sexta-feira, 26 de outubro de 2018

O Segundo Sexo - 29. Fatos e Mitos: a vida era então uma série ininterrupta de partos

Simone de Beauvoir



29. Fatos e Mitos


Segunda Parte
História

CAPITULO I


V




"a vida era então uma série ininterrupta de partos "




A DESPEITO DE TODAS essas dificuldades, a evolução do trabalho feminino prosseguiu. Em 1900, contavam-se ainda, na. França, 900 000 operárias trabalhando em domicílio que fabricavam roupas, objetos de couro e pele, coroas mortuárias, bolsas, adornos de miçangas, bijuterias; mas esse numero diminuiu consideravelmente. Em 1906, 42% das mulheres em idade de trabalhar (entre 18 e 60 anos) estavam empregadas na agricultura, na indústria, no comércio, nos bancos, nas companhias de seguros, nos escritórios e em profissões liberais. Esse movimento precipitou-se no mundo inteiro em virtude da crise de mão-de-obra de 14-18 e da última guerra mundial. A pequena e a média burguesia decidiram segui-lo e as mulheres invadiram também as profissões liberais. De acordo com um dos últimos recenseamentos de antes da última guerra, verifica-se que sobre a totalidade das mulheres de 18 a 60 anos trabalham, na França, cerca de 42%, na Finlândia 37%, na Alemanha 34,2%, na índia 27,7%, na Inglaterra 26,9%, na Holanda 19,2%, nos Estados Unidos 17,7%. Mas na França e na índia é por causa do trabalho rural que as cifras são tão elevadas. Excetuando-se as mulheres que trabalham nos campos, contavam-se, na França, em 1940, cerca de 500 000 chefes de estabelecimentos, um milhão de empregadas, dois milhões de operárias e um milhão e meio de trabalhadoras isoladas ou desempregadas. Entre as operárias há 650 000 domésticas; 1 200 000 trabalham nas indústrias de transformação, sendo 440 000 na indústria têxtil; 315 000 na confecção, 380 000 em domicílio como costureiras. No que concerne ao comércio, às profissões liberais, aos serviços públicos, França, Inglaterra e Estados Unidos encontram-se mais ou menos em pé de igualdade. 


Um dos problemas essenciais que se colocam a respeito da mulher é, já o vimos, a conciliação de seu papel de reprodutora com seu trabalho produtor. A razão profunda que, na origem da história, vota a mulher ao trabalho doméstico e a impede de participar da construção do mundo é sua escravização à função geradora. As fêmeas dos animais têm um ritmo do cio e das estações que assegura a economia de suas forças; ao contrário, entre a puberdade e a menopausa, a Natureza não limita a capacidade de gestação da mulher. Certas civilizações proíbem as uniões precoces; citam-se tribos de índios em que se exige que se assegure à mulher um intervalo de repouso de dois anos entre cada parto; mas, no conjunto, durante séculos, não se regulamentou a fecundidade feminina. Existem, desde a Antiguidade (1), práticas anticoncepcionais, destinadas em geral à mulher: poções, supositórios, tampões vaginais, mas que são segredos das prostitutas e dos médicos; talvez desse segredo tenham tido conhecimento as romanas da decadência, cuja esterilidade os satíricos exprobavam. Mas a Idade Média ignorou-as; até o século XVIII não se encontra vestígio disso. Para muitas mulheres, a vida era então uma série ininterrupta de partos; mesmo as mulheres de maus costumes pagavam suas licenças amorosas com numerosas maternidades. Em certas épocas, a humanidade sentiu muito a necessidade de reduzir a população, mas, ao mesmo tempo, as nações receavam enfraquecer-se. Nas épocas de crise e de miséria era retardando a idade de casamento para os celibatários que se realizava uma baixa do índice de nascimentos. A regra continuava a ser: casar cedo e ter tantos filhos quanto os pudesse engendrar a mulher; somente a mortalidade infantil diminuía o número de crianças vivas. Já no século XVII o Abade de Purê, em La Précieuse (1656), protesta contra a "hidropisia amorosa" a que as mulheres estão condenadas; e Mme de Sévigné recomenda à filha que evite engravidar-se com frequência. Mas é no século XVIII que a tendência malthusiana se desenvolve em França. A princípio, as classes abastadas, e depois o conjunto da população, consideraram razoável restringir o número de filhos de acordo com os recursos dos pais, e os processos anticoncepcionais principiam a introduzir-se nos costumes. Em 1778 o demógrafo Moreau escreve: "As mulheres ricas não são as únicas a encarar a propagação da espécie como uma bobagem dos velhos tempos; esses funestos segredos, desconhecidos dos demais animais, penetram nos campos; até nas aldeias engana-se a Natureza". A prática do coitus interruptus expande-se na burguesia a princípio e em seguida nas populações rurais e entre os operários; o preservativo, que já existia como produto antivenéreo, torna-se anticoncepcional e espalha-se por toda parte após a descoberta da vulcanização, por volta de 1840 (2). O birth-control é oficialmente autorizado nos países anglo-saxões e descobrem-se numerosos métodos de dissociar essas duas funções, antes inseparáveis: a sexual e a reprodutora. Os trabalhos da medicina vienense estabelecem com precisão o mecanismo da concepção, e as condições que lhe são favoráveis sugerem também os modos de evitá-la. Em França, a propaganda anticoncepcional e a venda de pessários, tampões vaginais etc. é proibida; nem por isso o birth-control se expande menos. 


(1) "A mais antiga menção conhecida das práticas anticoncepcionais seria um papiro egípcio do segundo milênio antes de nossa era e que recomenda a aplicação vaginal de uma estranha mistura composta de excrementos de crocodilo, mel, natro e uma substancia viscosa" (P. Ariès, Histoire des populations françaises). Os médicos persas da Idade Média conheciam trinta e uma receitas das quais somente nove se destinavam ao homem. Soranos, na época de Adriano, explica que no momento da ejaculação a mulher que não deseja filhos deve "reter a respiração, puxar um pouco o corpo para trás a fim de que o esperma não possa penetrar no os uteri, levantar-se imediatamente, acocorar-se e provocar espirros".
(2) "Por volta de 1930 uma firma norte-americana vendia vinte milhões de preservativos em um ano. Quinze manufaturas norte-americanas produziam um milhão e meio por dia" (P. Ariès).


Quanto ao aborto, em nenhum lugar é ele autorizado oficialmente pela lei. O direito romano não concedia proteção especial à vida embrionária; não se encarava o nasciturus como um ser humano e sim como parte do corpo materno. Partus antequam edatur muliens portio est vel viscerum (3). Na época da decadência, o aborto apresentava-se como prática normal e, quando o legislador quis incentivar os nascimentos, não ousou proibi-lo. Se a mulher recusava o filho contra a vontade do marido, este podia mandar puni-la; mas era a desobediência que constituía o delito. No conjunto da civilização oriental e greco-romana, o aborto era permitido por lei. 

Foi o cristianismo que, nesse ponto, revolucionou as ideias morais, dotando o embrião de uma alma; então o aborto 


(3) Antes de nascer, o filho é uma parcela da mãe, uma espécie de víscera.


tornou-se um crime contra o próprio feto. "Toda mulher que age de maneira a não engendrar todos os filhos que poderia, torna-se culpada de um número igual de homicídios, da mesma forma que aquela que procura ferir-se depois da concepção", diz Santo Agostinho. Em Bizâncio, o aborto só acarretava uma relegação temporária; entre os bárbaros que praticavam o infanticídio não era este censurável senão quando perpetrado por violência e contra a vontade da mãe: resgatavam-no pagando-o com sangue. Mas os primeiros concílios editam contra esse "homicídio" as mais severas penas, qualquer que seja a idade presumida do feto. Entretanto, uma questão se põe então, que se torna objeto de discussões infinitas: em que momento a alma penetra no corpo? Santo Tomás e a maioria dos autores fixaram a animação no quadragésimo dia para as crianças do sexo masculino e no octagésimo para as do sexo feminino; fez-se então uma distinção entre o feto animado e o feto inanimado. Durante a Idade Média, o livro penitencial declara: "Se uma mulher grávida faz perecer seu fruto antes de quarenta e cinco dias, sofre uma penitência de um ano. Se o fizer ao fim de sessenta, de três anos. Finalmente, se a criança já estiver com alma deverá a mulher ser tratada como homicida". Entretanto, o livro acrescenta: "Há uma grande diferença entre a mulher pobre que destrói o filho por causa da dificuldade que tem em nutri-lo e a que não tem outro fim senão esconder o crime de fornicação".

Em 1556, Henrique II publicou um edito célebre sobre a receptação da gravidez; sendo a simples receptação punida com a pena de morte, deduziu-se que com maior razão a pena devia ser aplicada às práticas abortivas. Na realidade era o infanticídio que o edito visava, mas nele se apoiaram para decretar a pena de morte contra os autores e cúmplices do aborto. A distinção entre feto com alma e feto sem alma desapareceu no século XVIII. No fim deste século, Beccaria, cuja influência foi considerável na França, fez a defesa da mulher que recusa o filho. O código de 1791 desculpa-a mas pune seus cúmplices com "20 anos de ferros". A ideia de que o aborto é um crime desaparece no século XIX: consideram-no antes um crime contra o Estado. A lei de 1810 proíbe-o absolutamente sob pena de reclusão e trabalhos forçados para a abortada e seus cúmplices. Na realidade, os médicos praticam-no sempre quando se trata de salvar a vida da mãe. E, exatamente, por ser a lei severa demais, os jurados deixam de aplicá-la em fins do século. Havia, apenas, um ínfimo número de prisões e 4/5 das acusadas eram absolvidas. Em 1923, nova lei prevê ainda trabalhos forçados para os cúmplices e autores da intervenção, mas pune a mulher somente com prisão e com multa; em 1939, novo decreto visa especialmente os técnicos; nenhum sursis lhes será mais concedido. Em 1941 o aborto foi decretado crime contra a segurança do Estado. Nos outros países é um delito sancionado com penas correcionais. Na Inglaterra, entretanto, é um crime de felony, punido com prisão ou trabalhos forçados. Em geral, códigos e tribunais têm muito mais indulgência para com a abortada do que para com seus cúmplices. Entretanto, a Igreja em nada modificou seu rigor. O código de direito canônico promulgado a 27 de março de 1917 declara: "Os que provocam o aborto, desde que conseguido o efeito, incorrem, sem exceção da mãe, em excomunhão lactae sententiae a cargo do bispo". Nenhum motivo pode ser alegado, nem mesmo o perigo de morte a que se exponha a mãe. Ainda há pouco, o papa declarou que entre a vida da mãe e a do filho cumpre sacrificar a primeira; efetivamente, sendo a mãe batizada, pode alcançar o céu — curiosamente o inferno nunca intervém nesses cálculos — ao passo que o feto fica votado ao limbo para sempre (4).

Foi somente durante curto período que se autorizou oficialmente o aborto na Alemanha, antes do nazismo, e na União Soviética antes de 1936. Mas, apesar da religião e das leis, ele ocupa, em todos os países, um lugar considerável. Na França, contam-se anualmente de 800 mil a um milhão — número equivalente ao dos nascimentos — sendo que dois terços das mulheres abortadas são casadas e já com um ou dois filhos. Apesar das resistências, dos preconceitos, das sobrevivências de uma moral obsoleta, viu-se, portanto, realizar-se a passagem de uma fecundidade livre a uma fecundidade dirigida pelo Estado ou pelos 


(4) Voltaremos à discussão desta atitude no segundo volume. Observemos tão-somente que os católicos estão longe de seguir a doutrina de Santo Agostinho ao pé da letra. O confessor murmura aos ouvidos da jovem noiva, nas vésperas do casamento, que tudo pode fazer com o marido desde que o coito se termine "como deve"; as praticas positivas do birth-control — inclusive o coitus interruptus — são proibidas; mas tem-se o direito de utilizar o calendário estabelecido pelos sexólogos vienenses e perpetrar o ato, cujo único objetivo admitido é o da geração, nos dias em que a concepção é impossível. Há mesmo diretores de consciência que comunicam esse calendário a suas ovelhas. Na realidade, há numerosas "mães cristãs" que só tem dois ou três filhos e, no entanto, não interromperam suas relações conjugais após seu último parto.

indivíduos. Os progressos da obstetrícia diminuíram consideravelmente os perigos do parto; os sofrimentos tendem a desaparecer; nestes últimos dias — março de 1949 — decretou-se na Inglaterra que o emprego de certos métodos de anestesia era obrigatório, métodos esses já aplicados em geral nos Estados Unidos e que começam a expandir-se na França. 

Pela inseminação artificial, termina-se a evolução que permitirá à humanidade controlar a função reprodutora. Essas modificações têm, para a mulher em particular, imensa importância; podem diminuir o número de períodos de gravidez e integrá-la racionalmente em' sua vida, em vez de permanecer escrava desta. Por sua vez, a mulher durante o século XIX liberta-se da Natureza: torna-se senhora de seu corpo. Livre em grande parte das servidões da reprodução, pode desempenhar o papel econômico que se lhe propõe e lhe assegurará a conquista total de sua pessoa.


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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES



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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.



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