quarta-feira, 13 de setembro de 2017

37. O Livro dos Abraços - Fuga - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


37. O Livro dos Abraços




Fuga 



Dia desses, Maité Pinero, recém-chegada de El Salvador, trouxe a notícia: — Morreu

Um avião inimigo foi mais rápido que ele. Quando o ataque terminou, seus companheiros o enterraram. Foi enterrado ao anoitecer. Todos de costas, uns para os outros. Ninguém mostrava a cara. 

Fuga tinha chegado três ou quatro anos antes, e tinha chegado para ficar. Chegou ao amanhecer, nos dias da grande chuva, e tinha se plantado no meio do acampamento, debaixo da chuva, e a chuva o metralhava e ele continuava parado. 

E continuava ah quando o dilúvio acabou: um burro, ou a estátua de um burro, já muito golpeado e troncho, que com seu único olho olhava de maneira impassível e para sempre. Os guerrilheiros o expulsaram. Ele foi insultado, chutado, empurrado; não adiantou nada. 

E assim ficou. Foi chamado de Fuga, porque era o mais veloz na hora de escapar, no escarcéu dos bombardeios. Foi mandado para longe, em difíceis missões de leva-e-traz, e voltava sempre. Os rapazes se mexiam noite e dia, de um lado para outro, através das montanhas queimadas de San Miguel, e ele os encontrava sempre. E quando o exército os cercava, Fuga dava um jeito para passar, sem dar a menor bola, pelos campos minados, e sem dar a menor bola atravessava as fileiras com seus alforjes carregados de café e tortillas e cigarros e balas. 

Não vá nos trair, Fuga, — pediam a ele. 

E ele os olhava, sem pestanejar, com seu único olho. 

O burrinho conhecia tudo. Conhecia as bases de operações e os esconderijos de armas e víveres, as trilhas e os atalhos, o cruzamento escolhido para a próxima emboscada; e também conhecia os amigos da guerrilha em cada uma das aldeias. E mais, muito mais, todo o resto Fuga conhecia: ele era dono das confidencias. Porque o burrinho sabia escutar as mágoas e as dúvidas e as bandidagens secretas de cada guerrilheiro; e até os machos mais machos, homens de ferro calado, se permitiam chorar com ele. 




Celebração da amizade/1

Nos subúrbios de Havana, chamam o amigo de minha terra ou meu sangue. Em Caracas, o amigo é minha pada ou minha chave: pada, por causa de padaria, a fonte do bom pão para as fomes da alma; e chave por causa de... 


Chave, por causa de chave — me conta Mario Benedetti. 

E me conta que quando morava em Buenos Aires, nos tempos do horror, ele usava cinco chaves alheias em seu chaveiro: cinco chaves, de cinco casas, de cinco amigos: as chaves que o salvaram.




Celebração da amizade/2


Juan Gelman me contou que uma senhora brigou a guarda-chuvadas, numa avenida de Paris, contra uma brigada inteira de funcionários municipais. Os funcionários estavam caçando pombos quando ela emergiu de um incrível Ford bigode, um carro de museu, daqueles que funcionavam à manivela; e brandindo seu guarda-chuva, lançou-se ao ataque. 

Agitando os braços abriu caminho, e seu guarda-chuva justiceiro arrebentou as redes onde os pombos tinham sido aprisionados. Então, enquanto os pombos fugiam em alvoroço branco, a senhora avançou a guarda-chuvadas contra os funcionários. 

Os funcionários só atinaram em se proteger, como puderam, com os braços, e balbuciavam protestos que ela não ouvia: mais respeito, minha senhora, faça-me o favor, estamos trabalhando, são ordens superiores, senhora, por que não vai bater no prefeito?, Senhora, que bicho picou a senhora?, esta mulher endoidou... 

Quando a indignada senhora cansou o braço, e apoiou-se numa parede para tomar fôlego, os funcionários exigiram uma explicação. 

Depois de um longo silêncio, ela disse: — Meu filho morreu.

Os funcionários disseram que lamentavam muito, mas que eles não tinham culpa. Também disseram que naquela manhã tinham muito o que fazer, a senhora compreende... 

Meu filho morreu — repetiu ela. 

E os funcionários: sim, claro, mas que eles estavam ganhando a vida, que existem milhões de pombos soltos por Paris, que os pombos são a ruína desta cidade... 

Cretinos — fulminou a senhora. 

E longe dos funcionários, longe de tudo, disse: 

Meu filho morreu e se transformou em pombo

Os funcionários calaram e ficaram pensando um tempão. Finalmente, apontando os pombos que andavam pelos céus e telhados e calçadas, propuseram: 

Senhora: por que não leva seu filho embora e deixa a gente trabalhar? 

Ela ajeitou o chapéu preto: 

Ah!, não! De jeito nenhum! 

Olhou através dos funcionários, como se fossem de vidro, e disse muito serena: 

Eu não sei qual dos pombos é meu filho. E se soubesse, também não ia levá-lo embora. Que direito tenho eu de separá-lo de seus amigos?





Gelman

O poeta Juan Gelman escreve erguendo-se sobre suas próprias ruínas, sobre seu pó e seu lixo. Os militares argentinos, cujas atrocidades humanas teriam provocado em Hitler um irremediável complexo de inferioridade, golpearam-no onde mais dói. Em 1976, sequestraram seus filhos. Os filhos foram levados no lugar de Gelman. A filha, Nora, foi torturada e solta. O filho, Marcelo, e sua companheira, que estava grávida, foram assassinados e desaparecidos. 

No lugar dele: levaram os filhos porque ele não estava. Como se faz para sobreviver a uma tragédia destas? Digo: para sobreviver sem que a alma se apague. Muitas vezes me perguntei isso, nesses anos todos. Muitas vezes imaginei essa horrível sensação de vida usurpada, esse pesadelo do pai que sente que está roubando do filho o ar que respira, o pai que no meio da noite desperta banhado em suor: Eu não te matei, eu não te matei. E me perguntei: se Deus existe, por que fica de fora? Não será Deus ateu?





A arte e o tempo

Quem são os meus contemporâneos? — pergunta-se Juan Gelman. Juan diz que às vezes encontra homens que têm cheiro de medo, em Buenos Aires, em Paris ou em qualquer lugar, e sente que estes homens não são seus contemporâneos. Mas existe um chinês que há milhares de anos escreveu um poema, sobre um pastor de cabras que está longe, muito longe da mulher amada e mesmo assim pode escutar, no meio da noite, no meio da neve, o rumor do pente em seus cabelos; e lendo esse poema remoto, Juan comprova que sim, que eles sim: que esse poeta, esse pastor e essa mulher são seus contemporâneos.





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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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38. O Livro dos Abraços - Profissão de fé - Eduardo Galeano

1.O Livro dos Abraços - O mundo - Eduardo Galeano



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