidas se equivaliam e que a minha, aqui, não me desagradava. Mostrou um ar descontente, disse que eu respondia sempre à margem das questões, e que não tinha ambição, o que para os negócios era desastroso. Voltei para o meu trabalho. Teria preferido não o descontentar, mas não via razão nenhuma para modificar a minha vida. Pensando bem, não era infeliz. Quando era estudante, alimentara muitas ambições desse gênero. Mas quando abandonei os estudos, compreendi muito depressa que essas coisas não tinham verdadeira importância. 

 Maria veio buscar-me à noite e perguntou-me se eu queria casar com ela. Respondi que tanto me fazia, mas que se ela de facto queria casar, estava bem. Quis então saber se eu gostava dela. Respondi, como aliás respondera já uma vez, que isso nada queria dizer, mas que julgava não a amar. "Nesse caso, porquê casar comigo?", disse ela. Respondi que isso não tinha importância e que, se ela quisesse, nos podíamos casar. Era ela, aliás, quem o perguntava, e eu contentava-me em dizer que
sim. Maria observou então que o casamento era uma coisa muito séria. Respondi: "Não". Maria calou-se durante uns instantes e olhou-me em silêncio. Depois, falou. Queria simplesmente saber se, vinda de outra mulher com a qual estivesse relacionado do mesmo modo, eu teria aceito uma proposta semelhante. Respondi: "Possivelmente". Perguntou então de si para si se gostaria de mim, mas, sobre esse ponto, como poderia eu saber alguma coisa? Depois de mais uns instantes de silêncio, murmurou que eu era uma pessoa estranha, que gostava de mim se calhar por isso mesmo, mas que um dia, pelos mesmos motivos, era capaz de passar aos sentimentos contrários. Como eu me calasse, por não ter nada a acrescentar, tomou-me o braço a sorrir e declarou que queria casar comigo. Respondi que sim, logo que ela quisesse. Falei-lhe então na proposta do chefe e Maria disse-me que gostaria de conhecer Paris. Contei-lhe que lá vivera durante algum tempo e ela perguntou-me como era a cidade. Respondi: "Suja. Há pombas e pátios escuros. As pessoas têm a pele muito branca". 

 Depois passeamos, escolhendo as grandes ruas. As mulheres eram bonitas e perguntei a Maria se ela achava o mesmo. Disse que sim, e que me compreendia. Depois calamo-nos. Queria no entanto que ela ficasse comigo e disse-lhe que poderíamos jantar juntos no Celeste. Maria replicou que gostaria muito, mas tinha que fazer. Estávamos ao pé da minha casa e eu disse-lhe adeus. Ela olhou para mim: "Não queres saber o que é que tenho que fazer?" Eu queria, mas não me lembrara de lho perguntar e era por isso que estava com um ar de censura. Diante do meu ar embaraçado, voltou então a rir e, para me estender a boca, teve para mim um movimento de todo o corpo. 

 Jantei no restaurante do Celeste. Começara já a comer, quando entrou uma mulherzinha esquisita e veio perguntar se podia sentar-se à minha mesa. Porque não havia de poder? Fazia gestos bruscos e tinha uns olhos brilhantes, inseridos numa pequena cara de maçã. Tirou o casaco, sentou-se e consultou febrilmente a lista. Chamou o Celeste e pediu imediatamente os pratos que queria, com uma voz ao mesmo tempo precisa e precipitada. Enquanto esperava os acepipes, abriu a carteira, tirou um pequeno quadrado de papel e um lápis, fez a conta ao que tinha que pagar, e depois tirou do porta-moedas, acrescentando-lhe a gorjeta, a quantia exata. Colocou-a diante dela. Nesse momento levaram-lhe os acepipes, que engoliu a toda a velocidade. Enquanto esperava o prato seguinte tirou ainda da carteira um lápis azul e uma revista que dava os programas radiofônicos da semana.

 Com o maior cuidado, sublinhou um a um quase todos os programas. Como a revista tinha umas doze páginas, continuou este trabalho metodicamente durante toda a refeição. Já eu acabara de comer, e ainda ela estava a sublinhar, sempre com a mesma aplicação. Depois levantou-se, vestiu o casaco com os mesmos gestos precisos de autômato e saiu. Como não tinha nada que fazer, também saí e segui-a durante uns momentos. Colocou-se à beira do passeio e, com uma segurança e uma rapidez incríveis, seguia o seu caminho sem se desviar e sem olhar para os lados. Acabei por perdê-la de vista e por voltar para trás. Achei que era uma mulher estranha, mas depressa a esqueci. 

 À porta de casa, encontrei o velho Salamano. Disse-lhe para entrar e ele informou-me que o cão se perdera, pois não estava na Câmara. Os empregados haviam-lhe dito que fora, talvez, atropelado. Perguntara se não era possível sabê-lo nos comissariados da polícia. Tinham-lhe respondido que eles não tomavam nota de coisas como essas, pois aconteciam todos os dias. Disse ao velho Salamano que podia arranjar outro cão, mas ele respondeu-me com toda a razão aliás, que estava habituado àquele. 

 Eu estava estendido na cama e Salamano sentara-se numa cadeira em frente da mesa. Estava voltado para mim e tinha as mãos em cima dos joelhos. Conservara o velho chapéu na cabeça: Sob o bigode amarelecido, mastigava frases que depois não acabava. Massava-me um bocado, mas como não tinha nada que fazer e não estava com sono, não me importei. Para dizer alguma coisa, fiz-Lhe perguntas sobre o cão. Disse-me que o arranjara depois da morte da mulher. Casara-se bastante tarde. Na sua mocidade, tivera vontade de entrar para o teatro: na tropa, representara em várias récitas militares. Mas acabara por entrar para os caminhos de ferro e não estava arrependido, pois agora davam-he uma pequena reforma. Não fora feliz com a mulher, mas, por fim, habituara-se a ela. Quando esta morrera, sentira-se muito só: Pedira então a um colega do escritório para lhe dar um cão, e fora-lhe oferecido este, quase recém-nascido. Tivera que o alimentar a biberão. Mas como o cão vive menos do que o homem, tinham acabado por envelhecer juntos.

 "Tinha mau feitio, Disse Salamano. De tempos a tempos zangávamo-nos. Mas apesar disso, era um bom cão". Disse que o cão devia ser de boa raça, e Salamano ficou com um ar contente. "E para mais, acrescentou, não o conheceu antes da doença. Não havia pelo mais bonito do que o dele". Todas as noites e todas as manhãs, desde que o cão aparecera com aquela doença de pele, Salamano punha-lhe pomada. Mas na sua opinião, a verdadeira doença que o cão tinha era a velhice, e a velhice não cura. 

 Nesse momento bocejei, e o velho anunciou que se ia embora. Disse-lhe que podia ficar e que estava aborrecido com o que Lhe acontecera ao cão: agradeceu-me. Disse-me que a minha mãe gostara muito do cão. Ao falar dela, chamava-a "a sua pobre mãe". Emitiu a suposição que eu devia sentir-me bem infeliz desde que a minha mãe morrera. Não respondi. Disse-me então, muito depressa e com um ar embaraçado, que no bairro me tinham criticado por a ter mandado para o asilo, mas ele conhecia-me e sabia que eu gostava muito da minha mãe. Respondi, não sei ainda porquê, que ignorava até agora que fosse criticado por causa disso, mas que o asilo se me afigurara uma coisa muito natural, pois não tinha recursos para a manter comigo. "Além disso, acrescentei ainda, há muito tempo que não tínhamos nada que dizer um ao outro e que ela se aborrecia sozinha. 

 - "Sim, disse-me ele, e no asilo, ao menos, arranjam-se amigos". Depois, despediu-se. Queria dormir. A sua vida agora mudara completamente, e não sabia muito bem o que havia de fazer. Pela primeira vez desde que nos conhecíamos, estendeu-me a mão num gesto envergonhado e eu senti-lhe as escamas da pele. Teve um sorriso breve e, antes de sair, disse: "Espero que os cães não ladrem esta noite. Julgo sempre que é o meu".


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A Constatação do Absurdo

Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.


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Camus, Albert, 1913-1960.
              O Estrangeiro
Título Original L'Étranger
Tradução de António Quadros
Edição Livros do Brasil
Lisboa
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