sexta-feira, 12 de outubro de 2018

28. O Guardador de Rebanhos - XLVI - Deste Modo ou Daquele Modo - Alberto Caeiro

Fernando Pessoa


Alberto Caeiro
(heterônimo de Fernando Pessoa)




XLVI - Deste Modo ou Daquele Modo


Deste modo ou daquele modo. 
Conforme calha ou não calha. 
Podendo às vezes dizer o que penso, 
E outras vezes dizendo-o mal e com misturas, 
Vou escrevendo os meus versos sem querer, 
Como se escrever não fosse uma cousa feita de gestos, 
Como se escrever fosse uma cousa que me acontecesse 
Como dar-me o sol de fora.

Procuro dizer o que sinto 
Sem pensar em que o sinto. 
Procuro encostar as palavras à ideia 
E não precisar dum corredor 
Do pensamento para as palavras 

Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir. 
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado 
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar. 

Procuro despir-me do que aprendi, 
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, 
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, 
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro, 
Mas um animal humano que a Natureza produziu. 

E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem, 
Mas como quem sente a Natureza, e mais nada. 
E assim escrevo, ora bem ora mal, 
Ora acertando com o que quero dizer ora errando, 
Caindo aqui, levantando-me acolá, 
Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso. 

Ainda assim, sou alguém. 
Sou o Descobridor da Natureza. 
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras. 
Trago ao Universo um novo Universo 
Porque trago ao Universo ele-próprio. 

Isto sinto e isto escrevo 
Perfeitamente sabedor e sem que não veja 
Que são cinco horas do amanhecer 
E que o sol, que ainda não mostrou a cabeça 
Por cima do muro do horizonte, 
Ainda assim já se lhe veem as pontas dos dedos 
Agarrando o cimo do muro 
Do horizonte cheio de montes baixos.





XLVII - Num Dia Excessivamente Nítido 


Num dia excessivamente nítido, 
Dia em que dava a vontade de ter trabalhado muito 
Para nele não trabalhar nada, 
Entrevi, como uma estrada por entre as árvores, 
O que talvez seja o Grande Segredo, 
Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam. 

Vi que não há Natureza, 
Que Natureza não existe, 
Que há montes, vales, planícies, 
Que há árvores, flores, ervas, 
Que há rios e pedras, 
Mas que não há um todo a que isso pertença, 
Que um conjunto real e verdadeiro 
É uma doença das nossas ideias. 

A Natureza é partes sem um todo. 
Isto é talvez o tal mistério de que falam. 

Foi isto o que sem pensar nem parar, 
Acertei que devia ser a verdade 
Que todos andam a achar e que não acham, 
E que só eu, porque a não fui achar, achei.







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O Guardador de Rebanhos
Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)
(Fonte: http://www.cfh.ufsc.br/~magno/guardador.htm)


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