domingo, 20 de outubro de 2019

Lima Barreto - 8. Quase ela deu o “sim” ; mas...

Lima Barreto

O Homem que sabia Javanês e outros contos





Quase ela deu o “sim” ; mas...



JOÃO CAZU era um moço suburbano, forte e saudável, mas pouco ativo e amigo do trabalho.

Vivia em casa dos tios, numa estação de subúrbios, onde tinha moradia, comida, roupa, calçado e algum dinheiro que a sua bondosa tia e madrinha lhe dava para os cigarros.

Ele, porém, não os comprava; “filava-os” dos outros. “Refundia” os níqueis que lhe dava a tia, para flores a dar às namoradas e comprar bilhetes de tômbolas, nos vários “mafuás”, mais ou menos eclesiásticos, que há por aquelas redondezas.

O conhecimento do seu hábito de “filar” cigarros aos camaradas e amigos, estava tão espalhado que, mal um deles o via, logo tirava da algibeira um cigarro; e, antes de saudá-lo, dizia:

– Toma lá o cigarro, Cazu.

Vivia assim muito bem, sem ambições nem tenções. A maior parte do dia, especialmente a tarde, empregava ele, com outros companheiros, em dar loucos pontapés numa bola, tendo por arena um terreno baldio das vizinhanças da residência dele ou melhor: dos seus tios e padrinhos.

Contudo, ainda não estava satisfeito. Restava-lhe a grave preocupação de encontrar quem lhe lavasse e engomasse a roupa, remendasse as calças e outras peças do vestuário, cerzisse as meias, etc., etc.

Em resumo: ele queria uma mulher, uma esposa, adaptável ao seu jeito descansado.

Tinha visto falar em sujeitos que se casam com moças ricas e não precisam trabalhar; em outros que esposam professoras e adquirem a meritória profissão de “maridos da professora”; ele, porém, não aspirava a tanto.

Apesar disso, não desanimou de descobrir uma mulher que lhe servisse convenientemente.

Continuou a jogar displicentemente, o seu football vagabundo e a viver cheio de segurança e abundância com os seus tios e padrinhos.

Certo dia, passando pela porteira da casa de uma sua vizinha mais ou menos conhecida, ela lhe pediu:

– “Seu” Cazu, o senhor vai até à estação?

– Vou, dª Ermelinda.

– Podia me fazer um favor?

– Pois não.

– É ver se o “Seu” Gustavo da padaria “Rosa de Ouro”, me pode ceder duas estampilhas de seiscentos réis. Tenho que fazer um requerimento ao Tesouro, sobre coisas do meu montepio, com urgência, precisava muito.

– Não há dúvida, minha senhora.

Cazu, dizendo isto, pensava de si para si: “É um bom partido. Tem montepio, é viúva; o diabo são os filhos!” dª Ermelinda, à vista da resposta dele, disse:

– Está aqui o dinheiro.

Conquanto dissesse várias vezes que não precisava daquilo – o dinheiro – o impenitente jogador de football e feliz hóspede dos tios, foi embolsando os nicolaus, por causa das dúvidas.

Fez o que tinha a fazer na estação, adquiriu as estampilhas e voltou para entregá-las à viúva.

De fato, dª Ermelinda era viúva de um contínuo ou coisa parecida de uma repartição pública. Viúva e com pouco mais de trinta anos, nada se falava da sua reputação.

Tinha uma filha e um filho que educava com grande desvelo e muito sacrifício.

Era proprietária do pequeno chalet onde morava, em cujo quintal havia laranjeiras e algumas outras árvores frutíferas.

Fora o seu falecido marido que o adquirira com o produto de uma “sorte” na loteria; e, se ela, com a morte do esposo, o salvara das garras de escrivães, escreventes, meirinhos, solicitadores e advogados “mambembes”, devia-o à precaução do marido que comprara a casa, em nome dela.

Assim mesmo, tinha sido preciso a intervenção do seu compadre, o capitão Hermenegildo, a fim de remover os obstáculos que certos “águias” começavam a pôr, para impedir que ela entrasse em plena posse do imóvel e abocanhar-lhe afinal o seu chalezito humilde.

De volta, Cazu bateu à porta da viúva que trabalhava no interior, com cujo rendimento ela conseguia aumentar de muito o módico, senão irrisório montepio, de modo a conseguir fazer face às despesas mensais com ela e os filhos.

Percebendo a pobre viúva que era o Cazu, sem se levantar da máquina, gritou:

– Entre, “Seu” Cazu.

Estava só; os filhos ainda não tinham vindo do colégio. Cazu entrou.

Após entregar as estampilhas, quis o rapaz retirar-se; mas foi obstado por Ermelinda nestes termos:

– Espere um pouco, “Seu” Cazu. Vamos tomar café.

Ele aceitou e, embora, ambos se serviram da infusão da “preciosa rubiácea”, como se diz no estilo “valorização”.

A viúva, tomando café, acompanhado com pão e manteiga, pôs-se a olhar o companheiro com certo interesse. Ele notou e fez-se amável e galante, demorando em esvaziar a xícara. A viuvinha sorria interiormente de contentamento. Cazu pensou com os seus botões: “Está aí um bom partido: casa própria, montepio, renda das costuras; e além de tudo, há de lavar-me e consertar a roupa. Se calhou, fico livre das censuras da tia...

Essa vaga tenção ganhou mais corpo, quando a viúva, olhando-lhe a camisa, perguntou:

– “Seu “ Cazu, se eu lhe disser uma coisa, o senhor fica zangado?

– Ora, qual, dª Ermelinda?

– Bem. A sua camisa está rasgada no peito. O senhor traz “ela” amanhã, que eu conserto “ela”.

Cazu respondeu que era preciso lavá-la primeiro; mas a viúva prontificou-se em fazer isso também. O player dos pontapés, fingindo relutância no começo, aceitou afinal; e doido por isso estava ele, pois era uma “entrada”, para obter uma lavadeira em condições favoráveis.

Dito e feito: daí em diante, com jeito e manha, ele conseguiu que a viúva se fizesse a sua lavadeira bem em conta.

Cazu, após tal conquista, redobrou de atividade no football, abandonou os biscates e não dava um passo, para obter emprego. Que é que ele queria mais? Tinha tudo...

Na redondeza, passavam como noivos; mas não eram, nem mesmo namorados declarados.

Havia entre ambos, unicamente um “namoro de caboclo”, com o que Cazu ganhou uma lavadeira, sem nenhuma exigência monetária e cultivava-o carinhosamente.

Um belo dia, após ano e pouco de tal namoro, houve um casamento na casa dos tios do diligente jogador de football. Ele, à vista da cerimônia e da festa, pensou: “Porque também eu não me caso? Porque eu não peço Ermelinda em casamento? Ela aceita, por certo; e eu...”

Matutou domingo, pois o casamento tinha sido no sábado; refletiu segunda e, na terça, cheio de coragem, chegou-se à Ermelinda e pediu-a em casamento.

– É grave isto, Cazu. Olhe que sou viúva e com dois filhos!

– Tratava “eles” bem; eu juro!

– Está bem. Sexta-feira, você vem cedo, para almoçar comigo e eu dou a resposta.

Assim foi feito. Cazu chegou cedo e os dois estiveram a conversar; ela, com toda a naturalidade, e ele, cheio de ansiedade e apreensivo.

Num dado momento, Ermelinda foi até à gaveta de um móvel e tirou de lá um papel.

– Cazu – disse ela, tendo o papel na mão – você vai à venda e à quitanda e compra o que está aqui nesta “nota”. É para o almoço.

Cazu agarrou trêmulo o papelucho e pôs-se a ler o seguinte:

1 quilo de feijão........................................................ 600 rs.
1/2 de farinha............................................................ 200 ”
1/2 de bacalhau..................................................... 1$200 ”
1/2 de batatas............................................................ 360 ”
Cebolas..................................................................... 200 ”
Alhos........................................................................ 100 ”
Azeite........................................................................ 300 ”
Sal............................................................................. 100 ”
Vinagre..................................................................... 200 ”__
                                                                               3$260 rs.


Quitanda:
Carvão..................................................................... 200 rs.
Couve...................................................................... 200 ”
Salsa........................................................................ 100 ”
Cebolinha................................................................ 100 ”_
Tudo................................................................................... 3$860 rs.


Acabada a leitura, Cazu não se levantou logo da cadeira; e, com a lista na mão, a olhar de um lado a outro, parecia atordoado, estuporado.

– Anda Cazu, fez a viúva. Assim, demorando, o almoço fica tarde...

– É que...

– Que há?

– Não tenho dinheiro.

– Mas você não quer casar comigo? É mostrar atividade meu filho! Dê os seus passos... Vá! Um chefe de família não se atrapalha... É agir!

João Cazu, tendo a lista de gêneros na mão, ergueu-se da cadeira, saiu e não mais voltou...


Careta, Rio, 29-1-1921.




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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…

Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
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O homem que sabia Javanês e outros contos, de Lima Barreto 

Fonte: 
BARRETO, Lima. O homem que sabia javanês e outros contos. Curitiba: Polo Editorial do Paraná, 1997.
Texto proveniente de: 
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por: 
Rodrigo Souza, Curitiba - PR 

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