quarta-feira, 24 de outubro de 2018

O Segundo Sexo - 27. Fatos e Mitos: a mulher... volta a ser duramente escravizada

Simone de Beauvoir



27. Fatos e Mitos


Segunda Parte
História

CAPITULO I


V




"a mulher... volta a ser duramente escravizada"





PODER-SE-IA IMAGINAR que a Revolução transformasse o destino feminino. Não foi o que aconteceu. A revolução burguesa mostrou-se respeitosa das instituições e dos valores burgueses; foi feita quase exclusivamente pelos homens. É importante sublinhar que durante todo o Antigo Regime foram as mulheres das classes trabalhadores que conheceram maior independência como sexo. A mulher tinha o direito de possuir uma casa de comércio e todas as capacidades necessárias a um exercício autônomo de seu ofício. Participava da produção como fabricante de roupa branca, lavadeira, brunidora, revendedora etc; trabalhava em domicílio ou em pequenos negócios; sua independência material permitia-lhe grande liberdade de costumes: a mulher do povo pode sair, frequentar tavernas, dispor do corpo quase como um homem; é associada ao marido e sua igual. É. no plano econômico e não no plano sexual que a mulher sofre a opressão. Nos campos, a camponesa participa de modo considerável do trabalho rural; é tratada como servente; amiúde não come à mesa com o marido e os filhos, pena mais duramente do que eles e os encargos da maternidade acrescentam-se a suas fadigas. Mas, como nas antigas sociedades agrícolas, sendo necessária ao homem, é por êle respeitada; seus bens, interesses e preocupações são comuns. Exerce grande autoridade em casa. Essas mulheres é que com sua vida difícil teriam podido afirmar-se como pessoas e reclamar certos direitos; mas uma tradição de timidez e submissão pesava sobre elas; as atas dos Estados Gerais não apresentam senão um número quase insignificante de reivindicações femininas. Restringem-se a isto: "Que os homens não possam exercer ofícios que são apanágio das mulheres". Sem dúvida, veem-se mulheres ao lado de seus homens nas manifestações e arruaças. São elas que vão buscar em Versalhes "o padeiro, a padeira e o padeirinho". Mas não foi o povo que dirigiu a revolução nem quem colheu os frutos. Quanto às burguesas, algumas aderiram com ardor à causa da liberdade: Mme Roland, Lucile Desmoulins, Théroigne de Méricourt; uma delas influiu profundamente no desenrolar dos acontecimentos: Charlotte Corday ao assassinar Marat. Houve alguns movimentos feministas. Olympe de Gouges propôs em 1789 uma "Declaração dos Direitos da Mulher" simétrica à dos "Direitos do Homem" e na qual pediu que todos os privilégios masculinos fossem abolidos. Em 1790, encontram-se as mesmas idéias em Motion de la pauvre Jacotte e outros libelos análogos; mas, apesar do apoio de Condorcet, tais esforços abortam e Olympe morre no patíbulo. Ao lado do jornal L'lmpatient, que ela fundara, aparecem outros periódicos mas de duração efêmera. Os clubes femininos, em sua maioria, fundem-se com os masculinos e são por estes absorvidos. Quando, no 28 de brumário de 1793, a atriz Rose Lacombe, presidente da Sociedade das Mulheres Republicanas e Revolucionárias, força a entrada do Conselho Geral, acompanhada de uma deputação de mulheres, o procurador Chaumette faz retinir na Assembleia palavras que parecem inspiradas em São Paulo e Santo Tomás: "Desde quando se permite às mulheres abjurarem o sexo, fazerem-se homens ?... (A Natureza) disse à mulher: sê mulher. Os cuidados da infância, as coisas do lar, as diversas preocupações da maternidade, eis as tuas tarefas". Vedam-lhes a entrada no Conselho e, logo depois, até nos clubes em que faziam seu aprendizado político. Em 1790 suprime-se o direito de primogenitura e o privilégio de masculinidade; mulheres e homens tornam-se iguais em relação à sucessão; em 1792, uma lei estabelece o divórcio e com isso atenua o rigor dos laços matrimoniais; mas trata-se de pequenas conquistas. As mulheres da burguesia achavam-se demasiado integradas na família para descobrir uma solidariedade concreta entre elas; não constituíam uma casta separada, suscetível de impor reivindicações. Economicamente sua existência era parasitária. Assim, enquanto as mulheres que, apesar do sexo, teriam podido participar dos acontecimentos, se viam impedidas de fazê-lo como classe, as da classe atuante eram condenadas a permanecer afastadas, como mulheres. Só quando o poder econômico cair nas mãos do trabalhador é que se tornará possível à trabalhadora conquistar capacidades que a mulher parasita, nobre ou burguesa, nunca obteve. 

Durante a liquidação da Revolução a mulher goza de uma liberdade anárquica. Mas, quando a sociedade se reorganiza, volta a ser duramente escravizada. Do ponto de vista feminista, a França estava à frente dos outros países mas, para infelicidade da francesa moderna, seu estatuto foi estabelecido em momento de ditadura militar; o Código Napoleão, que fixou seu destino por um século, atrasou de muito sua emancipação. Como todos os militares, Napoleão não quer ver na mulher senão uma mãe. Porém, herdeiro de uma revolução burguesa, deseja demolir a estrutura da sociedade e dar à mãe a preeminência da esposa: proíbe a investigação da paternidade; define com dureza a condição da mãe solteira e a do filho natural. Entretanto, a própria mulher casada não encontra refúgio em sua dignidade de mãe; o paradoxo feudal perpetua-se. Solteira e casada são privadas da qualidade de cidadã, o que lhes veda funções como as de advogado e o exercício da tutela. Mas a mulher celibatária goza da plenitude de suas capacidades civis ao passo que o casamento conserva o mundium. A mulher deve obediência a seu marido; ele pode fazer que seja condenada à reclusão em caso de adultério e conseguir o divórcio contra ela; se mata a culpada em flagrante, é desculpável aos olhos da lei; ao passo que o marido só é sujeito a uma multa se trouxer uma concubina ao domicílio conjugai, e é neste caso, somente, que a mulher pode obter o divórcio contra ele. O homem é quem fixa o domicílio conjugai. Tem sobre os filhos muito mais direitos do que a mãe e — salvo no caso em que a mulher dirige uma empresa comercial — sua autorização é necessária para que ela possa assumir obrigações. O poder marital exerce-se rigorosamente, ao mesmo tempo sobre a pessoa da esposa e sobre seus bens.

Durante todo o século XIX a jurisprudência não fez senão reforçar os rigores do código, privando, entre outras coisas, a mulher do direito de alienação. Em 1826, a Restauração aboliu o Divórcio; a Assembleia Constituinte de 1848 recusou-se a restabelecê-lo; ele só reaparece em 1884, mas ainda com toda espécie de obstáculos à sua obtenção. Em verdade, a burguesia nunca foi mais poderosa, mas compreende que ameaças implica a revolução industrial; por isso, se afirma com uma autoridade inquieta. A liberdade de espírito, herdada do século XVIII, não fere a moral familiar; esta permanece tal qual a definem, no início do século XIX, os pensadores reacionários como Joseph de Maistre e Bonald. Estes assentam na vontade divina o valor da ordem e reclamam uma sociedade rigorosamente hierarquizada: a família, célula social indissolúvel, será o microcosmo da sociedade. "O homem está para a mulher como a mulher para a criança; ou o poder para o ministro como o ministro para o súdito", escreve Bonald. Assim, o marido governa, a mulher administra, os filhos obedecem. O divórcio é naturalmente proibido e a mulher é confinada ao lar. "As mulheres pertencem à família e não à sociedade política, e a Natureza as fêz para as tarefas domésticas e não para as funções públicas", afirma ainda Bonald. Na família que Le Play define, em meados do século, essas hierarquias são respeitadas.
De maneira pouco diferente, Auguste Comte reclama também a hierarquia dos sexos. Há, entre eles, "diferenças radicais, concomitantemente físicas e morais que, em todas as espécies animais e principalmente na raça humana, os separam profundamente um do outro". A feminilidade é uma espécie de "infância contínua" que afasta a mulher do "tipo ideal da raça". Essa infantilidade biológica traduz-se por uma fraqueza intelectual; o papel desse ser puramente afetivo é o de esposa e dona de casa; ela não poderia entrar em concorrência com o homem: "nem a direção nem a educação lhe convém". Como na opinião de Bonald, a mulher é confinada à família e nessa sociedade em miniatura o pai governa porque a mulher é "incapaz de qualquer mando, mesmo doméstico"; ela administra tão-somente e aconselha. Sua instrução deve ser limitada. "As mulheres e os proletários não podem nem devem tornar-se autores, como, aliás, não o desejam." E Comte prevê que a evolução da sociedade acarretará a supressão total do trabalho feminino fora da família. Na segunda parte de sua obra, Comte, influenciado pelo seu amor por Clotilde de Vaux, exalta a mulher até quase fazer dela uma divindade, a emanação do Grande Ser; ela é que a religião positivista proporia à adoração do povo no templo da Humanidade; mas é somente pela sua moralidade que ela merece esse culto; enquanto o homem age, ela ama: pureza e amor tornam-na superior ao homem; ela é mais profundamente altruísta do que ele. Mas, segundo o sistema positivista, ela nem assim permanece menos encerrada na família; o divórcio é-lhe proibido e seria mesmo desejável que sua viuvez fosse eterna; ela não tem nenhum direito econômico nem político, é apenas esposa e educadora.
Balzac, mais cinicamente, exprime o mesmo ideal. "O destino da mulher e sua única glória são fazer bater o coração dos homens, escreve na Physiologie du Mariage. A mulher é propriedade que se adquire por contrato; ela é mobiliária porque sua posse vale como título; a mulher, enfim, não é, propriamente falando, senão um anexo do homem." Balzac faz-se aqui o porta-voz da burguesia cujo antifeminismo redobra de vigor contra a licenciosidade do século XVIII e contra as ideias progressistas que a ameaçam. Tendo luminosamente exposto, no início da Physiologie du Mariage, que essa instituição de que se exclui o amor conduz necessariamente a mulher ao adultério, Balzac exorta o esposo a mantê-la em total sujeição se quiser evitar o ridículo da desonra. Cumpre recusar-lhe instrução e cultura, proibir-lhe tudo o que lhe permitiria desenvolver sua individualidade, impor-lhe vestimentas incômodas, encorajá-la a seguir um regime amenizante. A burguesia obedece exatamente a esse programa. As mulheres são escravizadas à cozinha, ao lar, fiscalizam-lhes ciumentamente os costumes; confinam-nas em um ritual de savoir-vivre, que trava qualquer tentativa de independência. Em compensação, honram-nas e cercam-nas das mais requintadas delicadezas. "A mulher casada é uma escrava que é preciso saber colocar num trono", diz Balzac; está estabelecido que, em quaisquer circunstâncias insignificantes, o homem deve eclipsar-se diante delas, ceder-lhes o primeiro lugar; ao invés de fazê-las carregar fardos como nas sociedades primitivas, insistem em desobrigá-las de toda tarefa penosa e de toda preocupação, o que significa livrá-las ao mesmo tempo de toda responsabilidade. Espera-se que, assim ludibriadas, seduzidas pela facilidade de sua condição, aceitem o papel de mãe e de dona de casa em que as querem confinar. E o fato é que, em sua maioria, as mulheres da burguesia capitulam. Como sua educação e sua situação parasitária as colocam sob a dependência do homem, não ousam sequer apresentar reivindicações; as que possuem essa audácia não encontram eco. "í mais fácil sobrecarregar as pessoas de ferros do que as libertar, se os ferros dão consideração", diz Bernard Shaw. A mulher burguesa faz questão de seus grilhões porque faz questão de seus privilégios de classe. Explicam-lhe sem cessar (e ela sabe) que a emancipação das mulheres seria um enfraquecimento da sociedade burguesa; libertada do homem, seria condenada ao trabalho; pode lamentar não ter sobre a propriedade privada senão direitos subordinados aos do marido, porém deploraria ainda mais que essa propriedade fosse abolida; não sente nenhuma solidariedade com as mulheres da classe proletária: está muito mais próxima do marido do que das operárias da indústria têxtil. Faz seus os interesses do marido.

Entretanto, essas resistências obstinadas não podem impedir a marcha da história; o advento do maquinismo arruína a propriedade fundiária, provoca a emancipação da classe laboriosa e, correlativamente, a da mulher. Todo socialismo, arrancando a mulher à família, favorece-lhe a libertação. Platão, sonhando com um regime comunitário, prometia às mulheres uma autonomia igual à que gozavam em Esparta. Com os socialismos utópicos de Saint-Simon, Fourier, Cabet, nasce a utopia da "mulher livre". A ideia saint-simoniana de associação universal exige a supressão de toda escravidão: a do operário e a da mulher; é porque as mulheres são seres humanos como os homens, que Saint-Simon e, depois dele, Leroux, Pecqueux, Carnot, reclamam sua libertação. Infelizmente, essa tese razoável não é a que encontra maior crédito na escola. Esta exalta a mulher em nome de sua feminilidade, o que é o meio mais seguro de desservi-ía. A pretexto de que a unidade social está no casal, o Padre Enfantin quer introduzir uma mulher em cada casal diretor, que chama casal-sacerdote; ele espera de uma mulher-messias o advento de um mundo melhor e os Companheiros da Mulher embarcam para o Oriente à procura desse salvador feminino. É influenciado por Fourier, que confunde a libertação da mulher com a reabilitação da carne; Fourier reclama para todo indivíduo a liberdade de obedecer à atração passional; quer substituir o casamento pelo amor; não é em sua pessoa e sim em sua função amorosa que considera a mulher. Cabet promete, por seu turno, que o comunismo icariano realizará uma completa igualdade dos sexos, embora conceda à mulher apenas uma participação restrita na vida política. Na realidade, as mulheres ocupam somente um lugar secundário no movimento saint-simoniano: só Claire Bazard, que funda e mantém durante breve período o jornal chamado La Femme nouvelle, desempenha um papel assaz importante. Muitas outras pequenas revistas aparecem a seguir, mas suas reivindicações são tímidas; elas pedem a educação da mulher mais do que sua emancipação; é em elevar a educação da mulher que se empenha Carnot e, com ele, Legouvé. A ideia da mulher associada, da mulher regeneradora mantém-se através de todo o século XIX: encontramo-la em Victor Hugo. Mas a causa da mulher é antes desacreditada por essas doutrinas que em lugar de a assimilar ao homem a opõem a ele, reconhecendo-lhe a intuição, o sentimento, mas não a razão. £ também desacreditada pela inabilidade de seus partidários. Em 1848 as mulheres fundam clubes e jornais; Eugénie Niboyer edita a Voix des Femmes, jornal em que colabora Cabet. Uma delegação feminina vai à Prefeitura para reivindicar "os direitos da mulher" mas nada obtém. Em 1849, Jeanne Decoin apresenta-se à deputação, e faz uma campanha eleitoral que soçobra no ridículo. O ridículo mata também o movimento das "vesuvianas" e das Bloomeristas que se exibem com vestimentas extravagantes. As mulheres mais inteligentes da época permanecem afastadas desses movimentos: Mme de Staël lutara pela sua própria causa mais do que pela de suas irmãs; George Sand reclama o direito ao amor livre mas recusa-se a colaborar na Voix des Femmes; suas reivindicações são principalmente sentimentais; Flora Tristan acredita na redenção do povo pela mulher, mas se interessa mais pela emancipação da classe operária do que pela de seu sexo. David Stern, Mme de Girardin associam-se entretanto ao movimento feminino.





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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES



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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.



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