Fiódor Dostoiévski
19.
1 de julho
Querido Makar Alexeievitch:
Loucura, querida Bárbara; tudo isso não passa de uma loucura, uma verdadeira loucura! Quando se abandona a si mesma, vêm-lhe à ideia as coisas mais disparatadas! Tão depressa pensa numa coisa, como já pensa noutra! Mas que lhe falta na nossa companhia, não me dirá? Queremos-lhe muito e a Bárbara corresponde ao nosso afeto, vivendo todos contentes e na melhor harmonia... Que mais deseja? Porquê essa teimosia em ir viver com gente estranha? Sabe o que significa «gente estranha»? Se o ignora, pergunte a mim, que eu conheço muito bem os estranhos, minha querida; conheço-os demasiado; posso dizer-lhe como são. Já comi o pão deles. Todo o ente estranho é mau, muito mau; a sua maldade é tal, que o nosso coração não pode conter-se perante as censuras, recriminações e olhares de desprezo com que no-lo martirizam. Ao menos, na nossa companhia, leva uma vida calma e descuidada, como o pássaro no ninho. Como é possível que agora, do pé para a mão, resolva deixar-nos? Que será de mim se levar avante o seu intento? Pensa que não preciso de si? Está convencida de que me não serve de nada? Não, meu amor; reconsidere bem, e depois veja se me é útil ou não. Saiba que me é utilíssima! Tem sobre mim uma influência tão benéfica! Por exemplo, se estiver maldisposto e me lembrar de si, logo o mau humor desaparece... Escrevo-lhe uma carta na qual me abro por completo, e recebo a seguir uma resposta sua, pormenorizada. De vez em quando, compro-lhe um vestido, e se você precisa, por acaso, de que lhe traga qualquer coisa, eu vou logo procurar seja o que for... E, então, não me é útil? Que poderei fazer sem a Bárbara, com a idade que tenho? Para que servirei eu?
19.
1 de julho
Querido Makar Alexeievitch:
É possível, meu amor, que ainda não tenha pensado nisto; mas pense e verá que não posso prescindir de si. Afiz-me à sua companhia, querida Bárbara. Que fim seria o meu longe de si? Atirar-me-ia ao Neva, acabando por uma vez. É que, não a tendo ao pé de mim, não tenho nada a fazer no mundo. Parece, querida, que me estou já a ver no carro fúnebre que me há de levar ao cemitério de Volkov; uma velha que, por acaso, passa, segue o ataúde; atiram-me à cova, cobrem-me de terra e depois vão-se embora, deixando-me sozinho. Que injustiça sua, minha querida! Cometeria um grande pecado. Digo-lhe isto com a máxima sinceridade, creia!
Devolvo-lhe o livro que me emprestou, e devo dizer-lhe que nunca na minha vida li uma obra tão excelente. Chego a perguntar a mim próprio como pude viver até aqui como um mocho. Deus me perdoe! Em que tenho empregado os meus dias? De que planeta terei eu caído? É que não sei nada de nada; sou o que se chama um zero. Confesso-lhe com toda a franqueza, minha boa amiga, que não tenho a mais rudimentar cultura. Pouco, pouquíssimo, tenho lido até esta idade, isto para não dizer «nada». Li O Retrato do Homem, que é um bom livro, e O Menino que Tocava Várias Músicas em Campainhas e A cegonha de Ivik. E é tudo. Mas agora li o seu livrinho O Inspetor; e é caso para pensar, querida, como se pode viver no mundo e não saber que se tem ao alcance da mão uma obra, na qual se descreve uma vida completa, com todas as minúcias, como se fosse uma pintura. E soube muitas coisas com que nunca sonhara. É a sensação que se experimenta ao principiar a leitura de um livro assim; mas depois, pouco a pouco, à medida que se vai lendo, vamos descobrindo novas coisas, acabando por as compreender e as ver com toda a clareza. Quer saber outra razão que me levou a gostar tanto de seu livro? É que há muitas obras que, por mais famosos que os seus autores sejam, lemo-las e voltamos a lê-las e ficamos atarantados, sem compreendermos absolutamente nada. Estão tão bem escritas e encerram pensamentos tão subtis, que não as podemos entender. Eu, por exemplo, que sou rude por natureza, a nativitate, não posso ter uma obra demasiado profunda. Mas a que me emprestou, lemo-la e temos a impressão de termos sido nós quem a escreveu, dir-se-ia que brotou cá de dentro, do coração. Sim, talvez assim seja; é como se pegássemos no coração e o virássemos do avesso, diante de toda a gente, e depois nos puséssemos a descrevê-lo minuciosamente. É assim mesmo, meu amor! De resto, é uma coisa tão simples, meu Deus! Oh, se é! Eu próprio não teria a mínima dificuldade em escrever assim, pode crer. E porquê? Porque eu sinto exatamente as mesmas coisas que esse livrinho diz. Já me encontrei também em situação análoga, por exemplo, à do pobre Sansão Virin. E quantos Sansão Virin não há por esse mundo, pobres e bons como aquele! E a verdade ressalta de todas estas páginas! Ao lê-las, quase me saltavam as lágrimas dos olhos, minha querida. Coitado! Embriagava-se, até perder os sentidos, quando a desgraça o perseguiu, e passava o dia inteiro a dormir deitado numa pele de carneiro! Para afastar as penas, bebia ponche; contudo, quando se recordava da sua pobre ovelha tresmalhada, da sua filha Dunacha, chorava amargamente, enxugando, com o sujo forro de pele, as lágrimas que lhe corriam pelas faces!
Devolvo-lhe o livro que me emprestou, e devo dizer-lhe que nunca na minha vida li uma obra tão excelente. Chego a perguntar a mim próprio como pude viver até aqui como um mocho. Deus me perdoe! Em que tenho empregado os meus dias? De que planeta terei eu caído? É que não sei nada de nada; sou o que se chama um zero. Confesso-lhe com toda a franqueza, minha boa amiga, que não tenho a mais rudimentar cultura. Pouco, pouquíssimo, tenho lido até esta idade, isto para não dizer «nada». Li O Retrato do Homem, que é um bom livro, e O Menino que Tocava Várias Músicas em Campainhas e A cegonha de Ivik. E é tudo. Mas agora li o seu livrinho O Inspetor; e é caso para pensar, querida, como se pode viver no mundo e não saber que se tem ao alcance da mão uma obra, na qual se descreve uma vida completa, com todas as minúcias, como se fosse uma pintura. E soube muitas coisas com que nunca sonhara. É a sensação que se experimenta ao principiar a leitura de um livro assim; mas depois, pouco a pouco, à medida que se vai lendo, vamos descobrindo novas coisas, acabando por as compreender e as ver com toda a clareza. Quer saber outra razão que me levou a gostar tanto de seu livro? É que há muitas obras que, por mais famosos que os seus autores sejam, lemo-las e voltamos a lê-las e ficamos atarantados, sem compreendermos absolutamente nada. Estão tão bem escritas e encerram pensamentos tão subtis, que não as podemos entender. Eu, por exemplo, que sou rude por natureza, a nativitate, não posso ter uma obra demasiado profunda. Mas a que me emprestou, lemo-la e temos a impressão de termos sido nós quem a escreveu, dir-se-ia que brotou cá de dentro, do coração. Sim, talvez assim seja; é como se pegássemos no coração e o virássemos do avesso, diante de toda a gente, e depois nos puséssemos a descrevê-lo minuciosamente. É assim mesmo, meu amor! De resto, é uma coisa tão simples, meu Deus! Oh, se é! Eu próprio não teria a mínima dificuldade em escrever assim, pode crer. E porquê? Porque eu sinto exatamente as mesmas coisas que esse livrinho diz. Já me encontrei também em situação análoga, por exemplo, à do pobre Sansão Virin. E quantos Sansão Virin não há por esse mundo, pobres e bons como aquele! E a verdade ressalta de todas estas páginas! Ao lê-las, quase me saltavam as lágrimas dos olhos, minha querida. Coitado! Embriagava-se, até perder os sentidos, quando a desgraça o perseguiu, e passava o dia inteiro a dormir deitado numa pele de carneiro! Para afastar as penas, bebia ponche; contudo, quando se recordava da sua pobre ovelha tresmalhada, da sua filha Dunacha, chorava amargamente, enxugando, com o sujo forro de pele, as lágrimas que lhe corriam pelas faces!
Sim; isso é que se chama uma pintura natural! Leia-o outra vez, e verá que é assim; tão verdadeiro como a própria vida. É real! Eu próprio o senti... Tudo isto existe, e cerca-nos por todos os lados. Aí temos a Teresa ou, para não irmos mais longe, temos este pobre, que é um perfeito Sansão Virin, apenas com outro nome: chama-se, por acaso, Gorchkov . É uma coisa que qualquer de nós está sujeito a experimentar: você mesmo, querida, ou, em especial, eu. Até um conde que vive na Perspetiva Nevski ou na rua de Nevakai, pode achar-se um dia em idêntica situação, apenas com a diferença de que, exteriormente, se conduziria de modo diverso — por fora tudo é diferente nele —; no entanto, podem suceder-lhe as mesmas coisas que a nós.
Nesse livro, meu amor, pode ver o que se chama a vida. Mas quanto a afastar-se de nós e abandonar-nos à nossa sorte, nem é bom pensar em tal! Não pode avaliar, nem mesmo superficialmente, querida Bárbara, o prejuízo que com isso me causaria. Seria um prejuízo irreparável para si e para mim. Por amor de Deus, afaste de si tais pensamentos, minha boa amiguinha, e não me torture inutilmente! Como poderia você, meu pobre pardalito sem asas, procurar o alimento, não se perverter e defender-se das ciladas? Pense melhor no caso, deixe estar as coisas como estão, não dê ouvidos a conselhos néscios e leia outra vez esse livro; far-lhe-á bem, acredite.
Troquei impressões com Ratazaiev acerca de O Inspetor; diz ele que isso é tudo já muito antiquado, que agora só se publicam livros com ilustrações e ornatos de várias espécies. Falou ainda em muitas outras coisas, que eu não sei bem explicar, porque não compreendi. Por fim, acabou por declarar que Pouchkine é um grande poeta e que cantou a Sagrada Rússia. Sim, está bem. Volte a ler o livro com atenção; siga o meu conselho e faça feliz este pobre velho, com a sua obediência. Deus recompensá-la-á, minha querida, não duvide!
Seu fiel amigo
Makar Dievuchkin
1 de julho
Meu querido Makar Alexeievitch:
Fédora trouxe-me hoje os quinze rublos do tapete. A pobre mulher ficou tão contente quando lhe dei três! Escrevo-lhe à pressa, porque estou a fazer o seu colete. O tecido, muito bom, é amarelo, com umas florinhas. Mando-lhe um livro de contos, de que apenas li alguns. Aconselho-lhe a leitura do que tem por título A Capa.
Makar Dievuchkin
1 de julho
Meu querido Makar Alexeievitch:
Fédora trouxe-me hoje os quinze rublos do tapete. A pobre mulher ficou tão contente quando lhe dei três! Escrevo-lhe à pressa, porque estou a fazer o seu colete. O tecido, muito bom, é amarelo, com umas florinhas. Mando-lhe um livro de contos, de que apenas li alguns. Aconselho-lhe a leitura do que tem por título A Capa.
Prometeu levar-me uma noite ao teatro. Mas é capaz de ficar muito caro. Só se formos para a galeria. Há tanto tempo que não vou ao teatro, que nem me lembro de quando foi a última vez! Receio, porém, que esse divertimento esteja fora das suas possibilidades. A Fédora abana a cabeça e diz que o senhor está a gastar mais do que pode, o que eu também tenho notado. Só comigo, o que o senhor já gastou! Tenha cuidado, meu amigo, não vá suceder-lhe qualquer infortúnio. A Fédora contou-me, se não me engano, que a hospedeira não anda lá muito bem-disposta consigo por o senhor se ter atrasado nos pagamentos, o que me traz bastante preocupada.
Bem; adeus por agora, pois preciso de tratar de outra coisa: pôr uma fita no meu chapéu.
P. S. — Se formos ao teatro, quero levar o meu chapéu novo e a mantilha preta. Acha que ficarão bem?
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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.
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Fiódor Dostoiévski
GENTE POBRE
Título original: Bednye Lyudi (1846)
Tradução anônima 2014 © Centaur Editions
centaur.editions@gmail.com
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Leia também:
Gente Pobre - 18. Onde gosto mais de viver, é onde já me encontro - Dostoiévski
Gente Pobre - 01. Ontem fui feliz, excessivamente feliz - Dostoievski
P. S. — Se formos ao teatro, quero levar o meu chapéu novo e a mantilha preta. Acha que ficarão bem?
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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.
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Fiódor Dostoiévski
GENTE POBRE
Título original: Bednye Lyudi (1846)
Tradução anônima 2014 © Centaur Editions
centaur.editions@gmail.com
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Leia também:
Gente Pobre - 18. Onde gosto mais de viver, é onde já me encontro - Dostoiévski
Gente Pobre - 01. Ontem fui feliz, excessivamente feliz - Dostoievski
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