sábado, 1 de dezembro de 2018

Stendhal - O Vermelho e o Negro: As meias rendadas (XIII)

Livro I

A verdade, a áspera verdade. 
Danton 


Capítulo XIII

AS MEIAS RENDADAS

Um romance é um espelho que se leva ao longo de um caminho. 

SAINT-RÉAL




QUANDO JULIEN AVISTOU as ruínas pitorescas da antiga igreja de Vergy, ele observou que desde a antevéspera não pensara uma única vez na sra. de Rênal. Outro dia, ao partir, essa mulher lembrou-me a distância infinita que nos separa, tratou-me como o filho de um operário. Certa​mente quis demonstrar seu arrependimento por ter-me ce​dido a mão na véspera... No entanto, essa mão é muito bo​nita! Que encanto, que nobreza nos olhares dessa mulher!
A possibilidade de fazer fortuna com Fouqué dava um certo desembaraço aos pensamentos de Julien; eles não eram mais tão frequentemente estorvados pela irrita​ção e pelo intenso sentimento de sua pobreza e de sua baixeza aos olhos da sociedade. Colocado como sobre um promontório elevado, podia julgar e abarcar, por assim dizer, a extrema pobreza e a comodidade que ele cha​ma​va também riqueza. Estava longe de julgar sua posição como filósofo, mas teve suficiente clarividência para sentir-se diferente depois dessa pequena viagem às montanhas.
Notou a extrema perturbação com que a sra. de Rênal escutou o pequeno relato de sua viagem, que ela lhe pedira.
Fouqué tivera projetos de casamento, amores infelizes; longas confidências a esse respeito haviam ocupado as conversas dos dois amigos. Tendo encontrado a felicidade muito cedo, Fouqué percebera que lhe faltava ser amado. Esses relatos haviam surpreendido Julien; ele aprendeu muitas coisas novas. Sua vida solitária, feita de imaginação e de desconfiança, o afastara de tudo que podia esclarecê-lo.
Durante sua ausência, a vida fora apenas, para a sra. de Rênal, uma série de suplícios diferentes, mas todos intoleráveis; ela estava realmente doente.

– Indisposta como estás, disse-lhe a sra. Derville quando viu Julien chegar, sobretudo não deves ir esta noite ao jardim, o ar úmido aumentaria teu mal-estar.

A sra. Derville via com espanto que a amiga, sempre repreendida pelo sr. de Rênal por causa da excessiva simplicidade de sua toalete, acabava de pôr meias rendadas e encantadores sapatinhos chegados de Paris. Durante três dias, a única distração da sra. de Rênal fora cortar e mandar costurar às pressas, por Elisa, um vestido de verão, de um belo tecido muito em voga. Logo que este ficou pronto, alguns instante após a chegada de Julien, a sra. de Rênal o vestiu. Sua amiga não teve mais dúvidas. Ela está amando, a infortunada, pensou a sra. Derville. Compreendeu todos os sintomas singulares de sua doença.
Viu-a falar com Julien. A palidez sucedia ao rubor mais intenso. A ansiedade transparecia em seus olhos, fixos nos do jovem preceptor. A sra. de Rênal esperava a todo momento que ele se explicasse, anunciando que deixava a casa ou que nela permanecia. Julien estava longe de querer falar do assunto, sobre o qual não pensava. Após terríveis combates, a sra. de Rênal ousou enfim perguntar-lhe, com uma voz trêmula na qual transparecia toda a sua paixão:

– Deixará seus alunos para se instalar noutra parte?

Julien notou a voz incerta e o olhar da sra. de Rênal. Essa mulher me ama, pensou; mas após esse momento passageiro de fraqueza, do qual seu orgulho se reprova, e quando não mais temer minha partida, ela retomará sua altivez. A compreensão da posição respectiva foi, em Julien, rápida como o raio; ele respondeu, hesitando:

– Eu sentiria muito em deixar crianças tão amáveis e tão bem-nascidas, mas talvez seja preciso. Temos também deveres para conosco.

Ao pronunciar as palavras tão bem-nascidas (era um das expressões aristocráticas que Julien aprendera há pouco), ele animou-se de um profundo sentimento de antipatia.
Aos olhos dessa mulher, pensava, não sou um bem-nascido.
Ao escutá-lo, a sra. de Rênal admirava seu gênio, sua beleza; tinha o coração ferido pela possibilidade de partida que ele fazia entrever. Seus amigos de Verrières, que durante a ausência de Julien tinham vindo jantar em Vergy, haviam-na felicitado como que à porfia pelo homem espantoso que seu marido tivera a sorte de descobrir. Não que compreendessem alguma coisa dos progressos das crianças. O fato de saber de cor a Bíblia, e ainda por cima em latim, suscitara nos habitantes de Verrières uma admiração que irá durar talvez um século.
Julien, que não falava com ninguém, ignorava tudo isso. Se a sra. de Rênal tivesse um pouco de serenidade, ter-lhe-ia falado da reputação que ele conquistara, e Julien, reconfortado em seu orgulho, teria se mostrado doce e amável com ela, ainda mais que o novo vestido lhe parecia encantador. Igualmente contente com seu vestido e com o que Julien dizia dele, a sra. de Rênal quis dar uma volta pelo jardim; mas logo confessou que não estava em condições de caminhar. Ela tomara o braço do viajante e, longe de aumentar suas forças, o contato com esse braço as retirava completamente.
Anoitecera; tão logo sentaram-se, Julien, usando de seu anterior privilégio, ousou aproximar os lábios do braço de sua bela companheira e tomar-lhe a mão. Pensava na ousadia que Fouqué tivera com suas amantes, e não na sra. de Rênal; a palavra bem-nascido ainda lhe pesava no coração. Sentiu que ela apertava sua mão, o que não lhe causou nenhum prazer. Em vez de estar orgulhoso ou ao menos agradecido pelo sentimento que a sra. de Rênal demonstrava-lhe naquela noite por sinais muito evidentes, permaneceu quase insensível à beleza, à elegância, ao frescor. A pureza de alma, a ausência de toda emoção de ódio prolongam, certamente, a duração da juventude. É a fisionomia que primeiro envelhece na maior parte das mulheres belas.
Julien esteve de mau humor a noite toda; até então, só havia sentido raiva contra o acaso e a sociedade; depois que Fouqué lhe oferecera um meio ignóbil de chegar à riqueza, sentia irritação contra si mesmo. Entregue a seus pensamentos, embora de tempo em tempo dissesse algumas palavras às senhoras, Julien inadvertidamente acabou por abandonar a mão da sra. de Rênal. Esse gesto perturbou a alma da pobre mulher; ela viu nisso a manifestação de seu destino.
Certa da afeição de Julien, talvez sua virtude tivesse encontrado forças contra ele. Temerosa de perdê-lo para sempre, sua paixão a extraviou a ponto de pegar de novo a mão que Julien, em sua distração, deixara apoiada sobre o encosto da cadeira. Tal gesto despertou esse jovem ambicioso: sua vontade é que ele fosse testemunhado por todos aqueles nobres orgulhosos que, à mesa, quando estava na extremidade inferior com as crianças, olhavam para ele com um sorriso protetor. Essa mulher não pode mais me desprezar: nesse caso, pensou, devo ser sensível à sua beleza, devo obrigar-me a ser seu amante. Tal ideia não lhe teria ocorrido antes das confidências ingênuas feitas pelo amigo.
A determinação súbita que acabava de tomar produziu uma distração agradável. Ele pensava: É preciso que eu tenha uma dessas duas mulheres. Percebeu que teria preferido muito mais cortejar a sra. Derville; não que ela fosse mais agradável, mas porque sempre o vira como preceptor honrado por seu saber, e não como o filho de um carpinteiro, com uma pobre jaqueta dobrada sob o braço, tal como aparecera à sra. de Rênal.
Era precisamente como um jovem operário, corando até o branco dos olhos, parado à porta da casa e não ousando tocar a campainha, que a sra. de Rênal lem​brava dele com mais encanto.
Continuando o exame de sua posição, Julien viu que não convinha pensar em conquistar a sra. Derville, que provavelmente percebia a atração que a sra. de Rênal sentia por ele. Forçado a voltar a esta, Julien pensou: O que conheço do caráter dessa mulher? Apenas isto: antes de minha viagem, eu tomava-lhe a mão, ela a retirava; agora, retiro minha mão, ela torna a pegá-la e a aperta. Bela ocasião de devolver-lhe o desprezo que mostrou por mim. Deus sabe quantos amantes já teve! Talvez ela só se decida em meu favor por causa da facilidade dos encontros.
Eis aí, infelizmente, a desgraça de uma excessiva civilização! Aos vinte anos, a alma de um jovem, se tiver alguma educação, está a mil léguas da entrega sem a qual o amor não é senão, com frequência, o mais tedioso dos deveres.
Devo empenhar-me tanto mais, prosseguiu a pequena vaidade de Julien, em ter êxito junto a essa mulher, pois se um dia fizer fortuna, e alguém me reprovar o baixo emprego de preceptor, poderei alegar que o amor jogou-me nessa posição.
Julien afastou novamente sua mão da da sra. de Rênal, depois tornou a pegá-la, apertando-a. Quando retornaram à sala, por volta da meia-noite, a sra. de Rênal disse-lhe em voz baixa:

– Você nos deixará, irá partir?

Julien respondeu, suspirando:

– É preciso que eu parta, pois amo-a com paixão, isso é um pecado... e que pecado para um jovem padre!

A sra. de Rênal apoiou-se sobre seu braço, e com tanto abandono que sua face sentiu o calor da de Julien.
As noites dessas duas criaturas foram muito diferentes. A sra. de Rênal estava exaltada pelos transportes da volúpia moral mais elevada. Uma moça coquete que começa a amar acostuma-se com a perturbação do amor: quando chega à idade da verdadeira paixão, não existe mais o encanto da novidade. Como a sra. de Rênal nunca lera romances, todos os matizes de sua felicidade eram novos para ela. Nenhuma triste verdade vinha barrá-la, nem mesmo o espectro do futuro. Via-se tão feliz dentro de dez anos quanto o era naquele momento. A ideia mesma da virtude e da fidelidade jurada ao sr. de Rênal, que a agitara alguns dias antes, apresentou-se em vão, foi enxotada como um hóspede importuno. Nunca concederei nada a Julien, disse a si mesma a sra. de Rênal, viveremos no futuro como vivemos há um mês. Será um amigo.


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ADVERTÊNCIA DO EDITOR
Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.

Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.

O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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Leia também: 

Livro I:
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma pequena cidade (I)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Prefeito (II)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Bem dos Pobres (III)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Pai e um Filho (IV)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma Negociação (V)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Constrangimento (VI)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: As Afinidadades Eletivas (VII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Pequenos Acontecimentos (VIII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma Noite no Campo (IX)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Grande Coração e Uma Pequena Fortuna (X)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma Noite (XI)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma Viagem (XII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: As meias rendadas (XIII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Tesoura Inglesa (XIV)


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