sexta-feira, 1 de setembro de 2017

17.O Estrangeiro: A prisão - Albert Camus

Albert Camus


SEGUNDA PARTE


Capítulo 2


17. Logo a seguir à minha prisão



 HÁ COISAS DE QUE PREFIRO NÃO FALAR. Quando entrei para a prisão, percebi logo ao fim de poucos dias que não gostaria de falar dessa parte da minha vida. Mais tarde, deixei de atribuir importância a essas repugnâncias. Na realidade, nos primeiros dias não estava verdadeiramente na prisão: esperava vagamente que surgisse qualquer acontecimento novo. Foi apenas depois da primeira e última visita de Maria que tudo principiou. 

 A partir do dia em que recebi a carta dela (dizia que não a deixavam vir visitar-me, pois não era minha mulher), a partir desse dia senti que a minha casa era a minha cela, e que a vida parava aí. No dia em que me prenderam, fecharam-me primeiro num quarto onde já havia muitos detidos, a maioria deles Árabes. Ao verem-me, começaram a rir. Depois perguntaram-me o que é que eu tinha feito. Disse que tinha morto um Árabe e eles calaram-se todos. Mas uns momentos depois, caiu a noite. Os Árabes explicaram-me como devia arranjar a enxerga onde me havia de deitar. Enrolando uma das extremidades, improvisava-se um travesseiro. Durante toda a noite, passearam-me piolhos pela cara. Alguns dias depois, isolaram-me numa cela, onde me deitava numa cama de madeira. Dispunha de uma bacia de ferro. A prisão ficava na parte de cima da cidade e, da minha pequena janela, podia ver o mar. Foi num dia em que estava agarrado às grades, a cara voltada para a luz, que um guarda entrou, dizendo-me que tinha uma visita. Pensei que era Maria. Era ela, de fato. 

 Atravessei um corredor comprido, depois umas escadas e, para acabar, outro corredor. Entrei numa sala muito grande, iluminada por uma vasta janela. A sala era dividida em três partes por dois gradeamentos que a cortavam no comprimento. Entre os dois gradeamentos havia um espaço de oito a dez metros que separava os visitantes dos prisioneiros. Vi que Maria estava em frente de mim, com o seu vestido às riscas e a sua cara queimada pelo sol. Do meu lado havia uma dúzia de presos, quase todos Árabes. Maria estava rodeada de Mouros, entre duas visitantes, uma velhinha de beiços cerrados, vestida de preto e uma mulher gorda, em cabelo, que falava muito alto, com grande abundância de gestos. Por causa da distância entre os gradeamentos, os visitantes e os presos viam-se obrigados a falar quase aos gritos. Quando entrei, o barulho das vozes, fazendo eco nas grandes paredes nuas da sala e a luz crua que corria do céu para os vidros e se refletia na sala, causaram-me uma espécie de vertigem. A minha cela era mais calma e mais sombria. Precisei de alguns segundos para me adaptar. Acabei, no entanto, por ver com nitidez cada cara, como se se recortasse no dia claro. Observei que havia um guarda sentado na extremidade do corredor, entre os dois gradeamentos. A maioria dos prisioneiros árabes, assim como as suas famílias, estavam de cócoras frente a frente. Estes não gritavam. Apesar do tumulto que ali reinava, conseguiam entender-se, falando em voz baixa. Este murmúrio surdo, vindo de mais baixo, formava como que um contínuo sublinhado das conversas que se cruzavam por cima das suas cabeças. Observei tudo isto muito depressa, e avancei para Maria. Colada ao gradeamento, sorria-me com quantas forças tinha. Estava muito bonita, mas não fui capaz de lho dizer. "Então?", disse ela em voz alta. "Então, aqui estou. - Estás bem, tens tudo o que precisas? - Sim, tenho". 

 Calamo-nos e Maria continuava a sorrir. A mulher gorda berrava com o meu vizinho, o marido possivelmente, um tipo alto e loiro, com um olhar franco. Era o prosseguimento de uma conversa já iniciada. 

 "A Joana não quis aceitar, gritava ela. "Sim, sim", dizia o homem. "Disse que tu o irias buscar outra vez quando saísses, mas ela não quis aceitar". 

 Maria gritou por sua vez que o Raimundo me mandava um abraço e eu disse: "Obrigado". Mas a minha voz foi abafada pela do meu vizinho, que perguntou "que tal ia ele". A mulher riu-se, dizendo "que nunca se sentira tão bem. O meu vizinho da esquerda, um rapazinho de mãos muito finas, não dizia nada. Reparei que estava em frente da velhinha e que os dois se olhavam intensamente. Mas não tive tempo de os observar mais detidamente, pois Maria me estava a dizer que era preciso ter esperança. Disse: "Sim". Ao mesmo tempo olhava-a e sentia vontade de lhe apertar o ombro por cima do vestido. Sentia vontade desse tecido delicado e, fora isso, não sabia muito bem em que é que havia de ter esperança. Mas era isso, sem dúvida, o que Maria queria dizer, pois continuava a sorrir. Via apenas o brilho dos seus dentes e as pequenas rugas junto aos seus olhos. Voltou a gritar: "Vais sair depressa e depois, casamo-nos!" Respondi: "Achas que sim?", mas era sobretudo para dizer alguma coisa. Redarguiu então muito depressa e sempre em voz altíssima que sim,.que eu seria absolvido, que voltaríamos a tomar banhos de mar. Mas outra mulher gritava mesmo ao lado de nós, dizendo que deixara o cesto à porta. Enumerava tudo o que tinha dentro do cesto. Era preciso verificar, pois tudo que lá havia dentro era muito caro. O meu outro vizinho e a mãe continuavam a fitar-se.

 O murmúrio dos Árabes também continuava a ouvir-se, abaixo de nós. Lá fora, a luz parecia inchar-se de encontro à janela. Correu por todas as caras, como um sumo novo. 

 Não me sentia muito bem e gostaria de me ir embora. O barulho incomodava-me. Mas por outro lado, queria gozar da presença de Maria. Não sei quanto tempo passou. Maria falou-me do seu trabalho, sem parar de sorrir. O murmúrio, os gritos, as conversas entrecruzavam-se. A única ilha de silêncio estava ao meu lado, nas pessoas do rapazinho e da mãe, que olhavam um para o outro. Pouco a pouco, os Árabes foram saindo: Logo que o primeiro saiu, quase todos se calaram. 

 A velhinha aproximou-se das grades e, ao mesmo tempo, um guarda fez sinal ao filho. Este disse: "Adeus, mãe", e ela passou a mão por entre as grades para lhe fazer uma pequena carícia, lenta e prolongada. A velhinha saiu, e entrou um homem de chapéu na mão, que lhe tomou o lugar. Introduziram um novo prisioneiro e estes começaram a falar animadamente, mas a meia voz, porque a sala estava agora silenciosa. Vieram buscar o meu vizinho da direita e a mulher disse-lhe sem baixar de tom, como se não houvesse notado que já não era preciso gritar: "Trata-te bem e toma cuidado". Depois chegou a minha vez. Maria atirou-me um beijo de longe. Voltei-me antes de sair. Estava imóvel, a cara esmagada contra o gradeamento, com o mesmo sorriso forçado e crispado. 

 Foi pouco depois que ela me escreveu. E foi a partir desse momento que começaram as coisas de que nunca gostei de falar. De todos os modos, não vale a pena exagerar, e o certo é que me custou menos do que a muitos outros. No início da minha detenção, no entanto, o mais duro, foi virem-me à cabeça pensamentos de homem livre. Por exemplo, sentia de repente desejo de estar numa praia e de correr para o mar. Imaginando o barulho das primeiras ondas sob as plantas dos pés, a entrada do corpo na água, a libertação que era para mim o banho de mar, sentia de repente até que ponto as paredes da prisão me cercavam. Mas isto durou apenas alguns meses. Depois, passei a ter unicamente pensamentos de prisioneiro. Aguardava o passeio quotidiano no pátio ou então a visita do advogado. No resto do tempo, passava menos mal.

 Nessa altura pensei muitas vezes que, se me obrigassem a viver dentro de um tronco seco de árvore, sem outra ocupação, além de olhar a flor do céu por cima da minha cabeça, ter-me-ia habituado pouco a pouco. Observaria a passagem das aves ou os encontros entre as nuvens, tal como aqui observava as extraordinárias gravatas do advogado e como, num outro mundo, esperava até sábado para apertar nos meus braços o corpo de Maria. Ora a verdade, afinal de contas, é que eu não estava dentro de um tronco de árvore. Havia pessoas mais infelizes do que eu. Acabamos por nos habituar a tudo, gostava a minha mãe de dizer.. 

 Geralmente eu não ia tão longe, aliás. Os primeiros meses foram difíceis. Mas justamente o esforço que fui obrigado a fazer ajudou-me a passá-los. Atormentava-me, por exemplo, o desejo de uma mulher. Era natural, eu era um rapaz novo. Não pensava especialmente em Maria. Mas pensava tanto numa mulher, nas mulheres, em todas as que tinha conhecido um dia, em todas as circunstâncias em que as amara, - que a cela ficava cheia de todas essas caras femininas e se povoava com todos os meus desejos. Isto desequilibrava-me, de certo modo. Mas por outro lado, fazia passar o tempo. Acabara por conquistar a simpatia do guarda que, à hora das refeições, acompanhava o moço da cozinha. O primeiro que me falou de mulheres, foi ele. Disse que era a primeira coisa de que os outros se queixavam. Redargui que era como os outros e que achava injusto este tratamento. "Mas é precisamente para isso, disse ele, que os prendem. - Para isso? - Pois claro, a liberdade é isso mesmo. A vocês, privam-nos da liberdade". Nunca me lembrara de semelhante coisa. Aprovei-o: "É verdade, disse eu, onde estaria então o castigo? - Sim, Vê-se que você compreende as coisas. Os outros não compreendem. Mas acabam por resolver o problema de qualquer maneira". O guarda foi-se embora. No dia seguinte, eu era como os outros. Houve também o caso dos cigarros. Quando entrei para a prisão, tiraram-me o cinto, os atacadores dos sapatos, a gravata e tudo quanto trazia nas algibeiras, especialmente os cigarros. Uma vez na minha cela, pedi que os devolvessem. Mas responderam-me que era proibido.

 Os primeiros dias foram terríveis. Foi talvez isso o que mais me abateu. Chupava pedacinhos de madeira, que arrancava das tábuas da cama. Uma náusea permanente acompanhava-me durante o dia inteiro. Não percebia por que razão me privavam de coisas inocentes como os cigarros, que não faziam mal a ninguém. Mais tarde, compreendi que também pertenciam ao castigo. Mas nesse momento, habituara-me já a deixar de fumar e deixara de ser um castigo. 

 Aparte estes aborrecimentos, não me sentia muito infeliz. Todo o problema, repito-o, estava em matar o tempo. Por último, acabei por já não me massar, a partir do instante em que aprendi a recordar. Punha-me às vezes a pensar no meu quarto e, em imaginação, partia de um canto e dava a volta ao quarto, enumerando mentalmente tudo o que encontrava pelo caminho. Ao princípio, isto durava pouco. Mas, cada vez que recomeçava, ia durando mais, pois lembrava-me de cada móvel e, para cada móvel, de cada objeto que lá havia e, para cada objeto, de todos os pormenores e, para os próprios pormenores, de uma incrustação, de uma racha, de um bordo quebrado, da cor que tinham, ou da qualidade de que eram feitos. Tentava ao mesmo tempo não perder o fio a este inventário e fazer uma enumeração completa. De tal forma que, ao fim de algumas semanas, passava horas, só a catalogar tudo o que havia no meu quarto. Assim, quanto mais pensava, mais coisas esquecidas ia tirando da memória. Compreendi então que um homem que houvesse vivido um único dia, poderia sem custo passar cem anos numa prisão. Teria recordações suficientes. De certo modo, isto era uma vantagem. 

 Havia também o sono. No começo dormia mal de noite e de dia, nunca. Pouco a pouco, as noites melhoraram e consegui também dormir de dia. Posso dizer que, nos últimos meses, dormia dezasseis a dezoito horas por dia. Restavam-me seis horas a matar, com as refeições, as necessidades naturais, as recordações e a história do Tchecoslovaco. 

 Entre a enxerga e as tábuas da cama, eu encontrara, com efeito, um velho bocado de jornal, amarelecido e transparente, quase colado ao pano. Relatava um acontecimento cujo início faltava, mas que devia ter sucedido na Tchecoslováquia. Um homem partira de uma aldeia para fazer fortuna. Ao fim de vinte e cinco anos, rico, regressara casado e com um filho. A mãe dele, juntamente com a irmã, tinham uma estalagem na aldeia. Para lhes fazer uma surpresa, deixara a mulher e o filho noutra estalagem e fora visitar a mãe, que não o reconheceu. Por brincadeira, tivera a ideia de se instalar num quarto como hóspede. Mostrara o dinheiro que trazia. De noite, a mãe e a irmã tinham-no assassinado à martelada e atirado o corpo para o rio. No dia seguinte de manhã, a mulher do desgraçado viera à estalagem e revelara, sem saber, a identidade do viajante. A mãe enforcara-se. A irmã atirara-se a um poço. Devo ter lido esta história milhares de vezes. Por um lado, era inverosímil. Por outro lado, era natural. De todos os modos, achava que o viajante merecera até certo ponto a sua sorte e que nunca se deve brincar com estas coisas. 

 E assim, com as horas de sono, as recordações, a leitura do meu jornal e a alternância da luz e da sombra, o tempo foi passando. 

 Tinha lido que na prisão se perde a noção do tempo. Mas para mim, isto não fazia sentido. Não compreendera ainda até que ponto os dias podiam ser ao mesmo tempo curtos e longos. Longos para viver, sem dúvida, mas de tal modo distendidos, que acabavam por se sobrepor uns aos outros e por perder o nome. As palavras ontem ou amanhã eram as únicas que conservavam sentido. 

 Quando, um dia, o guarda me disse que estava preso há cinco meses, acreditei, mas não compreendi. Para mim era sempre o mesmo dia, que caía na minha cela, e era sempre a mesma tarefa, que eu perseguia sem cessar. Nesse dia, depois do guarda ter saído, olhei-me ao espelho na bacia de esmalte. Pareceu-me que a minha cara ficava séria, mesmo quando tentava sorrir. Agitei-a diante de mim. Sorri, mas a imagem conservou o mesmo ar severo e triste. O dia acabava e era a hora de que não quero falar, a hora sem nome, em que os ruídos da noite subiam de todos os andares da prisão, num cortejo de silêncios. Aproximei-me da claraboia e, à última luz do fim da tarde, contemplei uma vez mais a minha imagem. Continuava séria, o que não era de admirar, pois nesse instante, também eu estava sério. Mas ao mesmo tempo, e pela primeira vez, ouvi distintamente o som da minha voz.

 Reconhecia-a por aquela que ressoava há tantos dias aos meus ouvidos e compreendi que, durante este tempo, falara sozinho em voz alta. Lembrei-me então do que dizia a enfermeira no enterro da mãe. Não, não havia saída possível, e ninguém, ninguém pode imaginar o que são as noites nas prisões.




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A Constatação do Absurdo

Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.


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Camus, Albert, 1913-1960.
              O Estrangeiro
Título Original L'Étranger
Tradução de António Quadros
Edição Livros do Brasil
Lisboa
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